Há alguns anos, ficaram famosos os estereogramas, figuras aparentemente sem sentido que escondiam um desenho tridimensional. Para ver o desenho, é preciso desfocar os olhos. Não é fácil, mesmo sabendo que existe o desenho.
Lembrei dos estereogramas pensando um pouco nesse caso da Americanas. Há, de maneira geral, uma grande perplexidade a respeito. Afinal, como um “pequeno” erro de R$ 20 bilhões passou despercebido durante anos por profissionais experimentados do mercado e por auditorias internacionais. A resposta é simples: o cérebro humano não está feito para detectar coisas que estão fora de nossa experiência. Não é um problema de incompetência individual, mas de incompetência da nossa espécie. Por isso, pessoas mais experientes levam vantagem sobre pessoas menos experientes.
Os golpes funcionam dessa maneira. Estamos focados nas coisas que conhecemos, e nem notamos as que desconhecemos. Não achamos estranho que alguém do banco nos ligue, desde que ele nos forneça elementos suficientes de credibilidade, de acordo com a nossa própria experiência. Somente desconfiamos de um golpe se já passamos pela mesma situação antes ou se alguém muito próximo já passou pela mesma situação. Atire a primeira pedra quem nunca caiu em algum golpe.
No caso da Americanas (se foi golpe ou não, as investigações dirão), as manobras contábeis estavam escondidas como a figura do estereograma. Se alguém não diz que ali existe uma figura, ninguém diria que há algo. Os analistas e auditores procuraram o que estavam acostumados a procurar. Existe uma infinidade de coisas fora de nossa experiência, a grande maioria sem importância. O nosso algoritmo não está programado para focar nessas coisas fora da nossa experiência. Mesmo porque, são em muito maior número do que as coisas que conhecemos. Seria humanamente impossível varrer todas as possibilidades.
Quando uma fraude vem à tona, tudo fica claro como a luz do dia. É como um romance policial de Ágatha Christie: depois de desvendado o mistério, as pistas ficam óbvias. Mas, até então, não prestamos atenção, pois, de fato, não tinham importância. O golpista, assim como o mágico, nos faz olhar para longe do truque, usando coisas de nossa própria experiência.
De tudo isso, podemos dizer que golpes sempre existirão. Quem cai, não necessariamente é otário. Estava simplesmente olhando para onde a sua própria experiência indicava, enquanto o truque se dava no outro lado. Aliás, que figura está escondida no estereograma abaixo?
O sistema de metas de inflação foi inaugurado em 1999, após o abandono da âncora cambial em janeiro daquele ano. Por esse sistema, o CMN (Conselho Monetário Nacional) estabelece uma meta para a inflação nos anos seguintes, meta esta que deve ser perseguida pelo Banco Central. Esta meta serve como uma espécie de “âncora” para as expectativas do mercado em relação à inflação futura. Ou seja, na falta de mais informações, os agentes econômicos cravam a “previsão” para a inflação no futuro na meta, pois confiam que o BC vai agir para levar a inflação para lá.
As primeiras metas foram estabelecidas em reunião do CMN em junho de 1999: 8% para 1999, 6% para 2000 e 4% para 2001. Na reunião de 2000, a meta de 2002 foi estabelecida em 3,5%, e na de 2001, a meta para 2003 foi estabelecida em 3,25%. Ou seja, já no início do sistema de metas, a ideia era levar a meta de inflação para os 3%, que era a meta padrão para países emergentes como o Brasil. No entanto, com a desancoragem do câmbio em 2002, a reunião daquele ano reviu a meta para 2003 para 4% e estabeleceu a meta para 2004 em 3,75%, em uma nova tentativa de convergir a inflação no Brasil para 3%.
Assumindo o governo Lula em 2003, a primeira reunião do CMN reviu a meta de 2004 para 5,5% (de 3,75%) e estabeleceu a meta de 2005 em 4,5%. No entanto, ao contrário do governo FHC, os governos Lula e Dilma mantiveram a meta em 4,5% durante todos os seus mandatos. Houve discussões sobre a redução da meta, mas foram mortas na fonte por Lula. A meta somente foi reduzida para 4,25% na reunião do CMN de 2017 para o ano de 2019 e para 4% para 2020. Nas reuniões seguintes, a meta foi sendo reduzida, até chegar na reunião do CMN de 2021, quando a meta de 2024 foi estabelecida em 3%.
Chegamos em 2023, e Lula mostra disposição de voltar a 2003, quando o CMN reviu a meta do ano seguinte. A discussão é: uma meta maior levará necessariamente a juros mais baixos e maior crescimento econômico? Para entender porque não, precisamos entender a lógica por trás do sistema de metas de inflação.
Em um país com viés inflacionário como o Brasil, o controle da inflação por meio de metas parece algo mais parecido com magia do que com ciência. Afinal, sem controlar preços, como garantir que a inflação não sairá do controle? O que está por trás do sistema de metas é uma teoria bem estabelecida em economia, chamada de “expectativas racionais”. Segundo esta teoria, os agentes econômicos, de alguma maneira, conhecem o modelo de economia em que estão inseridos, e assumem que as previsões sobre o futuro desta economia com base neste modelo estão, de maneira geral, corretas. No caso específico do sistema de metas de inflação, os agentes econômicos “preveem” a inflação futura com base em um modelo bem estabelecido, em que o Banco Central controla o preço do dinheiro na economia (a taxa de juros) de modo a trazer a inflação futura para a meta. Assim, o controle da inflação se dá pela “expectativa racional” dos agentes econômicos, que acreditam que o Banco Central cumprirá a sua tarefa de trazer a inflação para a meta. Por isso, quando perguntados sobre a inflação de, por exemplo, 2026, os bancos e consultorias cravam “3%”, porque esta é a meta. Não é que estejam “prevendo” a inflação através da utilização de modelos ultrassofisticados. Nada disso. Estes agentes econômicos simplesmente olham para a meta e creem que o BC fará o serviço direito. Quando acham que o BC não conseguirá trazer a inflação para a meta, colocam um desvio em relação à meta. Por exemplo, a inflação “prevista” para 2024 está em 3,7% contra uma meta de 3%. Ou seja, os agentes econômicos estão prevendo dificuldades para o BC trazer a inflação para a meta neste horizonte de tempo.
E o quê o BC faz para atingir a meta de inflação? Eleva ou derruba a taxa básica de juros, aquela que comanda toda as outras taxas de juros da economia. Taxas mais elevadas fazem com que menos pessoas estejam dispostas a consumir e menos empresas estejam dispostas a investir, esfriando a economia e, por consequência, a inflação. E vice-versa. Mas tem um detalhe importante, e esta é a parte fundamental deste artigo, preste muita atenção: o que realmente importa para o controle da inflação não é a taxa nominal de juros, mas a taxa REAL de juros. Ou seja, a taxa ACIMA da inflação. E não da inflação passada, mas da inflação ESPERADA NO FUTURO. Os agentes econômicos vão tomar suas decisões com base na taxa REAL de juros ESPERADA NO FUTURO.
Vamos a um exemplo numérico. Segundo o relatório Focus, a inflação esperada para 2024 está em 3,7% enquanto a Selic esperada para o final de 2023 está em 12,50%. Portanto, temos que os agentes econômicos esperam uma taxa de juros real de 8,8% no início de 2024. Note que não importa a inflação de 2022, esta já era. O que importa é quanto de taxa de juros real pode ser esperada, esta é a variável chave para a tomada de decisões de consumo e investimentos. Observe, portanto, que o que importa para o BC é a inflação ESPERADA, não a passada.
Aqui entra outro conceito importante: o de TAXA DE JUROS REAL NEUTRA da economia. A taxa de juros real neutra é aquela que mantém a inflação na meta ao longo dos ciclos econômicos. Se a expectativa de inflação está acima da meta, o BC precisa elevar os juros acima dessa taxa de juros real neutra para trazer a inflação para a meta. E, vice-versa, se a expectativa de inflação está abaixo da meta, a taxa praticada deve estar abaixo da taxa neutra. Essa taxa de juros real neutra depende de uma série de fatores estruturais, que vão desde as condições fiscais do país até a sua produtividade (custo Brasil). Quanto piores forem essas condições, maior será a taxa de juros real neutra da economia. Ninguém sabe exatamente quanto é essa taxa a cada momento, mas o conceito é este.
Agora, estamos preparados para entender o que provavelmente aconteceria se a meta para a inflação fosse elevada. Digamos que, na reunião do CMN de junho, decida-se por elevar a meta de 2024 em diante de 3% para 4,5%. Hoje, a expectativa para a inflação de 2024 está em 3,7%. Como dissemos lá no início, não é que os bancos e consultorias tenham uma bola de cristal e “adivinhem” a inflação de 2024. Eles partem da meta (que é 3%), e colocam um desvio de acordo com as incertezas do cenário. Em pouco tempo depois que a meta for elevada, as expectativas serão reajustadas para a nova meta. Portanto, as expectativas de inflação para 2024 em diante serão elevadas, inicialmente, para 4,5%.
Preste atenção neste ponto agora: o que acontece com a taxa de juros real ESPERADA? Ora, se a taxa real esperada antes era de 8,8% (12,5% menos 3,7%), agora é de 8,0% (12,5% menos 4,5%). Ou seja, PARA UM MESMO NÍVEL DE TAXA SELIC, a taxa real esperada DIMINUI em função do aumento da meta e, portanto, da expectativa de inflação.
Como vimos acima, o BC calibra a taxa real esperada em função da taxa real neutra da economia. Não sabemos qual é essa taxa real neutra, mas de uma coisa podemos estar certos: com a queda da taxa real esperada, o BC está mais próximo da taxa real neutra. Digamos, por exemplo, que a taxa neutra seja de 4% ao ano. Com 8,8% de taxa real esperada, a Selic estava 4,8% acima da taxa neutra. Já com 8%, a taxa real esperada está 4% acima da taxa neutra.
Claro que, com uma meta mais alta, o desvio das expectativas em relação a esta meta mais alta será menor do que a que temos hoje. Por exemplo, se as expectativas de 2024 saltarem de 3,7% para 4,5%, teremos um desvio caindo de 0,7% (3,7% menos 3%) para zero (4,5% menos 4,5%). Portanto, o BC poderia praticar uma taxa real esperada menor, em um primeiro momento. Mas note que, mesmo neste primeiro momento, o espaço para praticar taxas NOMINAIS de juros menores é limitado, pois a taxa real esperada já caiu com o aumento da expectativa de inflação. Ou seja, os juros nominais não caem na proporção que desejaria o governo com a mudança da meta.
O problema ocorre no segundo momento do jogo. A única coisa que mudou foi a meta de inflação. Todo o resto, todas as distorções da economia brasileira, permanecem as mesmas. Portanto, a tendência de descolamento da inflação em relação à meta, qualquer que seja, permanece a mesma. Assim, em algum tempo, começarão a aparecer desvios para cima também em relação à meta de 4,5%. É o que vimos no período de 2010 a 2015, em que a inflação permaneceu sempre perto do teto da banda da inflação, a ponto de o mercado acreditar que o BC estava trabalhando com uma meta “informal” de 5,5%. Considerando que a taxa real neutra da economia permanece a mesma em virtude das distorções da economia brasileira, as únicas coisas que vão mudar serão o nível da inflação e o nível da taxa nominal de juros ao longo do tempo, ambas 1,5 ponto percentual para cima. Voltaremos à estaca zero. Quer dizer, estaca zero, não. Estaca zero mais 1,5 ponto percentual. As taxas de juros serão mais altas, não mais baixas, como desejaria o governo.
Uma inflação mais alta prejudica o horizonte de investimento dos agentes econômicos e, portanto, as perspectivas de crescimento econômico, justamente o que se buscava com o aumento da meta para a inflação. Em economia nem tudo é o que parece ser. Não é a meta de inflação que impede o crescimento econômico, mas as inúmeras distorções da economia brasileira. Elevar a meta só serve para disfarçar essas distorções por algum tempo. Como tudo no Brasil, trata-se de um “jeitinho” que não resolve o problema, somente o adia, voltando lá na frente ainda maior.
Via de regra, CPIs são instrumentos da oposição para fustigar o governo de turno. Por isso, o número de assinaturas necessárias para a sua instauração é de apenas 1/3 dos congressistas.
No caso, a “CPI dos atos democráticos” seria uma exceção, pois seu objeto seria o governo já findo e seus bate-paus. Por algum motivo, no entanto, o atual governo, apesar de não ser o objeto da CPI, está desencorajando a sua instalação.
Pode compreender-se esse movimento pelo seu lado virtuoso: afinal, CPIs costumam consumir muita energia do Congresso, e o governo precisa de foco do parlamento para aprovar o que quer que seja. Uma CPI deste tipo pode até gerar dividendos políticos para o governo, mas nada muito além daquilo que toda a cobertura da imprensa e a condenação da opinião pública já não lhe tenham oferecido de bandeja.
Mas há o lado, digamos, do mal. Dizem que uma CPI, você sabe como começa mas não sabe como termina. De repente, alguém descobre alguma coisa não muito ortodoxa de alguém ligado ao governo e pronto, está feito o estrago. Além disso, uma CPI não é formada somente por governistas, e pode servir de palco para os apoiadores do ex-presidente que, hoje, estão na berlinda.
Por isso, entende-se o esforço de Lula e do PT de matar a ideia de uma CPI dos “atos antidemocráticos” na raiz. Mas não deixa de ser paradoxal que o partido que patrocina CPIs sobre as coisas mais intranscendentes, deixe passar a oportunidade de investigar melhor um dos acontecimentos mais chocantes da nossa República nos últimos anos.
Se eu sou bolsonarista, iria brigar para instalar essa CPI. Se o PT não quer, deve ser boa.
O secretário-geral da ONU, António Guterres, fez duro discurso, em Davos, sobre as mudanças climáticas. Mais um.
Mas, desta vez, o chefe da repartição pública global inovou. Guterres defende que as empresas de produção de petróleo devem ser responsabilizadas pelas mudanças climáticas, a exemplo das empresas de tabaco, pelo mal que causaram à humanidade.
Observando de longe, parece uma bobagem. Mas, se olharmos mais de perto, concluiremos que é, de fato, uma bobagem.
O paralelo é estapafúrdio em várias dimensões. Em primeiro lugar, com todo respeito à indústria tabagista, não faria muita diferença se os cigarros não existissem no mundo. Já o petróleo é a base da incrível diminuição de distâncias dentro das cidades e entre países, permitindo a construção das cidades tal qual as conhecemos hoje e todo o comércio internacional. Além disso, uma parte relevante da eletricidade produzida e de materiais plásticos usados para os mais diversos fins tem como base o petróleo. Podemos dizer que a civilização, tal qual a conhecemos hoje, seria impossível sem o petróleo.
Além disso, a responsabilidade da indústria tabagista é direta. Ou seja, o produto vendido pela indústria prejudica diretamente o fumante. No caso do petróleo, por outro lado, há um sem número de co-responsáveis: fabricantes de automóveis, usinas termoelétricas, fábricas em geral, casas com calefação, etc. Todos esses agentes deveriam também ser responsabilizados pela agressão ao meio-ambiente, não somente a indústria petrolífera. Na verdade, cada um de nós que anda de carro deveria pagar uma indenização.
Por fim, o que pretende o dirigente das nações desunidas? Uma ação de indenização, como ocorreu com a indústria tabagista? No limite, a depender do tamanho dessa indenização, a indústria de petróleo pode se tornar inviável. Então, quero ver os mandatários do mundo explicando para os seus eleitores os preços estratosféricos dos combustíveis ou, até mesmo, a sua completa falta. Talvez Guterres possa ajudar, enviando tropas da ONU para conter os protestos.
O secretário-geral da ONU lembra uma adolescente que faz muito sucesso com esse tipo de ideia. O único problema é que António Greterres já passou da idade de achar que discursos furibundos e descolados da realidade vão resolver alguma coisa.
Em uma breve frase com duas afirmações, Lula conseguiu cometer dois erros. Não, não é possível aumentar o mínimo acima da inflação e não, aumentar o mínimo acima da inflação não é a melhor forma de fazer distribuição de renda. Vejamos.
A primeira afirmação é mais fácil de rebater. O aumento do salário mínimo afeta diretamente as contas da Previdência, que já enfrentam déficit considerável. Sendo a principal conta dos chamados gastos obrigatórios, qualquer aumento acima da inflação automaticamente comprime os gastos não obrigatórios, em um regime de teto de gastos (que, até segunda ordem, ainda é o regime fiscal brasileiro). Uma eventual mudança do regime fiscal poderia abrir espaço para aumentos reais (acima da inflação), mas o duro será convencer os credores (insensíveis por natureza) de que a dívida brasileira é sustentável.
A segunda afirmação já envolve outro nível de argumentação. Em primeiro lugar, é preciso saber se o aumento real do salário mínimo promove distribuição de renda. E, em promovendo, se seria a melhor forma de fazê-lo.
A intuição parece indicar que, de fato, melhorando a remuneração dos mais pobres, estaremos melhorando a distribuição de renda. Afinal, se os mais pobres ganham mais, a sua renda será maior em relação ao todo, e esta é a definição de distribuição de renda.
Bem, nem sempre os efeitos econômicos de medidas governamentais seguem a nossa intuição. Este é um caso. Aliás, investindo uma pouco mais na lógica do que na intuição, concluiríamos que, se dependesse somente de uma canetada do governo, não haveria país “desigual” no mundo. Aliás, não haveria país pobre no mundo. Obviamente, não deve ser assim.
O fato é que, no longo prazo, os salários dependem da produtividade do trabalhador. Pode Jesus Cristo descer na Terra e decretar um salário mínimo de R$ 5.000. Se a produtividade do trabalhador não for suficiente para pagar a conta, das duas uma: ou o trabalhador aceita receber menos “por fora”(trabalho informal), ou as empresas simplesmente deixam de existir por absoluta inviabilidade econômica (desemprego).
Os que defendem o estabelecimento de um salário mínimo maior acreditam que, mesmo que induza alguma informalidade, serve como uma espécie de referência para os salários, induzindo aumentos reais nas faixas de renda mais baixas e, portanto, melhorando a distribuição de renda. Por exemplo, um artigo do professor Ricardo Carneiro, da Unicamp, apresenta como evidência a diferença do salário mínimo em relação ao salário médio de países que têm distribuição de renda melhor que a brasileira, como se fosse o estabelecimento do salário mínimo maior que tivesse levado à melhor distribuição de renda, e não o oposto, dada a produtividade maior do trabalhador de países mais desenvolvidos.
De maneira geral, os artigos acadêmicos a respeito do tema mostram resultados inconclusivos. Por exemplo, artigo publicado no IPEA, que faz um levantamento da literatura, chega a essa conclusão.
Mesmo naqueles que mostram algum efeito positivo do aumento real do salário mínimo sobre a distribuição de renda, uma parte relevante desse efeito vem justamente do reajuste das aposentadorias, não do mercado de trabalho. Além disso, é sempre bom lembrar que, mesmo efeitos positivos podem ter vida curta, se a produtividade do trabalhador não acompanhar o aumento do SM. Ou seja, o efeito pode ser positivo em determinada janela, mas pode desaparecer em uma janela posterior.
Este é o fato geral. Especificamente no Brasil, o cenário é agravado pelo peso do salário mínimo nos gastos do governo (Previdência). Então, as consequências inflacionárias do desequilíbrio fiscal podem, inclusive, causar uma piora da distribuição de renda no longo prazo.
Mesmo assumindo algum efeito positivo sobre a distribuição de renda, o fortalecimento de programas sociais parece ser mais efetivo para este fim do que mexer com o SM, pois 1) não introduz um artificialismo no mercado de trabalho, o que acaba por prejudicar a alocação de capital no longo prazo e 2) tem efeito de expansão fiscal muito mais limitado.
Lula insiste na valorização real do SM porque seus viés sindicalista vê o governo como o braço forte que fará pender a balança do capital x trabalho em direção a este último. O problema é que a realidade econômica se impõe, e o voluntarismo do governo acaba cobrando o seu preço. Sempre.
Entrevista com Helô Rocha, a estilista que vestiu a primeira-dama em seu casamento e na cerimônia de posse. Depois de ficarmos sabendo que a estilista conheceu Janja através da amizade comum com Bela Gil, em cujo restaurante acertaram os detalhes do vestido para o casamento, Helô nos brinda com sua, digamos, visão sobre a indústria da moda.
Segundo a estilista da primeira-dama, roupa tem que ser cara. Roupa muito barata significa que alguém não está sendo remunerado ”adequadamente” na cadeia de produção. Por isso, para que todos sejam remunerados “adequadamente” e, mesmo assim, a roupa seja acessível, seria necessário que o governo ”apoiasse” a indústria.
É difícil saber até por onde começar. Talvez, para ser técnico, pela inconsistência econômica da proposta. A estilista sugere que o imposto pago pelos pobres seja usado para subsidiar as empresas de moda, para que essas empresas supostamente vendam roupas mais baratas para esses mesmos pobres, na heróica hipótese de que o lucro adicional proporcionado pelos subsídios fosse repassado aos preços. Isso é o que eu chamo de economia circular!
Não ocorre à estilista que nem todos os brasileiros tenham, digamos, o acesso a recursos financeiros que a primeira-dama tem. Portanto, são obrigados a espremer as roupas de que necessitam dentro de um orçamento já atulhado de outras necessidades igualmente relevantes. As roupas baratas, normalmente feitas na China por operários mal pagos, são uma benção para esses brasileiros. E, acredite, são também uma benção para esses chineses, pois a alternativa seria viver no campo em condições ainda piores. O termo “salário adequado” é muito relativo.
Mas essas questões técnicas são as menos interessantes. O que mais me chamou a atenção nessa breve entrevista é o seu aspecto, digamos, sociológico. Trata-se de um exemplo acabado de “burguesia proletária”.
Antes de continuar, quero recordar uma matéria sobre a esposa de João Doria, publicada, se não me falha a memória, na Folha de São Paulo, logo após a eleição do marido para a prefeitura de São Paulo. Bia Doria é caracterizada, então, como uma dondoca desmiolada, cheia de vontades e frivolidades. Uma autêntica representante da burguesia brasileira.
Janja não. A primeira-dama é caracterizada, logo de saída, como uma mulher forte, que sabe o que quer. O fato de ter acesso a um vestido que não saiu por menos de algumas dezenas de milhares de reais (e Deus sabe de onde saiu esse dinheiro) não a caracteriza como burguesa. Ela é uma “mulher do povo”, que se casou com um “homem do povo”. O vestido desenhado pela Helô é uma concessão que se faz à vanguarda do proletariado, assim como as dachas da nomenklatura soviética. É o que eu chamo de “burguesia proletária”.
E não adianta apontar a contradição. Na verdade, todos as brasileiras deveriam poder contar com um vestido de noiva decente. Para isso, é preciso “apoiar” a indústria da moda com muitos subsídios. Afinal, foi para isso, além de tornar a picanha mais acessível, que seu marido foi eleito. Enquanto isso, não há nada demais em que a primeira-dama tenha o seu dia de princesa.
Duas reportagens sem relação entre si tratam do mesmo assunto: quais as consequências de longo prazo dos supostos abusos do judiciário ocorridos nos últimos dias?
A primeira é uma notinha na Coluna do Estadão, em que “advogados próximos a Lula” (leia-se Prerrogativas) estariam preocupados com o afastamento do governador do DF por Alexandre de Moraes, atropelando o STJ, que seria a instância adequada, no caso.
Na segunda, um estudioso condena o uso da palavra “terrorismo” por Alexandre de Moraes para qualificar os atos de 08/01. Segundo o especialista, a lei anti-terrorismo no Brasil não abriga atos com motivação “política-ideológica”, o que seria o caso.
Em ambos os casos, chama-se a atenção para a jurisprudência criada, que poderia se voltar contra outros atores do quadro político brasileiro, como o próprio Lula ou outros petistas e os movimentos sociais.
Ou seja, a questão não é o que está certo ou errado, mas qual a consequência para o meu grupo político. Se, de alguma forma, a lei abrigasse punição apenas para bolsonaristas, não haveria preocupação. Uma lei ad hominem poderia permitir que Alexandre de Moraes atropelasse o STJ ou classificasse os atos de 08/01 como terrorismo sem que isso significasse algum tipo de risco para grupos políticos associados à ”defesa da democracia e das causas sociais”. Quem sabe esse não seja o próximo passo.
O economista Eduardo Giannetti da Fonseca dá a fórmula do sucesso para o governo Lula na área econômica: não afrontar as “crenças ancestrais” do mercado financeiro, de modo a ganhar a sua boa vontade e, assim, implementar as suas próprias soluções para os problemas.
Ele não descreveu quais seriam essas “crenças ancestrais”, mas podemos imaginar: equilíbrio das contas públicas, reformas que aumentam a produtividade da economia, privatizações. A “vacina” de Lula, por outro lado, seriam créditos subsidiados para empresas escolhidas, uso das estatais para “induzir a industrialização”, estabelecimento de reservas de mercado. O que Giannetti propõe é que Lula reconheça o valor das “crenças ancestrais” para poder inocular a sua “vacina” sem a resistência dos primitivos. Resta saber como isso ajudaria a manter a consistência entre “sinais” e “ações”, conselho que o economista dá a Lula.
Na verdade, Lula está mantendo bastante consistência entre sinais e ações, como preconiza Giannetti. Enquanto demoniza o mercado, aprova uma PEC de R$ 200 bilhões em gastos. O seu ministro da Fazenda, este sim, está tentando seguir a receita do economista, apresentando um plano de ajuste fiscal pra pajé ver, enquanto o governo do qual faz parte inocula a vacina da “civilização científica”.
Tentei salvar a parábola do economista, imaginando que ele pudesse estar apenas usando uma figura de linguagem para indicar o modus operandi adequado para o governo, que não deveria bater de frente com os “selvagens” do mercado ao mesmo tempo em que adota a política econômica mais, digamos, “correta”. Mas essa interpretação é tão forçada, considerando os personagens envolvidos e o tipo de política econômica que um e outro propõe, além da necessidade de harmonizar discurso com ação, que fica difícil salvar qualquer coisa aqui.
Enfim, talvez Gianetti da Fonseca tenha apenas usado um exemplo infeliz. Mas o fato de elogiar a equipe econômica de Lula já nos dá uma pista de por onde andam as preferências do ex-guru econômico de Marina Silva. Os aborígines do mercado financeiro já têm vasta experiência com esses colonizadores que nos prometem um “outro mundo possível” e nos entregam somente devastação.
Há alguns anos, tive a oportunidade de assistir a uma palestra de Aswath Damodaran. Para quem não é do meio, Damodaran é uma especie de “papa do valuation”, que é a arte de estimar o valor de uma empresa. Damodaran é professor da Universidade de Nova York e autor de vários livros na área, usados por cursos de administração no mundo inteiro.
Naquela palestra, Damodaran fez um exercício de valuation do Uber. Para tanto, desenhou vários cenários possíveis, que nós poderíamos chamar de “narrativas”. Cada uma daquelas narrativas levava a um valor da empresa completamente diferente. Não lembro exatamente dos números, mas a dispersão dos resultados era da ordem de dezenas de bilhões de dólares. Então, a depender da fé do analista em uma ou outra narrativa, a empresa podia valer quase nada ou uma fortuna.
Antes de continuar, é bom deixar claro que o valor de uma empresa, no final do dia, depende da sua geração de lucros ao longo do tempo. A narrativa faz o papel de convencer os investidores de que haverá lucros no futuro em tal e tal montante.
Aqui entra o papel da publicação de balanços das empresas. Na época, o Uber não tinha capital aberto e, portanto, não publicava balanços trimestrais. Para empresas listadas em bolsa, os balanços trimestrais servem como uma espécie de “check point” para que os analistas comparem os resultados reais com a sua própria narrativa. Claro, quanto mais no futuro estiver a promessa de retornos, mais paciência os analistas terão com resultados ruins de curto prazo. Por outro lado, quanto mais madura for uma empresa, mais importância ganha o balanço.
Depois deste longo preâmbulo, chegamos ao caso da Americanas, que chocou o mercado financeiro nesta semana. Não vou aqui entrar nas tecnicalidades ou de quem seria a culpa. O ponto é que, ao que parece, o balanço da empresa, nos últimos anos, não refletia a sua real lucratividade. Portanto, não servia como um “check point” adequado para conferir a narrativa.
Todos os grandes escândalos financeiros sempre foram encobertos por algum tempo com base em contabilidade, de alguma maneira, fraudada ou inconsistente. Estou agora assistindo à mini-série sobre Bernie Madoff, que aplicou um golpe de dezenas de bilhões de dólares contra investidores. Madoff forjou, durante anos, toda a contabilidade de seus investimentos. A bolha do subprime, de alguma forma, foi ignorada, durante um certo tempo, pela dificuldade de contabilização dos imóveis, dos contratos imobiliários e de seus derivativos. A ”contabilidade criativa” do governo Dilma nada mais foi do que usar truques contábeis para varrer o déficit primário para debaixo do tapete.
Uma velha anedota conta de um empresário que estava selecionando um contador. Para testar os candidatos, perguntava quanto era 2 + 2. Todos os candidatos que respondiam “4” eram eliminados. O primeiro que respondeu “quanto o senhor quer que dê?” foi contratado. A contabilidade tem essa aura do “jeitinho”, pois são inúmeros os critérios possíveis de contabilização, cada um deles chegando a resultados diferentes. Por isso, uma das grandes missões dos xerifes do mercado é uniformizar regras de contabilização, de modo que a contabilidade reflita a realidade econômica da empresa.
O caso da Americanas, ao que parece, é um daqueles em que a contabilidade não refletia a realidade econômica. De repente, como um choque, a realidade econômica chegou e se impôs. Sempre acontece. Não é uma questão de ”se”, mas de “quando”. Isso ocorre nos mais variados âmbitos, desde situações familiares, passando pelas empresas até chegar na economia dos países. A narrativa pode ser muito bonita, a contabilidade pode não ser transparente o suficiente para indicar problemas, mas a realidade econômica, mais cedo ou mais tarde, vai bater à porta. É o momento ”o rei está nu”, em que famílias, empresas e países são confrontados com a sua própria inviabilidade, e precisam reestruturar-se, por bem ou por mal.
PS.: a contabilidade das finanças públicas no Brasil melhorou muito nas últimas décadas, de modo que sabemos, com razoável precisão, o estado em que nos encontramos. Mas isso, ao que parece, não tem sido o suficiente para desmentir narrativas pouco aderentes à realidade econômica. No final, adivinha o que irá prevalecer.
Nos áureos tempos da Lava-Jato, o então juiz Sérgio Moro determinou o congelamento de investimentos de Lula no valor de R$ 9 milhões. O dinheiro estava investido em planos de previdência privada do Banco do Brasil. Muito provavelmente, este dinheiro de Lula ainda está lá. Uma parte relevante desses recursos deve estar investido na compra de títulos públicos.
Tenho uma sugestão: o Tesouro Nacional poderia criar um título público que não pagasse juros. Além disso, esses títulos poderiam não devolver uma parte do principal, a depender das necessidades sociais do povo brasileiro. Sugiro até um nome: NTN-S, Nota do Tesouro Nacional, série Sensibilidade.
Com esse título público na praça, os bancos poderiam criar produtos financeiros específicos para investidores que tenham coração, sensibilidade e humanismo. Por exemplo, o fundo de previdência onde o presidente investe a sua poupança compraria esses títulos.
Esse novo título público seria revolucionário, na medida em que, por um lado, solucionaria o problema do financiamento da dívida pública e, por outro, daria oportunidade a Lula e a todos os humanistas de coração sensível que o apoiam a demonstrar, na prática, a sua sensibilidade social.
Claro que os títulos públicos que pagam juros e o principal no vencimento continuariam a existir. Afinal, muitos investidores não têm coração e sensibilidade, e vão continuar a exigir a remuneração do seu capital. Mas tenho certeza que uma parcela relevante de nossa sociedade toparia abrir mão da sua remuneração pelo bem do povo.
Lula tem a grande oportunidade de demonstrar o seu humanismo, criando a NTN-S e, ele próprio, investindo os seus milhões nesse título.