Opinião pública e poder

O Estadão traz hoje as fotos de algumas dezenas de pessoas que participaram da invasão de domingo. O ânimo era de “tomada de poder”.

Ontem, conversei com um amigo que tem uma amiga acampada. Ele me contou que sua amiga acha que realmente está participando de um evento histórico, e tem fé absoluta, religiosa, de que vão tomar de volta o poder usurpado pelos comunistas. De alguma forma, fazem-me lembrar os terroristas que buscavam derrubar o regime militar, nas décadas de 60 e 70. Estes, apesar de ateus, tinham uma fé religiosa na marcha da História, que reservava ao comunismo o seu mais alto lugar.

No entanto, as relações de poder em uma sociedade complexa, onde convivem milhões de pessoas em que cada cabeça é uma sentença, é tremendamente mais complexa do que os esquemas simplistas do Bem x Mal que levam a atos como os de domingo.

Uma sociedade complexa se organiza em torno de pactos de poder. O atual, no Brasil, se organiza a partir dos pressupostos de uma democracia representativa, em que o poder é dividido entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Este conjunto de forças exerce o poder não em nome de si mesmo, mas em nome dessa massa amorfa chamada “povo”. O povo se faz presente não somente durante as eleições, mas ao longo do tempo, através de um outro conceito amorfo, ainda que mais restrito, a “opinião pública”. A opinião pública é esse conjunto de forças que não conseguimos dizer de onde vêm e para onde vão, mas que influenciam grandemente o poder formal ao longo do tempo.

Muitos, olhando o quadro atual, poderiam pensar que não há outro jeito de tomar o poder a não ser tomando de assalto o núcleo formal do poder, como sonham os bolsonaristas fanáticos. No entanto, sem o apoio dessa coisa chamada “opinião pública”, nada feito. Vou dar três exemplos.

O primeiro foi a tomada de poder pelos militares em 1964. Não se tratou de uma quartelada pura e simples, mas algo foi muito maior. A deposição de Jango foi feita no Congresso, referendada pelo Supremo e precedida por passeatas gigantes e editoriais furibundos dos principais veículos de imprensa da época. Havia uma espécie de clamor da opinião pública por aquela solução, que os militares somente operacionalizaram.

Passaram-se os anos, os militares tomaram gosto pelo poder e, para lamento dos terroristas que procuravam “tomar o poder”, contavam com grande popularidade em virtude do chamado “milagre econômico”. No entanto, essa popularidade se esvaiu com a inflação, e os ventos da opinião pública, aos poucos, se voltaram contra o regime. Políticos como Ulisses Guimarães e Tancredo Neves conduziram esse processo por dentro das estruturas de poder, o que se mostrou muito mais eficaz do que atentados terroristas. Eles conduziram uma transição de poder com amplo apoio da opinião pública.

Por fim, o impeachment de Dilma Rousseff demonstrou, mais uma vez, que a resolução de problemas de poder se dá quando há alternativas reais de poder e o apoio massivo da opinião pública. Não foi preciso invadir o palácio do Planalto para tirá-la de lá.

O que temos hoje? De que lado está a opinião pública? Basta ler os jornais e ouvir as entrevistas das principais personalidades do país a respeito do que ocorreu no domingo. Definitivamente, a opinião pública não está ao lado dos bolsonaristas radicais, ainda que possam concordar, genericamente, com a sua pauta. Não há, portanto, a mínima chance de movimentos desse tipo prosperarem.

Então, não há solução? Deve-se aceitar bovinamente tudo o que os poderes formais impõem? De maneira alguma. Temos, como cidadãos, o direito de nos opormos ao que achamos errado. Quando a maioria se juntar ao que pensamos, será questão de tempo para que o poder formal mude de mãos. A História não acaba, está sempre em movimento.

Claro que esse tipo de raciocínio pressupõe o tempo. Não se pode ser como a criança que planta um feijão no algodão e chora no dia seguinte porque o feijão ainda é um feijão. Essas mudanças de vento levam tempo, muitos anos, às vezes décadas. Getúlio Vargas ficou 15 anos no poder, os militares 20 e o PT, 13 anos. Para os que não suportam a ideia de tanto tempo com o poder nas mãos “erradas”, trago a má notícia de que a maioria da opinião pública talvez não concorde que o poder esteja nas mãos erradas. No dia em que concordar, será questão de pouco tempo para que o poder mude de mãos.

A credibilidade do Banco Central

O IPCA fechou o ano de 2022 em 5,79%, acima, portanto, do teto da meta para este ano, que era de 5,00%. Pela segunda vez consecutiva, o presidente do BC, Roberto Campos Neto, precisará escrever uma cartinha endereçada ao CMN, explicando o fracasso.

O atual sistema de metas de inflação foi instituído em 1999, após a desistência da âncora cambial naquele ano. A ideia é ancorar as expectativas dos agentes econômicos em torno da meta de inflação, sabendo que o Banco Central agirá tempestivamente para trazer a inflação para a meta se houver algum desvio. Como tudo no Brasil, a coisa até funciona, mas no limite da responsabilidade.

Com uma meta e bandas em torno dessa meta para absorver choques inesperados, espera-se que, ao longo do tempo, a inflação tenha um comportamento simétrico em torno da meta, às vezes acima, às vezes abaixo da meta. Mas não é o que observamos.

Dos 24 anos de vigência do sistema de metas de inflação no Brasil, em nada menos que 18 (75%) a inflação ficou acima da meta. E dessas 18 vezes, em 5 a inflação estourou a banda superior. Por outro lado, das 6 vezes em que a inflação ficou abaixo da meta, em apenas uma vez (no ano da graça de 2017) a inflação estourou a banda inferior. Temos então, claramente, uma leniência em relação à inflação por parte dos banqueiros centrais brasileiros ao longo dos anos, que se traduz em inflação consistentemente mais alta do que a meta estabelecida.

Esse fato torna a vida do banqueiro central mais difícil, pois os agentes econômicos, com base nesse histórico, tendem a projetar uma inflação mais alta do que a meta, exigindo juros mais altos do que o necessário para ancorar as expectativas, caso o BC tivesse mais credibilidade.

Minha tese é de que o comportamento fiscal do governo acaba por exigir um nível de juros não palatável do ponto de vista político, o que leva o BC a sempre ficar “atrás da curva”, como dizemos no mercado, topando, na média, uma inflação um pouco maior. Assim, o sistema de metas foi “abrasileirado”, com a meta servindo, na prática, de piso para a inflação. Quero crer que a independência formal do BC mude esse quadro. Mas admito que se trata mais de uma esperança do que de uma convicção.

Arbítrio do bem

Excelente matéria hoje, no Estadão, relembra o histórico e analisa as ações do STF, na pessoa do ministro Alexandre de Moraes, no combate aos chamados “atos contra o Estado Democrático de Direito”.

De todos os juristas entrevistados, o testemunho do desembargador aposentado, Wálter Maierovitch, é o mais simbólico de toda essa história. Maierovitch afirma que tudo o que Alexandre de Moraes está fazendo encontra-se à margem do sistema jurídico brasileiro, mas se justifica porque o “sistema de pesos e contrapesos” da democracia brasileira deixou de funcionar, com o Congresso não votando pelo impeachment do presidente.

Com esse cândido reconhecimento de que os fins justificam os meios, o ex-desembargador se junta à ministra Carmen Lúcia, que afirmou ser contra qualquer tipo de censura em uma decisão em que ela própria censurava um vídeo “pelo bem da democracia”. Maierovitch e Carmen Lúcia fazem parte daquele clube de juristas que acreditam que “a história deve ser empurrada para frente”, caso as instituições não cumpram o seu papel. No caso, trata-se do conceito, abordado na reportagem, de “democracia militante”, em que as instituições democráticas devem usr todos os meios para defender-se, mesmo aqueles fora do Estado Democrático de Direito. Trata-se de um bom debate.

A reportagem faz o paralelo com a operação Lava-Jato, que teria igualmente atropelado o devido processo legal para prender políticos corruptos. Esse paralelo é, obviamente, uma falácia. Basta três segundos de raciocínio para concluir que todas as decisões da Lava-Jato foram revisadas e referendadas por duas instâncias superiores da justiça. Por outro lado, a única instância revisora do inquérito do fim do mundo é o próprio colegiado do STF, que aprovou a sua continuidade com um acachapante 10 x 1. A partir daí, Alexandre de Moraes tem agido sozinho, sem revisão alguma de suas decisões, a não ser em casos muito particulares, como o da prisão do deputado Daniel Silveira. Não, não há termos de comparação entre o inquérito das fake news e a operação Lava-Jato.

A quebradeira em Brasília parece ter dado razão ao ministro e a todos os apoiadores de seus atos. Afinal, era disso que se tratava desde o início, evitar que os golpistas atentassem contra as instituições democráticas. Nesse sentido, no entanto, podemos dizer que Alexandre de Moraes falhou miseravelmente em sua missão, ao não evitar que as coisas chegassem a esse ponto. Cada caco de vidro no chão dos três poderes é testemunha de seu lamentável fracasso. Poder-se-ia pensar que o inquérito das fake news evitou algo ainda pior. Resta saber o que poderia ser pior. A reeleição de Bolsonaro?

A matéria começa afirmando que, quando um ministro do STF é tietado como Alexandre de Moraes o foi na diplomação de Lula, é sinal de que algo está fora de lugar nas instituições. Eu diria que, quando uma reportagem dessa natureza é editada na grande imprensa, é porque o desconforto com essa situação já começa a extrapolar os círculos bolsonaristas. O “arbítrio do bem” começa a ser questionado, e isso terá consequências.

Cada vez mais longe da pacificação

Reza a lenda que Brasília foi construída para isolar os políticos de protestos populares. Verdadeiro ou não, esse “objetivo” foi cumprido relativamente bem até o dia 17/06/2013, quando populares ocuparam a parte externa do Congresso Nacional. Ontem, novamente as sedes dos três poderes foram ocupadas por populares. Os dois eventos, separados por quase 10 anos, guardam semelhança em alguns aspectos, mas são profundamente diferentes em outros.

Os protestos de 2013 pegaram o mundo político e, porque não dizer, os próprios manifestantes, de surpresa. Sem liderança ou pauta definida, os protestos manifestavam uma espécie de “malaise” em relação ao governo de turno e à classe política em geral. O que começara com grupelhos de esquerda protestando contra o aumento da tarifa de ônibus em São Paulo, foi engolfado por multidões protestando contra “tudo isso que está aí”. Atordoados, os políticos começaram a prometer tudo para todos, até que as manifestações voltaram ao nada de onde surgiram, e tudo voltou como dantes no quartel de abrantes. Isso é normalmente o que acontece com movimentos sem objetivos claros e, principalmente, lideranças hábeis. A Revolução Francesa só funcionou porque tinha um Robespierre com um plano de ação para o dia seguinte.

Os protestos de 2023 (e aqui incluo os acampamentos em frente aos quartéis e o quebra-quebra de ontem) também surgiram “contra o sistema”. A semelhança com 2013, além da foto de populares no telhado do Congresso, acaba aqui. Ao contrário de 2013, havia um objetivo claro e uma liderança definida, ainda que oculta. O objetivo era pedir e apoiar um golpe militar que reconduzisse ao poder o líder oculto do movimento, Jair Bolsonaro. Antes de continuar, vamos tentar construir a ponte que liga esses dois eventos separados por 10 anos.

Havia, como dissemos, um mal-estar generalizado contra a classe política. Este mal-estar só fez aumentar e explodir com as revelações da operação Lava-Jato. O movimento pró-impeachment de 2015/2016 foi uma extensão dos protestos de 2013 e, a seu exemplo, apartidário. Nesse movimento, havia uma minoria que pedia um golpe militar. Eram caminhões de som menores, que ficavam na periferia das manifestações. O núcleo do movimento, formado por grupos como o MBL e o Vem Pra Rua, defendia uma saída institucional, o que acabou ocorrendo. Mas os grupos golpistas estavam sempre ali, como relíquias de um passado distante.

O caráter apartidário desses movimentos era o sinal evidente de que qualquer político que se mostrasse desvinculado do sistema tinha grande chance de sucesso. Bolsonaro levantou essa bandeira com rara habilidade, encarnando os ideais dessa espécie de “limpeza” das instituições. O seu anti-petismo, na verdade, era um anti-sistema. Notem que a ojeriza dos bolsonaristas nunca se limitou ao PT. O PSDB sempre foi “o parceiro do PT”, o centrão só se movia por dinheiro, o STF só tinha bandidos, os governadores eram sabotadores. Nada prestava, a não ser Bolsonaro.

Jair Bolsonaro, portanto, foi o underdog que, como herói improvável, apareceu como o líder daquela franja golpista que mal aparecia nas manifestações pelo impeachment. Tendo uma parcela firme, ainda que minoritária, do eleitorado a seu lado, a lei da polarização fez com que Bolsonaro obtivesse o apoio de outras parcelas da população que não comungavam de suas convicções anti-sistema. Uma minoria, assim, tornou-se uma maioria, e ele foi eleito em 2018 e perdeu por pouco em 2022.

Chegamos, então, a janeiro de 2023. Bolsonaro perdeu as eleições e aquela franja se reuniu na frente dos quartéis, pedindo um golpe militar. E ontem, enfim, partiu para as vias de fato, uma alegoria perfeita da retórica anti-sistema. Cada parte do patrimônio público depredado é expressão física desse discurso.

Obviamente, as instituições brasileiras estão doentes. As manifestações de 2013 e a ascensão de um sujeito como Bolsonaro indicam alguma falha no sistema. No entanto, também é óbvio que qualquer “solução” por fora do sistema tem chance zero de prosperar. Quando muito, eventos como o de ontem só servem para deixar claro a que ponto pode chegar o discurso anti-sistema, o que somente fortalece o mesmo sistema, o contrário do objetivo declarado das manifestações.

Por fim, há um líder inconteste do ocorrido. Por omissão e abuso de mensagens dúbias, o ex-presidente levou essa franja golpista a acreditar que algo poderia acontecer. Na medida em que foi ficando claro que nada aconteceria, só restou o ato de desespero que testemunhamos ontem. Bolsonaro foi o político que empunhou a bandeira anti-sistema, e sua retórica se materializou na depredação de ontem. Ele é o responsável último, senão juridicamente, pelo menos, politicamente.

Mas, não nos iludamos, prender Bolsonaro e os responsáveis pela depredação de ontem não irá pacificar o país. É preciso entender o que gerou esse fenômeno. Caso contrário, estaremos fadados a repeti-lo.

Gasta, mas fala diferente

“É proibido gastar.”

Tendo sido empossado como presidente em exercício, José Sarney leu o discurso preparado por Tancredo Neves para a primeira reunião ministerial do novo governo, em 19/03/1985. Ficou para a história a frase “é proibido gastar”, supostamente indicando um governo austero. No entanto, lendo o parágrafo anterior, podemos observar que a ordem valeria enquanto os ministros não fizessem um diagnóstico em suas pastas, de modo a identificar investimentos com o objetivo de promover o “desenvolvimento econômico com a geração de empregos”.

Lula segue a tradição. Mas, em tempos de redes sociais, aggiorna a mensagem. No melhor estilo “vendedor de curso on line”, pede para os ministros trocarem a palavra “gasto” por “investimento”. Assim, o “é proibido gastar” se torna “é proibido usar a palavra gastar”. O efeito final é o mesmo. Afinal, que ministro admitiria que seus gastos não são “investimento”? Isso vale tanto para 1985 quanto para 2023.

Tancredo, no entanto, encontrou um quadro bem diferente do que temos hoje, em termos de transparência das contas públicas. Tendo que lidar com uma inflação anual de 3 dígitos e verdadeiras máquinas paralelas de impressão de dinheiro, como o Banco do Brasil e os bancos estaduais, Tancredo não tinha como saber o buraco em que se metera. Lula não tem essa desculpa. Depois de décadas de reformas, sabemos, com razoável precisão, de onde vem e para onde vai o dinheiro público. Se o “investir” de Tancredo precisava ser antecedido por um diagnóstico financeiro de suas pastas por parte dos ministros, no caso de Lula, o diagnóstico já está feito. Em ambos os casos, no entanto, o “investimento para gerar o desenvolvimento” sempre se justifica.

O “é proibido usar a palavra gastar” de Lula nos dá a impressão de que andamos em círculos nesses últimos 40 anos, sempre em busca do “investimento que gerará o desenvolvimento”. A julgar pela perda de relevância do nosso PIB em relação ao PIB global nesse período, não se trata só de uma impressão.

O que esperar da popularidade inicial de Lula

Bolsonaro termina o mandato com uma popularidade líquida ligeiramente positiva (+2), segundo o Datafolha. Eu sei que tem muita desconfiança a respeito desse instituto de pesquisa, mas é o que tem a série mais longa, e serve bem para fazermos comparações intertemporais (ao longo do tempo), considerando que o viés, se houver, se mantém ao longo do tempo.

Considerando o histórico, a popularidade líquida de Bolsonaro no final de seu mandato é pior do que foi a de Itamar, FHC I, Lula I e II e Dilma I, mas é melhor do que foi a de Sarney, Collor, FHC II, Dilma II e Temer. Bolsonaro está ali na meiuca, não foi brilhante, nem tampouco um desastre, segundo a média das opiniões dos brasileiros.

Mas algo que eu gostaria de chamar a atenção não está neste gráfico. Segundo o mesmo Datafolha, em pesquisa divulgada no último dia primeiro, 49% dos brasileiros dizem esperar que Lula faça um governo ótimo ou bom, ao passo que 26% acham que o presidente fará um governo ruim ou péssimo.

Se esses mesmos percentuais se repetirem na primeira pesquisa de popularidade do novo governo, teríamos uma popularidade líquida de +23 pontos. Este é mais ou menos o mesmo nível de popularidade líquida que Bolsonaro tinha quando iniciou seu governo, e bem menor do que Lula I (+39) e Dilma I (+46). Claro, teremos que ver como sairão as primeiras pesquisas, que devem aparecer em 3 ou 4 meses, mas, aparentemente, o nível de boa vontade da população com Lula, hoje, é bem menor do que foi no passado.

Não passarão!

E os canalhas atacam outra vez! Não basta explorar os motoristas, a transnacional do mal, o Uber, quer também explorar os motociclistas! Onde já se viu “visar somente o lucro”, depois de pagar todos os impostos e o combinado com os motociclistas? Eduardo Paes já avisou: não vem que não tem!

As prefeituras de São Paulo e do Rio estão muito certas. Afinal, onde já se viu permitir que os motociclistas tenham uma fonte de renda extra e os passageiros, uma alternativa adicional (e mais barata) de transporte? Isso não pode acontecer! O Estado está aí pra isso mesmo, para garantir que os cidadãos possam gozar da vida mais miserável possível, de modo a diminuir a probabilidade de não ficarem dependentes do mesmo Estado. O sucesso dessa estratégia é indiscutível, como mostra a história. O Estado, sempre vigilante, pegou no ar mais uma tentativa de os cidadãos se emanciparem. Parabéns!

O truque por trás da mágica

Nada nessa mão, nada nessa mão e… o mágico tira da cartola R$ 20 bilhões para investimentos! O público, extasiado, aplaude a habilidade do ilusionista.

O estúpido teto de gastos impedia a mágica. Por isso, o orçamento do ministério era de somente R$ 6 bilhões. Agora não! Agora não há limites! Da cartola do mágico Lula, surge o dinheiro que antes não existia!

Mas Mister M revela o truque, que, na verdade, é muito simples: mais endividamento. O ministro da Fazenda promete um plano para encontrar esse dinheiro, mas a coisa está só na promessa, por enquanto. Vamos ver.

O fato é que aquele dinheiro para ajudar os pobres vai servir para Calheirinhos tocar obras por todo o país. A partir de agora, veremos várias políticas surgirem do anda, todas financiadas com o dinheiro da PEC do Bolsa Família. E você achando que aquele dinheiro todo era para ajudar os pobres…

Um verdadeiro democrata

O aliado de Lula na Argentina entrou com um processo de impeachment contra os juízes da Suprema Corte. Não, não foi um discurso em um carro de som ou uma fala no cercadinho da Casa Rosada. Alberto Fernández encaminhou, para o Congresso, um pedido formal de impeachment de todos os juízes do Supremo.

Procurei, na matéria de página inteira, incluindo a reportagem e a análise, os termos “democracia”, “anti-democrático”, “separação de poderes”, “estado democrático de direito” ou “autoritário”. Saí de mãos vazias. Alberto Fernández, assim como Lula, é um verdadeiro democrata. Sua ação contra o Supremo argentino certamente é inspirada pelos mais altos ideais democráticos.

Mas, claro, estou aqui buscando falsas simetrias. Bolsonaro é muito diferente de Alberto Fernández. Um é autoritário por natureza, o outro é um democrata por natureza. As suas naturezas tornam bem diferentes atos semelhantes somente na superfície. Não é o que se faz, mas quem faz.

A favor de Lula, temos que o presidente nunca orquestrou qualquer movimento contra o Supremo, mesmo durante o processo do mensalão, que condenou vários próceres do partido. Não sabemos se por convicção ou falta de ocasião. Mas uma coisa é certa: se ocorresse, seria um movimento dentro dos cânones do Estado Democrático de Direito. Afinal, Lula é um democrata.

A verdade

Bastaram três dias para uma parcela da opinião pública “descobrir” que o PT talvez não seja a tábua de salvação da democracia brasileira contra os “arreganhos autoritários” de Bolsonaro. Sejamos justos: a tal “vocação para o arbítrio” do ex-presidente se limitou à devoção ao coronel Ulstra e às invectivas contra Alexandre de Morais sobre um caminhão de som. O governo Bolsonaro não mudou uma vírgula da estrutura de governo a fim de lhe facilitar a perseguição de adversários políticos, que é a essência das ditaduras. No fim, como dolorosamente descobriram os bolsonaristas acampados na frente dos quartéis, Bolsonaro não passava de um ditador em potencial fake.

Segundo a definição da AGU, a nova Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia vai combater a desinformação em dois campos: políticas públicas e agentes públicos. A definição do primeiro certamente tem em mente a campanha de desinformação que ocorreu durante a vacinação contra a Covid. A segunda, deve ter como alvo a campanha de desinformação a respeito das urnas eletrônicas e os ataques a membros do STF. Ambas até podem ter o seu mérito, não é objetivo deste post discutir este ponto. A questão, como sempre, é quem define o que é “desinformação”. Ou, de maneira mais direta, quem define o que é mentira.

“Conhecereis a verdade, e a verdade vos fará livres”. Este era o versículo predileto de Bolsonaro, o que, por suposto, o colocava ao lado daqueles que defendem a “verdade”. Se, por outro lado, os petistas se arvoram no direito de definir oficialmente o que é “verdade”, temos, então, um problema. Com Pilatos, perguntamos: “o que é a verdade?”

Seria muito reconfortante conhecermos “a verdade”. Não haveria disputas nem guerras. Todos concordaríamos sobre como resolver os problemas. Este é o conforto que as religiões nos dão, o de “conhecer a verdade”. Ocorre que a tal “verdade” encontra-se soterrada sob os escombros de nossas paixões. Soberba, ódio, amor, preferências inatas, experiências traumáticas levam cada ser humano a ter e defender a sua própria “verdade”.

A “ciência” é, frequentemente, chamada a testemunhar em favor da “verdade”. Sim, a ciência busca a verdade. O problema não é a ciência, mas os cientistas. Como seres humanos, os cientistas também são vítimas de suas paixões. A construção da verdade científica depende da interação dos cientistas entre si, cada um defendendo o seu feudo. Se os políticos que enchem a boca para falar que estão ao lado da “ciência” soubessem do que a salsicha é feita, talvez tomassem mais cuidado. Os cientistas também amam.

De tudo isso, resta uma convicção: a “verdade”, qualquer que seja, não pode ser determinada de cima para baixo em uma sociedade democrática. Um Ministério da Verdade só cabe em sociedades guiadas por um espírito autoritário. Uma “verdade revelada” por uma autoridade só faz sentido quando se reconhece naquela autoridade um cunho divino, não submetido às paixões humanas. Fora isso, a cacofonia de várias verdades disputando o primado de ser “a verdade” é a característica do reino dos homens. À perplexidade de Pilatos, a única resposta possível é o debate democrático, que passa longe de termos uma “verdade” determinada por um órgão do governo.