Tudo o que um governo populista quer ouvir

Tenho até uma certa vergonha do que vou escrever a seguir. Afinal, quem sou eu na fila do pão para ensinar algo a André Lara Resende, um dos pais do Plano Real (como não se cansam de nos lembrar os jornalistas que pretendem repisar as supostas credenciais ortodoxas do economista), ou a Pedro Cafardo, um dos criadores do maior jornal de finanças do país, o Valor Econômico. É muita pretensão da minha parte, eu sei. Certamente me escapa algum detalhe que mentes mais limitadas como a minha não conseguem alcançar. Quem sabe esse pequeno post chegue a algum deles, e eles possam, assim, nos iluminar com uma explicação convincente sobre o que vai a seguir.

A questão é a seguinte: anteontem, André Lara Resende escreveu artigo no Valor, afirmando que é muita hipocrisia (não lembro se usou essa palavra, mas o sentido é este) reclamar da PEC da gastança e, ao mesmo tempo, defender os gastos com juros. Ambos seriam gastos ”obrigatórios”, um para resgatar a dívida pública e o outro para resgatar a dívida social. Além disso, e esse ponto é chave, os gastos com juros (repito, muito maiores do que a PEC da gastança) seriam tão inflacionários quanto os gastos da PEC, pois aumentariam a demanda agregada, razão pela qual o aumento dos juros por parte do BC seria contraproducente para combater a inflação.

Pedro Cafardo, em seu artigo de ontem, compra a tese e dá números: o governo pagou R$ 1,96 trilhões entre juros e amortizações da dívida, o que representaria quase metade do orçamento federal. Para deixar claro o tamanho da ”gastança” com juros, Cafardo cita a segunda maior despesa do governo, a Previdência, que representa cerca de 20% do orçamento.

Há aqui uma confusão tão grande, que chego a pensar se não seria de caso pensado. Vejamos.

Comecemos pelos números trazidos pelo jornalista. Em 2021, o governo “gastou” R$ 1,96 trilhões com juros e amortizações da dívida. Para começar, esses conceitos são muito diferentes.

A amortização é a devolução do principal da dívida. Você empresta R$ 1.000 reais para o governo, o governo gasta esse dinheiro e, depois de algum tempo, devolve esse dinheiro para você. Contabilizar essa devolução como um gasto significa dizer que o governo gastou o dinheiro duas vezes: a primeira quando recebeu o dinheiro e a segunda quando pagou a dívida. Obviamente não faz sentido.

Já os juros (serviço da dívida), esses sim são despesa do governo. Talvez por ser um dos pais do Plano Real e não apenas um dos criadores do Valor, André Lara, pelo menos, não cai nesse erro básico. Em seu artigo, ele foca nas despesas adicionais com juros do governo, devidas ao aumento da taxa Selic. E essas despesas seriam inflacionárias, pois pressionariam a demanda agregada.

O que nos dizem os números? Vamos usar o ano de 2021, que foi o exemplo dado pelo jornalista. Segundo o Portal da Transparência, dos R$ 1,91 trilhões de juros e amortizações pagos pelo governo (e não R$1,96 trilhões, como citado pelo jornalista), R$ 1,36 trilhões foram de amortizações e R$ 0,55 trilhões foram de juros. Portanto, apenas esse último montante seria realmente “despesa” do governo.

No entanto, e aqui está a parte mais importante do post, Cafardo afirma que a dívida pública, “apesar” de todos esses pagamentos, aumentou em R$ 700 bilhões em 2021! Ora, se foram pagos em juros R$ 550 bilhões, isso significa que não só esses juros voltaram para o Tesouro, como o Tesouro sorveu R$ 150 bilhões adicionais dos poupadores!

Vou repetir o raciocínio para quem se perdeu. Imagine que você deve R$7, sendo que R$2 vencem neste ano. Se você pagasse esses R$2, sua dívida cairia para R$5, certo? Mas você não paga, você refinancia, ou seja, toma emprestado de novo. Sua dívida permanece em R$7. Mas, além disso, dessa dívida de R$7, você deve juros no valor de R$1. Você também não paga esses juros, você pede dinheiro emprestado para pagar. Sua dívida passa a ser de R$8. Além disso, você precisa gastar adicionalmente R$0,50 sem ter esse dinheiro e, portanto, precisa tomar emprestado mais R$0,50. Sua dívida vai a R$8,50. Portanto, desses R$8,50, R$7 são dívida antiga (das quais você refinanciou R$2 neste ano) e R$1,50 é dívida nova, sendo R$1 dos juros acumulados e R$0,50 de despesas novas. Voltando aos números: do R$1,91 tri, R$1,36 tri é dívida antiga refinanciada e R$0,55 tri de juros não pagos. Se os juros tivessem sido pagos, a dívida ficaria constante. Como não foram, a dívida teria aumentado em R$0,55 tri. Como aumentou em R$0,7 tri, temos que o governo gastou R$0,15 tri adicionais.

Note que, de todos esses “gastos”, nada, absolutamente nada, é “gasto dos rentistas”. O dinheiro volta todo, e mais um pouco, para o próprio governo. É este o “gastador”, o “impulsionador da demanda”. As amortizações e os juros pagos são transformados em títulos públicos e encarteirados pelos rentistas, que não podem pagar comida ou viagens com títulos públicos. O dinheiro dos rentistas (a dívida pública) já foi gasto no passado pelo governo. Os únicos gastos realmente adicionais em 2021 foram os R$150 bilhões, que se transformaram em dívida que deverá ser paga (ou rolada) no futuro. Portanto, se tem alguém aumentando a demanda agregada é o governo, não os “rentistas”. O dinheiro destes está preso, na forma de títulos públicos.

Mas a parte mais assustadora do artigo de Pedro Cafardo não é a completa ignorância sobre esses fatos simples. O que mais assusta (mas não surpreende) é a afirmação de que Haddad está longe de discordar de Lara Resende.

Como o BC é independente, não haverá como, por vias normais, influenciar o seu trabalho. No entanto, como já vimos, o Congresso aprova PECs como se troca de camisa, a depender da recompensa. Além disso, o mandato de Roberto Campos termina no fim de 2024. Portanto, não se pode descartar alguém de um perfil mais, digamos, alinhado ao de Lara Resende (quem sabe o próprio) a partir de 2025 no comando do BC. Por fim, a meta de inflação parece muito apertada para um governo que não vê “um pouco mais de inflação” como um problema.

O artigo de André Lara Resende será lido, no futuro, como a sua carta de apresentação para o emprego de banqueiro central alinhado com o governo. Está lá tudo o que um governo populista quer ouvir.

Tesouro RendA+: vale a pena?

O Tesouro vai lançar um novo tipo de título público, que servirá como uma espécie de título de aposentadoria. Chamado de Tesouro RendA+, a inovação desse novo título está em que, no vencimento, você recebe o montante em 240 suaves prestações, corrigidas pelo IPCA. Vale a pena? Depende da taxa de juros.

Este título vai competir com um título “normal”, que paga inflação + taxa de juros até o vencimento. Quando esse título normal vence, você pode pegar o dinheiro e reaplicá-lo. Então, a comparação deve ser feita entre esse título normal, que você pode reaplicar após o vencimento recebendo juros, com esse novo título, que você ”reaplica” recebendo zero de juros, pois as parcelas são reajustadas somente pela inflação.

Fazendo um cálculo simples. Digamos que você invista R$ 1.000 em um título Tesouro IPCA+ com vencimento em 10 anos e taxa de juros de IPCA+6% ao ano, sem pagamento de cupom intermediário. Daqui a 10 anos, você terá R$ 1.790,85, mais a inflação do período. Você pode pegar esse dinheiro e reaplicar. Digamos que, daqui a 10 anos, a taxa de juros de um título semelhante, com vencimento em 20 anos, seja de 3% ao ano (mais inflação), e você queira ir resgatando aos poucos o valor desse título nos 20 anos seguintes. Com essa taxa de juros (3%), você poderia resgatar R$ 9,93 por mês, corrigido pela inflação.

Agora vamos ao novo título. Digamos que a taxa de juros seja igualmente de 6% ao ano, de modo que o montante acumulado daqui a 10 anos sejam os mesmos R$ 1.790,85. Mas agora, a reaplicação tem juros zero, você resgata esse montante somente com o reajuste da inflação. Assim, a mensalidade nos 20 anos seguintes será simplesmente de R$ 7,46, corrigidos pela inflação, ou 25% menor do que no título “normal”.

Para compensar essa diferença, a taxa de juros paga pelo Tesouro RendaA+ deveria ser de 9,1% ao ano, mais a inflação. Claro que essa taxa varia de acordo com a premissa de juros na reaplicação quando do vencimento do título. Por exemplo, se assumirmos a premissa de taxa de juros de 6% no reinvestimento (sempre acima da inflação), a taxa do novo título deveria ser de 11,9% ao ano para igualar o rendimento do título “normal”.

Portanto, para saber se vale a pena o investimento, precisaremos ver a taxa de juros ofertada pelo Tesouro para esse novo instrumento. Se for a mesma de um título “normal”, obviamente não vale.

Balanço da economia no governo Bolsonaro

Chegando ao fim dos 4 anos de governo Bolsonaro, farei uma retrospectiva de seu governo do ponto de vista de políticas econômicas. Dividirei os eventos em positivos e negativos, de acordo com minha exclusiva e particular avaliação.

Eventos positivos:

– Reforma da Previdência: talvez a maior realização deste governo, a reforma da Previdência havia sido já “amaciada” durante o governo Temer, que não conseguiu levar adiante por conta do episódio Joesley. O governo Bolsonaro teve o mérito de retomar a discussão e conseguir aprovar uma reforma com o dobro da economia prevista na reforma de Temer. Teve a parceria de Rodrigo Maia no Congresso, o que não diminui o seu mérito, pelo contrário. A reforma aprovada está longe de ser suficiente, precisaremos discutir outra reforma em breve, mas o mérito dessa reforma foi ter aprovado o limite de aposentadoria por idade, agora é só aumentar a idade. O ponto negativo foi retirar categorias, como a dos militares, da reforma. Não era necessário para a aprovação, foi uma idiosincrasia do presidente.

– Aprovação de marcos regulatórios: reformas microeconômicas são tão importantes quanto as macro. O marco do saneamento, das ferrovias, a nova regulamentação do câmbio, a lei da liberdade econômica, são todas mudanças legislativas que permitirão, ao longo do tempo, um ganho enorme de eficiência dos investimentos.

– Autonomia do Banco Central: vivemos o ineditismo de um presidente eleito que não tem disponível o cargo de presidente do BC para nomear. Este é um avanço significativo para a segurança do arcabouço monetário brasileiro. A discussão sobre a autonomia já vinha amadurecendo, mas o governo Bolsonaro teve o mérito de aprová-la.

– Privatização da Eletrobrás: única privatização do governo Bolsonaro, mas uma privatização que vale por muitas. Veio às custas de vários jabutis que pesarão na contade luz do brasileiro nos próximos anos. Mas, apesar de tudo, melhor privatizada do que estatal. Privatizada, a Eletrobras poderá levantar o capital necessário para um plano de investimentos que permita aumentar a segurança energética do país.

Eventos negativos:

– Não encaminhamento das reformas tributária e administrativa. A tributária foi reduzida por Paulo Guedes a uma proposta de substituição dos impostos sobre a folha de pagamentos por algo como uma CPMF disfarçada, jogando fora anos de discussões em torno da PEC 45, que cria um IVA único. A administrativa passou longe de qualquer discussão séria.

– Ruído na relação com a Petrobras. Apesar de não ter havido interferência real nos preços, a troca constante de comando na estatal certamente não foi positiva para a empresa.

– Redução do ICMS sobre combustíveis e outras utilities. Os efeitos de curto prazo foram positivos (redução dos preços dos combustíveis), mas os efeitos de médio prazo serão negativos, pois os Estados precisam desses impostos para equilibrarem suas contas. A conta vai chegar mais à frente.

– Desmoralização da regra do teto de gastos. Para mim, a pior herança deste governo. Em outubro de 2020, Paulo Guedes chamou Rogério Marinho, então ministro do Desenvolvimento Regional, de “fura-teto”. Era a fase ortodoxa de Guedes. Um ano depois, Guedes protagonizou o que viria a ser conhecido como “waiver day”, em que jogou a toalha diante da mudança de critério para calcular o teto de gastos para o ano seguinte, 2022. O pior da pandemia já havia passado há muito, e ficou claro que o furo no teto ocorreu para turbinar os gastos em ano eleitoral. Com isso, legitimou-se qualquer desculpa para gastos adicionais, o que abriu caminho para a PEC da gastança proposta pelo governo eleito.

Considerando prós e contras, o balanço final do governo Bolsonaro na área econômica é, na minha opinião, regular. Podemos ver o reflexo disso nos preços dos ativos. Por exemplo, a bolsa denominada em dólar reflete tanto o movimento da bolsa quanto da moeda. A seguir, temos uma tabela com as rentabilidades em dólar dos principais índices de bolsa no mundo, no período que vai de 28/12/2018 a 28/10/2022 (véspera da eleição), da pior para a melhor:

  • Hong Kong: -42,6%
  • Seul: -12,0%
  • Londres: -4,9%
  • Ibovespa: -2,5%
  • Tóquio: +2,2%
  • Frankfurt: +8,4%
  • Shangai: +9,2%
  • Sidnei: +10,3%
  • México: +19,5%
  • Istambul: +24,6%
  • Bombaim: +40,1%

Podemos notar que a bolsa brasileira não foi a pior do mundo no período, mas ficou longe de ficar entre as melhores. Foi uma bolsa… regular.

Claro, o próximo governo, ao que tudo vem indicando, não promete ser melhor, muito pelo contrário. Mas, para quem esperava o “primeiro governo verdadeiramente liberal desde o descobrimento do Brasil”, acho que ficaram devendo.

O estranho mundo de Lara Resende

Para quem não tiver paciência de ler esse artigo de André Lara Resende, vou resumi-lo em poucas palavras: o BC fez mal ao país ao subir os juros, porque os gastos com juros tiram dinheiro das necessidades sociais mais prementes e, além disso, impulsionam a inflação, porque os juros pagos aos rentistas se transformam em consumo. Além de impulsionar a demanda, o BC erra ao não considerar que vivemos uma inflação de oferta, de modo que não adianta nada subir os juros.

No mundo segundo André Lara Resende, o BC deve fazer considerações sobre o gasto do Tesouro com juros antes de decidir sobre o nível da Selic. Segundo Lara Resende, é o BC, e só o BC, que determina o custo da dívida. Nesse estranho mundo, é o devedor quem determina a taxa de juros que vai pagar para se endividar.

Infelizmente, André Lara Resende não aceitou fazer parte do governo. Seria o complemento ideal para a fantástica equipe que temos até o momento na Fazenda. Com suas ideias, experimentaríamos o próximo nível de desorganização do mercado, que faria o período Dilma parecer um passeio no parque.

Brincando de empresário

Paulo Bernardo foi ministro das Comunicações no primeiro governo Dilma. Durante o seu período como ministro, os Correios conseguiram virar um lucro recorrente para a produção de prejuízos em série. Por isso, Paulo Bernardo tem autoridade para pontificar sobre a empresa, como faz nessa matéria do Valor Econômico.

Começando pelo fim: Bernardo não vê sentido em “privatizar para entregar a parte mais rentável e deixar para a outra (a parte estatal) as obrigações”. Tenho uma sugestão ao ex-ministro: não pare nos Correios. O governo deveria identificar todas as empresas “rentáveis” e estatizá-las. Afinal, que sentido tem deixar empresas rentáveis nas mãos da iniciativa privada, enquanto o governo fica só com o osso?

Os defensores dos Correios nas mãos do Estado recorrem à sua “função social”. Afinal, quem iria entregar cartas nos cafundós dos Judas, uma operação claramente deficitária? Sem prejuízo de que subsídios para esse tipo de operação seriam suficientes para esse tipo de problema, poderíamos estender esse raciocínio para qualquer tipo de necessidade. Por exemplo, alimentar o povo é uma necessidade social urgente. Assim, seria o caso de ter uma grande estatal que cuidasse da plantação, da produção e da distribuição de comida. Segundo Bernardo, melhor ainda se essa estatal fosse rentável. Assim, seria o caso de estatizar fazendas, indústrias e redes de supermercados, uma cadeia rentável e que não está cumprindo a sua função social, pois há brasileiros passando fome. O que o PT está esperando para anunciar esse plano?

Bernardo, logo no início da reportagem, afirma que os Correios precisam ter preços competitivos para concorrer com a iniciativa privada. Além disso, lembra que uma lei de 2011 permitiu aos correios atuar em áreas como logística, serviços financeiros e comunicação eletrônica, concorrendo com a iniciativa privada nessas áreas. Agora, pense um pouco: qual o sentido de uma estatal “concorrer” com a iniciativa privada? Afinal, a estatal existe tão somente para explorar “falhas de mercado”, onde a iniciativa privada não tem interesse em atuar. Não deveria haver competição, portanto. Aliás, com todas as suas amarras regulatórias e interesses políticos envolvidos, além do sequestro corporativo por parte dos empregados, não há mesmo como uma estatal concorrer com a iniciativa privada de igual para igual.

Os Correios não serão privatizados. O governo do PT prefere continuar brincando de empresário, com os resultados já conhecidos. Nenhuma surpresa aqui.

Longa vida à humanidade

57 anos.

Segundo a última tabela de mortalidade do IBGE, minha expectativa de vida é de mais 23 anos. Trata-se de uma estimativa bayesiana, ou seja, condicionada ao fato de que cheguei aos 57 anos. Hoje, o brasileiro que tem 57 anos pode esperar viver até os 80 anos, ao passo que o brasileirinho que nasce hoje pode esperar viver até os 73,5 anos. Essas estimativas são para os homens, para as mulheres são uns 3 anos acima, na média. Também trata-se de uma estimativa para o brasileiro médio, sem considerar a renda. Brasileiros que, como eu, estão no topo da pirâmide de renda (ganhos acima de 10 salários mínimos), certamente têm uma expectativa de vida maior do que a média nacional. Feliz ou infelizmente, o IBGE não faz o cálculo segundo essa estratificação.

Em 1965, quando nasci, minha expectativa de vida era de 52,5 anos. Ao atingir 57 anos, e tendo mais 23 anos pela frente, já ultrapassei em muito aquela expectativa. Se eu tivesse falecido há 4,5 anos atrás, todos seriam unânimes em dizer que eu era muito jovem para partir.

O IBGE não tem uma bola de cristal. As expectativas de vida são calculadas com base no perfil de mortalidade atual. As pessoas vão morrendo cada vez mais tarde, puxando para cima a expectativa de vida ao nascer. Durante a pandemia, a expectativa de vida recuou porque houve um excesso de óbitos em relação ao normal estatístico. Esse recuo foi somente um efeito estatístico, não uma regressão civilizacional.

Civilização, esse é o nome do jogo. A história do progresso civilizatório é, no fundo, uma história dos avanços da humanidade na tarefa de escapar das garras da morte. A humanidade nasce na natureza material, mas aspira à imortalidade divina. A civilização é esse caminhar do barro para o divino. Não à toa, quando os sociólogos da ONU criaram o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) para substituir o PIB como medida do bem-estar das nações, escolheram a expectativa de vida como um dos fatores relevantes, além do nível educacional e do próprio PIB.

Hoje, quando falo com minha filha do outro lado do mundo usando o vídeo do WhatsApp, não consigo deixar de me lembrar dos Jetsons, desenho animado da minha época. Além dos carros voadores e da empregada-robô, eles tinham esses videofones, que eram coisa de ficção científica. Hoje, poucas décadas depois, temos o mesmo aparelho disponível e massificado. Quando vejo um bebê nos braços de sua mãe, ponho-me a imaginar o que o futuro lhe está preparando. Coisas que não verei com esses olhos, assim como meus antepassados não viram os “videofones”. E esse avanço que faz parte de nossas vidas é uma diminuta fração da miríade de avanços que permitiram à humanidade chegar um pouco mais próxima da imortalidade.

Há uma espécie de seita catastrofista, que prevê o apocalipse como resultado dessa tentativa da humanidade de escapar de seu destino mortal. A natureza, tal qual madrasta traída, não suportaria essa presunção dos Homens, e se vingaria sem dó, afogando a humanidade em alagamentos, tufões, frios marcianos e calores mercurianos, sem direito a uma arca para o salvamento. Os índios, em sua pureza selvagem, seriam o símbolo máximo desse respeito pelo destino traçado pela mãe-natureza. O culto aos índios é parte indissociável dessa purificação prometida pela seita ambientalista, em que não resta outra saída a não ser abrir mão da busca pela imortalidade. A civilização, como desafio aberto à mortalidade, será castigada, e a única saída é imitarmos os índios em seu respeito ao nosso destino incontornável.

Particularmente, prefiro pensar que a civilização encontrará as respostas aos desafios impostos pela natureza, como tem sido a regra ao longo dos séculos. Nesses dias, o hemisfério norte tem enfrentado ondas de frio extremo, e já se conjectura se não teriam sido causados pela ação do Homem na natureza. Pode até ser que sim. A questão, no entanto, é que muito menos seres humanos perecem hoje de frio do que há um século, mesmo com todas as supostas catástrofes causados pelas mudanças climáticas. A expectativa de vida continua subindo, apesar de tudo. Se Malthus pudesse ver o grau de riqueza e prosperidade que usufruímos hoje (cujo sinal é o aumento da expectativa de vida), mesmo com 8 bilhões de almas sobre o planeta, certamente revisitaria as suas premissas.

As conquistas civilizatórias não abrangem toda a humanidade, dizem. A péssima distribuição de renda, entre países e dentro dos países, não permite que todos os homens desfrutem dessa centelha de imortalidade na mesma proporção. Verdade. Como também é verdade que a expectativa de vida vem crescendo no mundo inteiro, sem exceção. Ao mesmo tempo em que a expectativa de vida ao nascer de um, digamos, etíope médio, hoje, é a mesma de um americano em 1950 (67 anos), o mesmo etíope tinha expectativa de vida ao nascer de apenas 33 anos em 1950. Os ganhos civilizatórios chegam para todos, ainda que em velocidades diferentes, determinadas pelos arranjos institucionais dos países.

Fazer 57 anos e ainda ter 23 anos de expectativa de vida pela frente seria inimaginável para o brasileiro de 100 anos atrás. Quando vejo um bebê, olho para o futuro com otimismo. Apesar de tudo, a humanidade caminha em direção à imortalidade. Nunca seremos imortais, claro, mas a nossa capacidade de nos arrancar do determinismo da natureza já está mais do que provada. Longa vida à humanidade, a obra-prima de Deus.

O significado da palavra ‘torcer’

Tenho ouvido ultimamente, com frequência crescente, a palavra “torcer”, em referência ao próximo governo. Alguns, como o autor de um artigo publicado hoje, afirmam que torcerão pelo sucesso do novo governo, pois o seu fracasso poderia fazer ressurgir o “inominável”.

Outros, inconformados com a derrota eleitoral, afirmam que sua torcida é pelo fracasso retumbante, para que sirva de lição aos que não votaram “corretamente” e, assim, possamos, na próxima eleição, nos livrar da peste que assumirá o governo.

Fiquei pensando nessa palavra, “torcer”. Torcida é uma espécie de “pensamento positivo”, em que mentalizamos o resultado desejado. Eu sei que os mais esotéricos não concordarão com isso, mas a influência da torcida na realidade das coisas é zero. Nenhum átomo mudará de lugar, por mais que eu mentalize.

Existe uma torcida que funciona, ainda que de maneira limitada: aquela que comparece ao estádio para empurrar o seu time com seus gritos de guerra. Neste caso, a torcida chega aos ouvidos dos jogadores, animando-os. Obviamente, a torcida no sofá de casa tem influência zero.

Sendo assim, para que serve a “torcida”? Na final da Copa, a pergunta mais comum era para qual time eu iria torcer. Obviamente, minha escolha era irrelevante para o resultado, mas o sentido da pergunta era “qual resultado me traria pessoalmente mais satisfação”. Esse é o sentido da palavra “torcer” em grande parte dos casos.

Torcer pelo “sucesso” ou pelo “fracasso” do governo Lula, portanto, não vai mudar uma vírgula do resultado final, mas trará satisfação pessoal ao torcedor, a depender do resultado. Aliás, as próprias palavras “sucesso” ou “fracasso” são muito preto no branco, em um mundo dominado pelo cinza das narrativas. Quem determinará o sucesso ou fracasso do governo Lula, a não ser os próprios torcedores? Haverá resultados para todos os gostos, como é da natureza. E todos, no final, encontrarão razões para se dizerem “satisfeitos” com o resultado.

De minha parte, torço para que tenhamos todos um Natal cheio de Paz e Luz, que ilumine as nossas cabecinhas limitadas e dissolva as nossas certezas que nos separam dos nossos irmãos, os homens. Que o Natal nos lembre que sempre podemos fazer algo mais do que simplesmente torcer pela Paz. Essa é a minha torcida.

De onde menos se espera, é que não sai nada mesmo

O ministro da Fazenda anunciou a escalação do time que vai entrar em campo no dia 2 de janeiro. O torneio é difícil, mas os nomes escolhidos para as duas principais posições do time nos dão a esperança do título.

Para a secretaria de política econômica, foi escalado um meia cerebral, capaz de formular a estratégia em campo. Com um doutorado em economia pela Pennsylvania University, o indicado foi professor visitante na Stanford University e é professor na FGV. Com uma bagagem acadêmica respeitável, o craque tem tudo para não decepcionar.

Já para a secretaria do tesouro, responsável pela estratégia de rolagem da dívida pública, temos um engenheiro com doutorado em economia por Chicago e experiência de vários anos em postos no FMI e no Banco Central Europeu. São raras as equipes que podem contar com um volante tão refinado, que sai jogando tão bem quanto defende.

Com esses dois na retaguarda, o nosso ministro da Fazenda pode partir para o ataque com tranquilidade, fazendo o que sabe: negociar politicamente as medidas necessárias para levar à frente a política econômica do governo.

Animado? Pois é. Os curricula acima eram os de Marcos Lisboa e Joaquim Levy em 2003, quando foram indicados, respectivamente, como secretários de política econômica e do tesouro pelo então ministro da Fazenda, Antônio Palocci.

Vinte anos depois, alguns tinham a esperança de que “o mais tucano dos petistas” escalasse um time tão forte quanto foi o de 2003. A convocação anunciada ontem, no entanto, deve ter partido corações.

Guilherme Mello foi o escalado para a secretaria de política econômica. Há muito tempo na órbita de Lula, sua convocação já era caçapa cantada. Doutor em economia pela Unicamp e professor na mesma universidade, é desenvolvimentista-raiz.

Rogério Ceron, convocado para a posição de secretário do tesouro, foi secretário municipal de finanças na gestão Haddad na prefeitura de São Paulo. É auditor de carreira, e tem mestrado em economia, adivinha por qual universidade.

Com esses dois “craques” na retaguarda, o ministro da Fazenda poderá fazer o que não sabe fazer de melhor: articulação política. Talvez seja essa a nossa única esperança: a equipe é tão fraca, que talvez não consiga emplacar nenhum de seus grandiosos projetos, o que já será uma benção para o país. Mas essa é só uma esperança.

As reações a essas nomeações se dividem em três tipos: 1) aqueles que amaram, porque acreditam em um projeto desenvolvimentista para o país; 2) aqueles que não se surpreenderam, porque de onde você menos espera é que não sai nada mesmo e 3) aqueles que se surpreenderam, pois esperavam um Lula de 2003, cuja expressão máxima seria um Haddad ponderado e técnico. Está aí.

Eu me incluo no grupo 2. Aos amigos do grupo 3, a escolha é continuar se iludindo, ou juntar-se a um dos outros dois grupos.

Prepare o seu coração

Abaixo, temos o parágrafo inicial do capítulo “Uma agenda econômica para resgatar o Brasil”, do livro “Economia pós-pandemia”. Dá uma lida antes de continuar.

O que tem de especial esse livro? Ele foi organizado pela futura ministra da gestão, Esther Dweck, e mais três economistas da Unicamp, dentre os quais Guilherme Mello, que provavelmente fará parte da equipe de Fernando Haddad.

Esther comandará uma pasta que foi desdobrada do Planejamento, que, por sua vez, foi desdobrada da Economia. O interessante é que esses desdobramentos não ocorreram para atender a interesses políticos, pois os ministérios criados foram, até o momento, entregues a pratas da casa. Trata-se, de fato, de um estilo de governo mais, digamos, balofo. Mas este não é o ponto do post.

A questão é que nomeação da economista da UFRJ é mais uma estaca nos coraçõezinhos sensíveis dos economistas tucanos e farialimers, que esperavam alguma responsabilidade no trato da economia. Resta, de alguma relevância, os nomes do ministro do Planejamento e dos secretários de Política Econômica e do Tesouro, subordinados ao ministro da Fazenda. Para aqueles que ainda esperam alguma luz, sugiro prepararem o coração.

Uma bola dentro

O IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Brasileira) de 2021 foi divulgado em setembro. O Ceará está no pelotão da frente, com nota 4,4, ao lado de Pernambuco e São Paulo. Só perde para Paraná (4,6) e Goiás (4,5). É notória a experiência de Sobral, replicada em todo o estado, e que permite ao Ceará ombrear com estados muito mais ricos em efetividade do aprendizado no nível mais básico.

A nomeação de Camilo Santana e, principalmente, Izolda Cela, para o ministério da educação, dois nomes envolvidos na experiência educacional do Ceará, foi elogiada por think tanks respeitados, como o Centro de Políticas Educacionais da FGV e o Instituto Todos Pela Educação. Aliás, a crítica à nomeação de ambos veio por parte de setores mais à esquerda, que criticam justamente a parceria de ambos com institutos desse tipo.

Mas o melhor selo de qualidade dessas indicações veio por parte de um professor aposentado da Federal do Ceará, que criticou o fato de que o Ceará apenas “treina os alunos para irem bem no IDEB”, ao invés de receberem uma educação que permita “acesso à cultura e à vida cidadã”. Quer melhor testemunho de que o Ceará está no caminho certo?

O futuro governo Lula tem recebido aqui as mais duras críticas com relação às suas escolhas na área econômica. Mas é preciso elogiar quando fazem algo certo, como parece ser o caso. O último ministro da educação decente que tivemos foi José Mendonça Filho, no governo Temer, que patrocinou uma ampla reforma do ensino médio. Depois disso, o governo Bolsonaro parecia mais preocupado em fomentar colegios cívico-militares do que formular politicas públicas para a área. Sem contar que alcançou a façanha de ter nada menos que 5 ministros da educação em 4 anos, o que, por si só, já indica o caos em que se transformou o setor no governo que ora vai se encerrando.

O governo federal tem diretamente sob sua tutela apenas as universidades federais e as escolas técnicas federais. Mas é também responsável pelas grandes políticas públicas que serão seguidas pelas escolas estaduais e municipais. Serão essas políticas públicas, seguidas com perseverança ao longo de anos, que permitirão que a educação básica alcance os seus objetivos. É o que a experiência do Ceará parece demonstrar.