Entendendo a relação dívida/PIB

Muito se tem falado sobre a sustentabilidade da dívida pública brasileira. As discussões se dão em torno da relação dívida/PIB, ou quanto a dívida representa do PIB. A ideia desse indicador é simples: como o PIB é o conjunto de todos os bens e serviços produzidos em uma economia, e a dívida pública será, no final do dia, paga com os impostos arrecadados, quanto maior o PIB maior será a capacidade do governo de arrecadar impostos para pagar a sua dívida.

Há dois conceitos de dívida: bruta e líquida. A dívida bruta é formada por todos os títulos emitidos pelo governo para financiar suas atividades. Quando você entra no Tesouro Direto, todos os títulos ali disponíveis para a compra fazem parte da dívida do governo. A dívida líquida, por outro lado, desconta as aplicações do governo, ou seja, as operações onde o governo é credor. Segundo dados de outubro de 2022, as dívidas bruta e líquida do governo eram as seguintes:

Dívida Bruta: R$ 7,298 trilhões (dívida interna: R$ 6,417 tri / dívida externa: R$ 0,881 tri)

Dívida Líquida: R$ 5,557 trilhões

A diferença entre dívida bruta e líquida (R$ 1,741 trilhões) se deve principalmente às aplicações em reservas internacionais, que somavam R$ 1,595 trilhões em outubro.

Daqui em diante, utilizaremos a dívida bruta como indicativo de endividamento do país. Este é o indicador normalmente usado pelos analistas, pois é muito difícil avaliar a liquidez dos ativos do governo. Será que o governo consegue se desfazer facilmente de suas reservas para pagar a sua dívida? Será conveniente fazer isso? No passado, o dinheiro emprestado pelo governo para o BNDES chegou a representar, em dinheiro de hoje, algo como R$ 800 bilhões. Quanto desse dinheiro poderia ser retomado para pagar a dívida? Questões desse tipo fazem com que a dívida bruta seja a preferida para se fazer análise da solvência de um país.

O mecanismo de evolução da relação dívida/PIB

A relação dívida/PIB é matemática. Vimos acima que temos uma dívida bruta no valor de R$ 7,298 trilhões, o que, dividindo por um PIB de R$ 9,503 trilhões, significa 76,8% do PIB.

Os fatores que influenciam essa relação são os seguintes: custo da dívida, crescimento do PIB, e superávit primário. A fórmula é a seguinte:

Ou, de outra forma:

Ou

Note, então, que, tudo o mais constante, um crescimento do PIB de 5% fez com que a relação dívida/PIB se reduza de 76,8% para 73,1%, uma redução de 5% (76,8%/73,1% – 1 = 5%) ou 3,7 pontos percentuais.

Podemos fazer o mesmo exercício para os juros. Digamos que o custo da dívida seja de 5% ao ano. Considerando crescimento zero e superávit primário zero, temos:

Ou

Temos então que a relação dívida/PIB cresceu de 76,8% para 80,6%, ou seja, 5% (80,6% / 76,8% – 1 = 5%), ou 3,8 pontos percentuais.

Por fim, vamos considerar que tanto os juros quanto o crescimento sejam zero, e o superávit primário tenha sido de 5% do PIB. Temos então:

Ou

Neste caso, a dívida foi reduzida em 5 pontos percentuais.

Agora que nos familiarizamos com a fórmula, vamos aplicá-la à vida real.

Estimando a relação dívida/PIB em 2023

Para estimar a relação dívida/PIB em 2023, precisamos de estimativas para o custo da dívida, para o crescimento do PIB e para o superávit primário em 2023. Vejamos cada um desses pontos.

Custo da dívida: o custo da dívida são os juros pagos pelo governo em sua dívida. A taxa Selic remunera somente uma parte da dívida (as LFTs), enquanto uma outra parte é indexada à inflação (NTN-B) e uma terceira parte é prefixada (NTN-F). O governo publica mensalmente o custo da sua dívida, que é uma composição dessas três partes. No relatório de outubro, o custo da dívida estava em 10% ao ano, que é uma composição dos 13,75% da Selic cobrada nas LFTs com taxas mais baixas dos títulos prefixados, vendidos ao público no passado. Qual será o custo da dívida em 2023? Certamente mais alto do que o nível atual, dado que os títulos prefixados, hoje, estão em nível mais alto do que no passado. Então, trabalharemos com um custo da dívida de 13% para 2023.

Crescimento do PIB: lembre-se que estamos trabalhando com o crescimento nominal do PIB (crescimento real + inflação). O relatório Focus do Banco Central estima um crescimento real de 0,75% para o PIB em 2023. O IPCA estimado pelo mesmo relatório é de 5,1%. No entanto, o IPCA é um índice de inflação ao consumidor, e não serve para os nossos objetivos aqui. Para calcular o crescimento nominal do PIB, precisamos usar um outro índice de inflação, chamado de deflator do PIB, que considera todos os preços da economia, na proporção em que cada produto ou serviço contribui para o PIB, historicamente, o deflator do PIB tem ficado cerca de 1,5 pontos percentuais acima do IPCA. Não é garantido, mas apenas uma aproximação. Assim, o crescimento nominal do PIB seria de 0,75 + 5,1 + 1,5 = 7,35%

Superávit primário: de acordo com o relatório Focus, o governo vai produzir um déficit primário em 2023 da ordem de 0,95% do PIB.

Podemos, então, aplicar a nossa fórmula:

Ou seja, se essas premissas estiverem corretas, a relação dívida/PIB do governo deverá crescer cerca de 5 pontos percentuais no ano que vem. Isso acontece por dois motivos:

  1. A taxa de juros é maior do que o crescimento da economia e
  2. Vamos produzir déficit primário.

Claro que isso não considera eventuais receitas extraordinárias, como dividendos de estatais ou privatizações. E não considera a mais extraordinária das receitas: a inflação.

A inflação entra no jogo

Até o momento, lidamos apenas com grandezas nominas, tanto juros quanto crescimento do PIB. Vamos reescrever a fórmula acima explicitando a inflação. Note que multiplicamos e dividimos pelo mesmo número, o que não muda o resultado final.

Note que substituímos o custo da dívida e o crescimento do PIB nominais por reais (após a inflação), e multiplicamos o resultado pela inflação. O resultado é exatamente o mesmo, apenas explicitamos a inflação na fórmula. Considerando uma expectativa de 6,6% de inflação (deflator do PIB) para 2023, temos juros reais de 6% (1,13/1,066)-1 e crescimento real de 0,75% (Relatório Focus).

Agora preste muita atenção, porque é neste ponto que a inflação trabalha a favor do governo.

Imagine que a inflação de 2023 surpreenda para cima, e que o deflator do PIB feche não em 6,6%, mas em 13%. O que acontece com a relação dívida/PIB? Vamos por partes.

À primeira vista, poderíamos pensar que a inflação é neutra nessa fórmula, porque aumenta tanto o custo da dívida quanto o crescimento do PIB de maneira igual. Mas a economia não funciona desta maneira.

Quanto temos uma surpresa inflacionária, ela afeta inicialmente o PIB. O crescimento nominal do PIB aumenta imediatamente, porque o PIB é calculado com base nos preços das mercadorias e serviços vendidos.

Em segundo lugar, uma surpresa inflacionária afeta positivamente a arrecadação de impostos. Como os preços dos produtos e serviços são maiores, os impostos calculados sobre estes produtos e serviços aumenta. Portanto, a inflação, em um primeiro momento, ajuda a diminuir o déficit das contas públicas.

Agora é que vem o truque: a surpresa inflacionária não faz o custo da dívida aumentar em um primeiro momento. O que ocorre é que a taxa de juros real diminui. Ou seja, os credores da dívida, em um primeiro momento, perdem retorno real, mantendo o retorno nominal de seus investimentos. Vimos isso acontecer em 2021, quando a inflação surpreendeu para cima, mas o BC demorou a subir a taxa de juros. Resultado: rentabilidade real negativa (os investimentos perderam da inflação). Isso sempre acontece assim: quando ocorre uma surpresa inflacionária, o BC (e o mercado) demoram a se adaptar ao novo nível de inflação. Portanto, em um primeiro momento, a inflação ajuda a diminuir a relação dívida/PIB.

Vejamos na fórmula, em que consideraremos juros nominais constantes em 13% – portanto, juros reais de zero, e o mesmo déficit primário, só para medir o impacto na relação dívida/PIB somente em função da surpresa inflacionária.

Observe como a relação dívida/PIB mal subiu, mesmo produzindo um déficit primário de 0,95%. Esta é a mágica da surpresa inflacionária!

Claro que este jogo não termina em um ano. No ano seguinte (2024), com a surpresa inflacionária, o BC se move aumentando a taxa Selic e o mercado se movo, pedindo juros mais altos para rolar a dívida. É o que vamos viver em 2023: até 2022, a surpresa inflacionária, combinada com receitas extraordinárias (principalmente dividendos de Petrobras e privatização da Eletrobrás), permitiram até a redução da relação dívida/PIB. A partir do ano que vem, com a Selic mais alta e os investidores pedindo taxas de juros mais altas, teremos um salto na relação dívida/PIB, conforme o cálculo que vimos acima. A não ser que…

A não ser que tenhamos outra surpresa inflacionária. A estabilização da relação dívida/PIB via inflação requer que sempre tenhamos surpresas inflacionárias. A inflação precisa sempre estar acima do que os agentes econômicos e o BC esperam. Assim, o PIB nominal anda na frente dos juros nominais, “estabilizando” a relação dívida/PIB. Por isso, dizemos que a inflação é a maneira perversa de “queimar” dívida. O problema é que não queima somente dívida. Queima também o orçamento dos brasileiros, principalmente os mais pobres.

A trajetória da relação dívida/PIB no longo prazo

Até agora, nos dedicamos a calcular a relação dívida/PIB somente em 2023. No entanto, as discussões sobre o tema sempre enfatizam a trajetória dessa relação no longo prazo. Afinal, a dívida está ou não em trajetória explosiva?

Para descobrir isso, basta repetir o mesmo exercício que fizemos para 2023 para os anos seguintes. Para isso, vamos considerar inicialmente as premissas do Relatório Focus, que estão na tabela a seguir:

Para os nossos cálculos, vamos considerar o custo da dívida igual à taxa Selic, e o deflator do PIB igual ao IPCA + 1,5%. Usando a fórmula acima ano a ano e as premissas da tabela, teríamos a seguinte trajetória da relação dívida/PIB:

Note que, mesmo com a produção de algum superávit primário a partir de 2028, a relação dívida/PIB continua em ascensão. Isso acontece porque o crescimento econômico é muito menor do que o nível dos juros.

Para estabilizar a relação dívida/PIB em, digamos, 80% (que já é um nível bastante alto), deveríamos ter um superávit primário na faixa de 2,7% do PIB. Considerando que, no ano que vem, deveremos rodar com um déficit de aproximadamente 2% do PIB (nível maior do que aparece no relatório Focus, que ainda não ajustou para o rombo provocado pela PEC fura-teto), o esforço fiscal deveria ser de aproximadamente 4,7% do PIB, ou, em dinheiro de hoje, algo como R$ 450 bilhões. O desafio é encontrar onde economizar este montante no orçamento público todo ano.

Uma outra alternativa é obter esses R$ 450 bilhões por ano vendendo patrimônio. Mas privatizações não parecem ser o forte do governo que vai entrar.

Uma terceira alternativa, claro, é aumentar a carga tributária em 4,7% do PIB. Para um país que já tem uma carga tributária muito acima da média para países em desenvolvimento, parece pouco factível.

Uma quarta alternativa, que é aquela preferida pelo governo que irá iniciar em 01/01/2023, é o aumento do crescimento econômico. Se o crescimento aumentar, aumenta o denominador da relação dívida/PIB, diminuindo o seu nível. Para estabilizar a dívida em 80% do PIB, e mantendo as outras premissas de inflação, juros e superávit primário constantes, precisaríamos de um crescimento do PIB entre 5% e 6% ao ano. Nem nos tempos de ouro da primeira década conseguimos um crescimento neste patamar. Claro que, se o crescimento for mais alto, maior será a arrecadação, o que pode melhorar o superávit primário. Isso se os políticos não crescerem o olho para esta receita adicional, mantendo baixo o superávit primário, que é normalmente o que ocorre.

Por fim, a alternativa que ninguém quer é uma inflação mais alta. Para simular esta alternativa, precisamos assumir a premissa de que ocorre surpresa inflacionária. Caso contrário, as taxas de juros sobem para compensar a inflação, elevando a relação dívida/PIB. Então, para simularmos o efeito da surpresa inflacionária, vamos assumir que as taxas de juros no ano seguinte sempre são 6 pontos percentuais maiores do que a inflação do ano anterior, simulando a reação do mercado/BC ao aumento da inflação. E vamos assumir que a inflação no ano seguinte sobe o suficiente para manter constante a relação dívida/PIB em 80%. Assumindo essas duas premissas, chegamos a uma inflação de 37% ao ano em 2030. Ou seja, apenas para manter a relação dívida/PIB constante em 80%, e assumindo as premissas de crescimento e superávit que temos hoje no Focus, a inflação precisaria explodir.

Resumindo, então, o que é necessário para estabilizar a relação dívida/PIB em 80%:

  1. Economizar R$ 450 bilhões por ano ou
  2. Vender patrimônio no valor de R$ 450 bilhões por ano ou
  3. Aumentar a carga tributária em 4,7% do PIB ou
  4. Acelerar o crescimento para algo entre 5% a 6% ao ano ou
  5. Deixar a inflação crescer até 37% em 2030 ou
  6. Uma combinação das alternativas acima

Quando leio sugestões de “arcabouço fiscal” atrelados a um determinado nível de dívida, o nível desejado de dívida sempre está próximo de 60% do PIB. O esforço descrito acima é somente para manter a relação dívida/PIB em 80%. Nem queira saber o esforço necessário para baixar essa relação para 60%. Por isso, desconfie sempre quando ouvir alguém dizendo que é possível ter uma regra fiscal que combina aumento de gastos com controle da dívida pública. Como diria o Padre Quevedo, “non exziste”.

Longa vida à democracia brasileira!

Jamais diria que a presença do presidente e do vice-presidente do TSE, o tribunal que conduziu as eleições no Brasil, na festa de celebração da diplomação do presidente eleito, é imoral.

Jamais afirmaria que ministros do STF frequentarem a casa de um advogado com interesses na Suprema Corte é um retrato acabado da república brasileira.

Jamais ousaria dizer que os ministros só fazem isso porque estão certos de que nada nem ninguém poderá condená-los. Afinal, sendo a encarnação do Estado Democrático de Direito, não podem fazer nada errado ou imoral.

Não afirmei nada do que vai acima, pois tenho consciência de que não posso e não devo atacar as sacrossantas instituições democráticas.

Longa vida à democracia brasileira!

Truque contábil

O trabalho de lavagem de reputação do novo ministro da Fazenda continua a todo vapor. Hoje, temos uma reportagem no Valor Econômico, cujo título e sub-título nos informam que Haddad reduziu significativamente a dívida do município de São Paulo mediante “renegociação”.

Sim, é verdade. Nos estertores do governo Dilma, em agosto de 2015, o então prefeito de São Paulo chegou a um acordo com a União, em que o indexador da dívida do município foi trocado retroativamente de IGP-DI + 9% ao ano por IPCA + 4% ao ano. Ou seja, a dívida diminuiu porque o município deu um “calote” na dívida, mas chama de outro jeito. A dívida não sumiu, foi absorvida pela União mediante uma mágica contábil.

A atual gestão municipal também conseguiu uma redução significativa da dívida. Para isso, entregou o Campo de Marte para a União. Ou seja, houve o pagamento da dívida mediante troca de ativos. Pode-se discutir o valuation do Campo de Marte, mas estamos falando de um pagamento real, não de um truque contábil.

Apesar do esforço do repórter em mostrar um Haddad responsável fiscalmente, o ex-prefeito, como ministro da Fazenda, não pode propor a “troca de indexador” para os credores da dívida federal. A diminuição da dívida só será possível se houver pagamento real, não contábil. Vamos ver qual será o coelho que o novo ministro tirará da cartola.

Por que estão indo embora?

O advogado Antônio Cláudio Mariz de Oliveira escreve artigo tocante sobre o êxodo de brasileiros, principalmente jovens.

Ele candidamente se pergunta por quê. Afinal, não estamos enfrentando nenhuma calamidade como as que justificaram os grandes fluxos migratórios. Não tendo encontrado resposta, Mariz, então, aponta o dedo para o “desprezo, arrogância, autossuficiência, individualismo, preconceito e discriminação” desses desertores, fruto de uma herança “imperial, patrimonialista, escravocrata”.

A solução? “Solidariedade, compreensão, desprendimento, amor”.

Difícil saber por onde começar. Talvez pelo curriculum do autor. Antônio Cláudio Mariz de Oliveira é decano de uma classe de advogados chamados de “garantistas”. Sua arte está em explorar os inúmeros meandros do Código Penal brasileiro para livrar a cara de seus clientes endinheirados, que permanecem no Brasil por patriotismo, e não porque aqui a lei não vale para todos. A isso chamam de Estado Democrático de Direito.

A disfuncionalidade da nossa justiça certamente é um fator que nos leva ao atual estado de coisas desanimador, a tal ponto que expulsa nossos melhores cérebros. Preferem migrar para países sérios, onde partidos como o PT, pilhado no saque do Estado não uma, mas duas vezes, já estaria proscrito faz tempo. Aqui em pindorama, tratamos o seu chefão como um grande estadista.

Instituições fortes (e a justiça para todos é uma das principais) é condição sine qua non para o desenvolvimento de um país. O que os jovens podem esperar de um país onde ter sido advogado do PT ou de seu chefão é condição suficiente para a sua indicação à mais alta corte? Será que o patrimonialismo vituperado pelo advogado é pecado de quem está abandonando o barco? Ou estão indo embora justamente porque não fazem ou não querem fazer parte das panelinhas do poder?

Não, meu caro Mariz. Os jovens estão indo embora não porque lhes falte solidariedade ou gratidão. Estão indo embora porque não veem futuro em um país que funciona na base das chicanas, tão bem exploradas pelos amigos do rei.

As consequências virão depois

Estive em Buenos Aires pela última vez em janeiro de 2014. Lembro que, na época, estava em discussão recolocar as catracas nas estações de trem metropolitano. Quer dizer, as catracas existiam, mas estavam deterioradas por falta de uso. Afinal, há muitos anos os trens em Buenos Aires eram de graça. Obviamente, a discussão sobre a volta da cobrança estava caliente.

Para ir a Tigres, precisávamos tomar um trem até uma determinada estação, de onde tomaríamos outro trem, turístico, até a cidade. O primeiro trem era “gratuito”, enquanto o segundo era pago.

Sem exagero: a viagem no primeiro trem foi aterrorizante. Totalmente deteriorado, não sei como aquilo tinha autorização para rodar. Fora que demorou uma eternidade para chegar.

Já tive oportunidade de escrever sobre a experiência do teleférico do Alemão, também “gratuito” e totalmente sucateado, a ponto de interromper o serviço.

A “gratuidade” dos serviços públicos parece algo simples: o governo arrecada impostos e financia os investimentos necessários e a manutenção do serviço. Por que, então, invariavelmente, a coisa não funciona?

Vamos separar o problema em duas partes: a primeira é o financiamento, a segunda é a gestão.

O financiamento do serviço público é um problema de funding sustentável ao longo do tempo. O exemplo do teleférico do Alemão é clássico: o financiamento inicial foi suficiente para construir e manter o serviço durante um certo tempo. Mas outras prioridades foram comendo as verbas, ao mesmo tempo em que as receitas minguaram. Resultado: faltou dinheiro para manter o serviço. Aposto que este foi também o problema com os trens “gratuitos” de Buenos Aires.

O segundo problema tem mais a ver com serviços assumidos integralmente pelo Estado. É o caso da saúde (SUS) e educação públicas. À falta crônica de verbas, junta-se a incompetência administrativa e/ou os interesses corporativos dos funcionários públicos. Não seria, em princípio, o caso do transporte público, que continuaria sendo administrado pelas empresas privadas, a não ser que se crie uma grande estatal de transportes públicos. Não quero nem pensar nessa possibilidade.

Enfim, se a tarifa zero vingar, será uma medida recebida com banda e fanfarra. As consequências, como diria o conselheiro Acácio, virão depois.

Ministro fake

Fernando Haddad, em sua primeiríssima fala como futuro ministro da Fazenda, já mostrou a que veio: chamou de “fake news” a fama de “gastador” que teria. Como “prova”, vem dizendo que foi o primeiro prefeito a obter grau de investimento no Brasil.

A agência de checagem Gutercheck, aquela que mergulha fundo debaixo da superfície dos fatos, foi checar a informação.

Para começar, vamos aos fatos, aqueles que as agências comuns normalmente checam. Não, Fernando Haddad não foi o primeiro prefeito a conseguir grau de investimento. A cidade do Rio de Janeiro já contava com grau de investimento desde, pelo menos, 2014, quando Haddad conquistou o seu grau de investimento, em novembro de 2015. Portanto, essa afirmação do ex-prefeito não passaria pelo crivo nem das agências que se atém à superfície dos fatos.

Mas este está longe de ser o principal problema da fala do futuro ministro. Muito longe. Temos aqui, para não variar, uma mistura de mistificação com desonestidade intelectual. Vejamos.

O município de São Paulo obteve o seu rating da agência Fitch em novembro de 2015. Naquele momento, o rating soberano do Brasil pela mesma agência era BBB-, rebaixado de BBB no mês anterior, mas, ainda assim, grau de investimento. O rating atribuído à cidade de São Paulo, assim como ao município do Rio de Janeiro, foi exatamente igual ao rating soberano, BBB-, grau de investimento. À época, este era o rating também dos estados de São Paulo, Santa Catarina e Paraná. Ou seja, o rating desses entes subnacionais era (e sempre foram) o mesmo do Brasil. Isso acontece porque, no final do dia, os entes subnacionais “não quebram”, são sempre ajudados pela União. Portanto, não há mérito algum, por parte do prefeito, no fato de a cidade de São Paulo ter recebido “grau de investimento”.

Em dezembro de 2015, apenas um mês depois de ter “recebido” o investment grade, a cidade de São Paulo foi rebaixada para BB+ (grau especulativo), juntamente com o rating soberano brasileiro. Seria interessante confrontar o futuro ministro com esse fato. Não foi culpa dele, assim como não havia sido mérito dele anteriormente. Mas, para manter a coerência do discurso, Haddad precisaria explicar esse rebaixamento…

Fernando Haddad pode ter e reivindicar o perfil que quiser. O seu perfil importa tanto quanto o meu. O fato é que faz parte de um futuro governo que está procurando garantir R$ 200 bilhões além teto de gastos para gastar nos próximos dois anos, no mínimo. O “perfil gastador” é de Lula, que, nas palavras do próprio, será o verdadeiro responsável pela política econômica. Haddad será um fantoche obediente, pronto a chamar o azul de amarelo se for preciso para justificar as decisões do chefe. Usando seus próprios termos, Fernando Haddad será um ministro fake.

Devedores eternos

Assisti ao jogo na companhia de meu filho e seus amigos, todos na faixa de 21-22 anos. Ainda não viram o Brasil levantar o caneco. Eu, com meus quilômetros rodados, não estava dando tanta importância para a derrota, até que vi meu filho e seus amigos realmente, profundamente transtornados.

Lembrei da minha primeira grande frustração em copa do mundo. Foi em 1982. Tinha então 16 anos, que é a idade em que o garoto que gosta de futebol se entrega de corpo e alma à sua paixão. Lembro como se fosse hoje do gol de Falcão, a porta de saída de um labirinto de angústia e sofrimento que foi aquele jogo contra a Itália. E lembro do gosto amargo da macarronada que minha mãe preparou para o almoço daquele dia.

O gol de Neymar deve ter tido o mesmo efeito para o meu filho e seus amigos que o gol de Falcão em 1982. Transportei-me no tempo e consegui entender os seus sentimentos.

Tentei consolá-los, dizendo que eu mesmo só vi o Brasil campeão com 28 anos de idade. O que foi uma pena. Não deve haver sensação melhor no mundo do que ver a seleção campeã quando se é adolescente ou muito jovem. Na medida em que ficamos mais velhos, a experiência da vida nos impede cada vez mais de nos entregarmos de corpo e alma a uma paixão, ainda mais esportiva. Curtimos, vibramos, mas é muito diferente.

Neymar é um devedor eterno desta geração de garotos, assim como Zico é um devedor da minha geração. São gênios do futebol, mas devedores. A sua dívida é impagável, pois o tempo passa e não volta.

O futebol é isso

Se o jogo seguisse 0 x 0 até o fim, amarrado, sem graça, e tivéssemos perdido nos pênaltis, estaríamos chateados, mas conformados com a nossa incompetência.

Mas a forma com que perdemos esse jogo foi cruel, uma brincadeira de mal gosto do destino. Neymar fez um golaço, tabelando duas vezes e driblando o goleiro. Foi um gol do desafogo, do alívio, da classificação. Um lampejo de gênio e um gol que lembrou porque a seleção brasileira é temida.

O gol da Croácia, um acidente de trabalho mais do que qualquer outra coisa, veio como o final inesperado de um filme que já se encaminhava para o desfecho óbvio e desejado pelo público. Um pouco como Hunphrey Bogart deixando Ingrid Bergman ir embora no final de Casablanca.

O futebol é isso.

O pior emprego do mundo

Assim o jornalista Thomas Traumman denomina o cargo de Ministro da Fazenda, em seu livro em que entrevista uma série de ex-ministros da Fazenda. Talvez somente o técnico da seleção brasileira tenha um emprego pior, ainda que, neste caso, receba remuneração muitas vezes superior, o que certamente compensa a pressão.

Tente se lembrar de alguns nomes de ministros do governo Sarney. Quase com certeza um dos poucos lembrados será o de Dilson Funaro, responsável pelo primeiro Plano Cruzado, ou o de Bresser Pereira, que emprestou seu nome para um dos planos de estabilização. Tente lembrar de um nome do ministério de Collor. Provavelmente, o único nome que lhe vira à mente será o de Zélia Cardoso de Mello, responsável pelo confisco. Nos governos mais recentes, de Lula para cá, alguns ex-ministros certamente serão lembrados. Mas, com certeza, Palocci e Guido Mantega estarão sempre nessas listas de ministros “inesquecíveis”. Ministro da Educação, a prioridade número 1 do Brasil? Ministro da Saúde? Ministro da Agricultura? Da Justiça? Não, estes se perderam nas brumas da história.

Há um debate acalorado sobre a prevalência da agenda social sobre a agenda fiscal, ou vice-versa. Por mais que se grite que a agenda social deve ser a prioridade (e isso vem desde o “tudo pelo social” de Sarney), é o ministro da Fazenda o grande protagonista da esplanada dos ministérios. E isso acontece, paradoxalmente, justamente porque a agenda fiscal é, invariavelmente, colocada em segundo plano. Como dinheiro não leva desaforo pra casa, o Brasil é um país em eterna crise financeira, fazendo do ministro da Fazenda o ponto focal da insatisfação nacional. Em casa onde falta pão…

Assim como não há contradição entre as fundações e o acabamento de um edifício, não deveria haver contradição entre o fiscal e as necessidades sociais. Não se constrói um edifício sem fundações, e as fundações sem o edifício são inúteis. O ministro da Fazenda, no Brasil, é chamado a manter em pé o edifício sem que se tenham feito fundações adequadas. Dedica-se, então, a colocar escoras que mal e mal conseguem manter o edifício em pé, até que um vento mais forte ou um terremoto derrube tudo. E a culpa, de quem é? Do titular do pior emprego do mundo.

Fernando Haddad será o nosso próximo ministro da Fazenda. Como disse Henrique Meirelles, boa sorte para nós todos.

A força das instituições

Por óbvio não conheço detalhes, e tudo que vou escrever a seguir se baseia na minha percepção das coisas, mas, ao que parece, o presidente (agora ex) do Peru, Pedro Castillo, foi vítima da ilusão do apoio do “povo”. Contando com o “povo” para se manter no poder, Castillo tentou uma cartada, frustrada em poucas horas.

Em uma sociedade minimamente organizada, o que manda são as “instituições”. O “povo” não passa de uma massa amorfa, desorganizada, incapaz de impor a sua vontade. Mesmo porque, a “vontade” do povo é, como o próprio, amorfa. São as instituições que dão estrutura à vontade do povo. Se elas funcionam bem, se são inclusivas ou extrativistas, se estão capturadas por interesse privados, isso é outro problema. O ponto central é que são as instituições a instância onde se resolvem as coisas na arena política.

Nas ditaduras pessoais, as instituições se confundem com uma pessoa. No entanto, mesmo nesse caso, o ditador precisa se mostrar hábil para se manter no poder. Afinal, trata-se apenas de um único homem, que domina as instituições do país com sua maneira de equilibrar os pratos e satisfazer ou aterrorizar pretendentes ao poder.

Em uma democracia, a mesma coisa. O detentor do poder mantém-se na medida em que consegue equilibrar os pratos. O poder é limitado pelas instituições. Muitos acham, por exemplo, que o impeachment de Dilma só ocorreu porque Eduardo Cunha assim o quis, ou que um processo de impeachment de Bolsonaro só não ocorreu porque Rodrigo Maia e, depois, Arthur Lira, não quiseram. Ledo engano. O presidente do Congresso, de fato, tem a caneta. Mas é subordinado aos interesses da Casa que preside. Cabe ao presidente do Congresso medir a temperatura e dançar conforme a música. É a instituição, no fim do dia, que manda.

Muitos esperavam (e ainda esperam) que a força do “povo” fosse suficiente para que Bolsonaro se mantivesse no poder, desafiando as instituições. Se tentasse, aposto que seu destino seria o mesmo que o de Castillo. O ”povo” na rua tem alguma influência sobre as instituições, sem dúvida. Mas os que detém o poder dentro das instituições sabem distinguir entre uma verdadeira revolta popular e um amontoado de devotos de um político.