Quando a regra do teto de gastos foi aprovada, em 2016, já se sabia que a dinâmica de crescimento dos gastos constitucionalmente obrigatórios forçaria a revisão da regra em algum momento no futuro. Isso porque, com os gastos totais limitados pela inflação e os gastos obrigatórios (principalmente Previdência e funcionalismo) crescendo acima da inflação, os gastos discricionários (não constitucionalmente obrigatórios) seriam espremidos com o passar dos anos. Por isso, se previu uma revisão da regra para 2025. A ideia (ou esperança) era de que houvesse um amplo debate no país sobre os gastos obrigatórios, de modo a abrir espaço para os não obrigatórios.
Ocorre que o único debate que ocorreu foi o da reforma da Previdência, que ajudou, mas ficou muito longe do suficiente para estabilizar o crescimento dos gastos. Além disso, para juntar o insulto à injúria, veio a pandemia, que fez com que gastássemos, em dois anos, toda a poupança gerada pela reforma da Previdência em 10 anos. Além disso, cristalizou o valor de R$600 para o Bolsa Família / Auxílio Brasil, fazendo com que este programa saltasse dos anteriores R$ 35 bilhões/ano para os propostos R$ 175 bilhões/ano para 2023.
(Alias, só um parêntesis. Ainda vou entender como R$ 35 bilhões foram capazes de “acabar com a fome no Brasil”, e, com R$ 175 bilhões, “a fome nunca foi tão grande e intensa no país”. – essa frase contém várias ironias)
Assim, pressionado, por um lado, pelos gastos obrigatórios e, pelo outro, por um programa gigantesco de transferência de renda, não é à toa que o espaço para os gastos não obrigatórios tenha desaparecido. E o que são esses gastos não obrigatórios?
A notícia a seguir destaca um deles.
Os salários dos policiais da PF são gastos obrigatórios, mas o papel para confeccionar o passaporte, não. A mesma coisa, por exemplo, nas universidades federais: os salários dos professores e funcionários são gastos obrigatórios, mas o dinheiro para comprar o papel higiênico, não. Os funcionários do IBGE têm o seu salário garantido, mas a estrutura para fazer o censo, não. Programas como Farmácia Popular e incentivos à cultura são não obrigatórios. E por aí vai.
Por isso, o PT propôs tirar R$ 105 bilhões adicionais da regra do teto por 4 anos. A máquina do Estado corre o sério risco de parar se isso não for feito. Bolsonaro teria exatamente o mesmo problema se tivesse sido eleito. Pode-se discutir esse montante, mas alguma coisa teria que ser feita.
Os mercados entendem todo esse racional. O problema é a falta de perspectiva de que esse problema será resolvido algum dia. O mercado financeiro vive de trazer o futuro a valor presente. Quando Lula dá a entender que não está nem aí para o equilíbrio fiscal e o PT pede waiver para 4 anos, a leitura é de que Lula e o PT não têm apetite para resolver a questão de maneira mais estrutural e, portanto, teremos uma dívida explosiva no futuro. E isso é precificado pelos mercados hoje.
Alguns me perguntam, com sinceridade de coração, o que eu faria no lugar, dadas as condições postas. A resposta é relativamente simples: a mesma coisa, só que cuidando a mensagem. “Vamos pedir um waiver de R$ 175 bilhões este ano para acomodar as promessas de campanha. Entendemos que se trata de algo totalmente excepcional. Ao mesmo tempo, vamos trabalhar pelas reformas administrativa e tributária e por uma nova regra fiscal já no primeiro ano do governo, de modo a estabilizar a trajetória da dívida pública”. Obviamente, o mercado não compraria a promessa a valor de face a zero de jogo, e esse montante certamente faria (fará!) com que o BC tenha dificuldade de cortar juros no ano que vem. Mas, pelo menos, se evitaria todo esse estresse dos mercados que vivenciamos nos últimos dias, e o novo governo poderia começar em um ambiente melhor.
Lula tem se comportado como presidente de grêmio estudantil. Quando voltar a vestir o figurino de presidente (se um dia voltar), os mercados responderão positivamente.