Em 25/06/2021, publiquei um post curto, com apenas duas frases: “Bolsonaro passando a faixa presidencial para Lula. Alguém consegue imaginar a cena?”
Não, era uma cena inimaginável. E não vai ocorrer. O ainda presidente Bolsonaro voou para os Estados Unidos, longe da cerimônia de posse do presidente eleito.
Os democratas do país repudiam o último ato do presidente. A passagem da faixa é uma liturgia da democracia, em que o presidente que sai reconhece a legitimidade do presidente que entra. A decisão de Bolsonaro somente confirma o que todos já desconfiavam: Bolsonaro não é um verdadeiro democrata.
Ocorre que ritos democráticos somente são plenos de sentido quando temos uma democracia plena. E a nossa democracia pode ser tudo, menos plena.
Os democratas do país encontraram em Bolsonaro o espantalho perfeito, que representa a face anti-democrata da nossa democracia. Não admitem que Bolsonaro é apenas a encarnação conveniente do profundo déficit de democracia que o Brasil vive hoje.
No mesmo dia em que meia dúzia de aloprados queimava ônibus e carros em Brasília, a não muitos metros dali, ministros do TSE confraternizavam com o presidente eleito na casa de um advogado com interesses na mais alta corte do país. Os carros e ônibus em chamas eram apenas a alegoria da verdadeira demolição da democracia que se dava no sambão do advogado. Muitos litros de tinta foram gastos demonizando os aloprados, enquanto nada se publicou sobre o convescote dos respeitáveis representantes da democracia brasileira. Os aloprados fizeram o papel do espantalho conveniente.
Nas últimas eleições, concorreu um candidato que teve os seus direitos políticos restaurados com base em mensagens hackeadas ilegalmente. O candidato havia sido condenado unanimemente por quatro juízes, e a legalidade de suas sentenças havia sido confirmada pelo mais alto tribunal penal do país, o STJ. A isso chamaram de Estado Democrático de Direito.
O partido do vencedor das eleições protagonizou os dois maiores esquemas de corrupção do país nos últimos 20 anos, os dois com o objetivo de comprar apoio no Congresso. Os nossos democratas não acham que isso seja suficiente para banir este partido da nossa cena política. Pelo contrário, este partido é tratado como um ator legítimo de nossa democracia.
Bolsonaro não vai passar a faixa para o seu sucessor. Ele não entende como esses rituais são simbolicamente importantes para a manutenção de um saudável ambiente democrático. Dele não se esperaria outra coisa. Afinal, Bolsonaro não é um verdadeiro democrata.
O que nossos verdadeiros democratas se recusam a ver, como quem vira a cara diante de um ser repugnante, é que Bolsonaro é apenas a encarnação de nosso déficit democrático. Nossos democratas acreditam que, livrando-se dele, estarão se livrando desse déficit, como quem purga um pecado. Iludem-se. Bolsonaro vai-se embora, mas quase 50% do eleitorado fica. Um eleitorado cansado de um simulacro de democracia.
A faixa não transmitida é apenas mais um tijolo que cai na grande obra de depredação da nossa democracia.