Um plano com a cara do Brasil

Finalmente, habemus arcabouço fiscal! Faltam ainda muitos detalhes, que somente serão conhecidos após a apresentação do projeto de lei. Portanto, o que vai a seguir é somente o que foi possível deduzir de uma apresentação em Powerpoint e de algumas poucas palavras do ministro Haddad durante a apresentação.

De toda a apresentação (aliás, a piada que corre no mercado é que, desde Eike Batista, essa era a primeira vez que alguém estava tentando enganar o mercado com um Powerpoint), apenas um slide, dos 12 da apresentação, traz a regra fiscal. Ou seja, ainda faltam muitos detalhes, que devem vir com a publicação do projeto de lei. A análise a seguir, portanto, conta com certas premissas que somente serão confirmadas quando sair o texto definitivo da lei.

O slide a que me referi é o seguinte:

O plano tem, basicamente, duas partes:

  • Um “compromisso” de superávit primário e
  • Uma regra de evolução de despesas (o novo “teto de gastos”)

Foquemos, inicialmente, na regra, que diz o seguinte: as despesas do ano seguinte crescerão, em termos reais, o equivalente a 70% do crescimento das receitas nos últimos 12 meses, também em termos reais. Estes “últimos 12 meses” referem-se sempre ao período de julho de um ano até junho do ano de referência, da mesma forma que o teto de gastos originalmente previa. Assim, as despesas de 2024 crescerão tendo como base o crescimento de receitas entre julho de 2022 e junho de 2023. Vale lembrar que esse período foi modificado, no caso do teto de gastos, para janeiro-dezembro, em uma das muitas mutilações que a regra do teto sofreu durante o governo Bolsonaro. Portanto, a depender da conjuntura, esse período poderá ser modificado também.

Além disso, esse crescimento real de despesas tem um piso e um teto, 0,6% e 2,5%, respectivamente. Acresça-se que, se o objetivo de superávit primário tiver ficado abaixo do piso da banda no ano anterior, o crescimento das despesas estará limitado a 50% das receitas, e não mais a 70%. Vamos ver uma tabelinha que resume a regra:

Crescimento de receitas no ano anteriorCrescimento real de despesas para o ano seguinte, se o objetivo de superávit primário for atingidoCrescimento real de despesas para o ano seguinte, se o objetivo de superávit primário não for atingido
-1%0,6%0,6%
0%0,6%0,6%
1%70% x 1% = 0,7%0,6%
2%70% x 2% = 1,4%50% x 2% = 1,0%
3%70% x 3% = 2,1%50% x 3% = 1,5%
4%2,5%50% x 4% = 2,0%
5%2,5%50% x 5% = 2,5%
6%2,5%2,5%

A regra, portanto, é bem mais frouxa e complexa do que o teto de gastos, que previa crescimento real zero de despesas em qualquer cenário. A questão é: qual o efeito disso sobre as contas públicas?

Para entender, é preciso assumir algumas premissas.

  1. Para o crescimento do PIB, taxa Selic e IPCA, vamos usar inicialmente os números do relatório Focus até onde estes existem (2027), e depois vamos repetir os números de 2027 até 2030.
  2. Também vamos usar o Focus como premissa para o déficit de 2023 (-1%).
  3. Precisamos de uma premissa para o crescimento das receitas. Vamos usar uma elasticidade crescimento de receitas / crescimento do PIB de 2 (para cada ponto percentual de crescimento real do PIB, teremos um crescimento real de receitas de dois pontos percentuais). Quando maior for este número, mais fácil será atingir os objetivos determinados pelo plano. Assumi 2 porque é um número que parece ser o mais prevalente, conforme o gráfico abaixo. Obviamente, a elasticidade pode variar muito de ano para ano em função de receitas extraordinárias, mas é preciso assumir alguma premissa para trabalharmos.

Com as premissas vistas acima em mãos, vamos fazer o cálculo do superávit primário alcançado ao longo dos anos. É o que podemos ver no gráfico abaixo, que chamo de Cenário 1:

Observe como, com as premissas adotadas, a meta de superávit primário do plano seria alcançado somente em 2030 (estou assumindo que o próximo governo adotaria a mesma meta de superávit primário). Até 2026, que é o horizonte do governo, o superávit primário fica muito distante da meta.

Vamos analisar um segundo cenário, em que assumimos um aumento permanente de receita da ordem de 1% do PIB a partir de 2024, mantendo tudo o mais constante. Teríamos o seguinte:

Aí está o truque: para cumprir a meta de superávit primário proposta, é preciso aumentar a receita em 1% do PIB, ou cerca de R$ 100 bilhões a mais de arrecadação por ano. Resta saber quem vai pagar a conta.

Vamos agora simular um terceiro cenário, em que tiramos esse aumento de carga tributária e introduzimos um ano de recessão de -1% em 2024, mantendo todos as outras premissas constantes. Vejamos:

Observe como uma recessão (ou um crescimento mais baixo) faz com que o superávit primário se afaste de maneira dramática do objetivo. Isso acontece porque as despesas continuam crescendo, independentemente da atividade econômica. No final, lá em 2030, o superávit primário é recuperado porque as despesas passam a crescer somente à razão de 50% das receitas enquanto a meta não é recuperada. Aliás, essa é a virtude desse plano, ou de qualquer plano que tenha controle de gastos: se obedecido, mais cedo ou mais tarde se consegue gerar superávits primários, desde que o país cresça.

Finalmente, vamos a um quarto cenário, em que combinamos a recessão com o aumento permanente da carga tributária em 2024:

Note que, neste cenário, o objetivo somente seria alcançado em 2027.

Agora, vamos ao que interessa: o que aconteceria com a trajetória da dívida pública em cada um desses cenários? É o que veremos a seguir:

Observe como a relação dívida/PIB só se estabiliza e começa a cair nos cenários em que ocorre o aumento da carga tributária. Essa é a ideia do plano: uma mistura de controle de gastos com aumento de receitas. Sem esse último ingrediente, a dívida não se estabiliza.

De alguma forma, há que se concordar que esse plano fiscal tem mais a cara do Brasil do que o teto de gastos. Somos uma sociedade que exige todo tipo de direito que, no final das contas, só podem ser pagos com mais arrecadação. Essa coisa de cortar gastos não está em nosso DNA, e o teto de gastos fracassou porque não considerou este traço brasileiro. Queremos mais direitos, e o plano do governo do PT tem o mérito de explicitar o custo dessa escolha da sociedade brasileira.

Uma última consideração. O arguto leitor terá notado que o item 4 do Powerpoint prevê que “excedentes” dos superávits primários produzidos ao longo do tempo poderão ser usados para investimentos. Então, uma simulação que podemos fazer é qual seria a trajetória da dívida se o superávit primário tivesse um teto de 1% do PIB, sendo todo o excesso investido. A resposta está no gráfico abaixo:

Se não deixarmos o superávit crescer além de 1% do PIB, a dívida pública não converge, considerando as premissas de PIB, inflação e taxa de juros do Focus para os próximos anos.

Claro, sempre alguém poderá argumentar que, se o excedente for utilizado “corretamente” para investimentos, o país vai crescer mais, permitindo a redução da dívida. Seria uma espécie de “troca” entre superávit primário e investimentos. Já tentamos isso em um passado não muito distante, e não deu muito certo. Quem sabe agora vai.

ERRATA: esta é a 2a versão deste post. Na 1a, havia usado uma relação dívida/PIB de 76,0% em 2022, quando, na verdade, a relação dívida/PIB havia fechado em 72,9%, o que mudou o nível dos gráficos de dívida/PIB, mas não a sua trajetória, que é o que importa.

Sempre teremos Washington

Há um ano, eu comentava aqui artigo do economista Joseph Stieglitz, elogiando o acordo do FMI com a Argentina. Segundo o Nobel, pela primeira vez o FMI estava agindo corretamente, fechando um acordo “flexível”, em que o país não seria submetido a um “arrocho” sem sentido.

Bem, como era previsível, a tal “flexibilidade” não foi suficiente. Fernández vai pedir o penico para o FMI e, para tanto, pediu a ajuda de Biden. Pessoas e governos, quando se trata de dívida, costumam agir da mesma forma: trabalham no limite das possibilidades. Mais “flexibilidade” significa limite maior. E, não tenha dúvida, esse limite será utilizado. Daí, quando acontece um “imprevisto” (no caso, a maior seca dos últimos 90 anos), não há espaço de manobra. Se tem algo previsível, é que sempre ocorrerão imprevistos, seja na vida das pessoas, seja na vida dos governos.

Ao FMI não restará outra alternativa, a não ser ”flexibilizar” ainda mais o maior acordo da história com algum país, no que será novamente aplaudido por Stieglitz e seus amigos. Até que outro ”imprevisto” ocorra, e outra “flexibilização” seja solicitada. Enquanto isso, a lição de casa da austeridade vai ficando para depois, pois sempre teremos Paris, quer dizer, Washington.

O substituto do teto de gastos

Depois de meses de discussões, essa é a primeira vez que vaza alguma coisa concreta sobre o novo “arcabouço fiscal”, que irá substituir a regra do teto de gastos. Este é um primeiro comentário, outros virão na medida em que os detalhes (onde, como sabemos, mora o tinhoso) forem sendo conhecidos.

Por enquanto, a única coisa que sabemos é que haverá um… teto de gastos. O critério, porém, é pior. Ao atrelar as despesas às receitas, a nova regra torna-se pró-cíclica: quanto mais o PIB cresce, mais crescem as receitas e, portanto, maior o espaço para gastar. E vice-versa, se temos um crescimento menor do PIB, ou mesmo uma recessão, menor o crescimento de receitas e, portanto, diminui o espaço para o crescimento de despesas. Na regra anterior, as despesas cresciam nominalmente, independentemente do crescimento do PIB. Assim, quando o PIB crescia menos, as despesas passavam a representar uma fatia maior do PIB, em um movimento contracíclico.

Mauro Benevides, deputado do PDT e unha e carne com Ciro Gomes, afirmou que o caráter anticíclico da nova regra estaria na diferença de 70% do crescimento das despesas para 100% do crescimento das receitas, o que permitiria fazer um ”colchão” no tempo das vacas gordas para gastar no tempo das vacas magras. O problema é que essa dinâmica colide com um dos gatilhos mencionados na reportagem, em que o limite de despesas baixaria a 50% do crescimento das receitas no exercício seguinte em caso de extrapolação do limite de 70% no exercício anterior. Ou seja, o limite de despesas diminuiria ao invés de aumentar, em caso de fraco crescimento do PIB e consequente diminuição de receitas. Entre o repórter e o deputado, alguém não entendeu a regra.

Por fim, parece que haverá metas para o superávit primário. Não ficou claro, do que vazou, se essas metas são somente projeções ou serão restrições que acionarão gatilhos. Neste último caso, teríamos redundância de regras, e não seria realmente necessário ter regras de despesas. Vivemos durante 15 anos produzindo superávits primários sem a necessidade de regras de controle de despesas. Quando as receitas desabaram, a partir de 2013, os superávits sumiram. Qual a chance de qualquer regra de limite de despesa para preservar o superávit primário sobreviver a uma desaceleração forte do PIB? Despesas públicas são, por natureza, incomprimíveis, são como contratos com a sociedade, ninguém aceita abrir mão de “direitos adquiridos”. A regra de teto não sobreviveu quando mais precisávamos dela, e o mesmo vai ocorrer com qualquer regra de limitação de despesas quando a porca torcer o rabo.

As metas de superávit declaradas pelo governo são dacronianas perto do que se alcançaria com a finada regra do teto. Ou seja, a considerar essas metas, a nova regra seria ainda mais dura do que o teto de gastos. A não ser que tenhamos um brutal aumento de carga tributária.

Desincentivos econômicos

Tenho um colega de trabalho (vou chamá-lo de Arturo, nome fictício) que é early adopter de novas tecnologias. Ainda mais quando prometem ser mais baratas do que as velhas tecnologias. Por isso, não resistiu à tentação de instalar o novo app de compartilhamento de transporte da Prefeitura de São Paulo, o MobizapSP (vou chamar de Mobi daqui em diante, só para facilitar). Tive oportunidade de escrever a respeito em um longo post alguns dias atrás.

Antes de contar a experiência do Arturo, devo dizer que também instalei o app. Foi uma experiência. Só não tive que informar o tamanho do meu calçado, mas foi quase. O número de perguntas quase me fez desistir. Mas fui paciente (e confiante na Política de Proteção de Dados da empresa), e cheguei ao fim. Pude, finalmente, verificar a usabilidade do app. Não tenho palavras. Por isso, só vou reproduzir uma avaliação que está na loja da Apple: “Parece um trabalho de faculdade feito por meia dúzia de amadores”.

Mas meu colega não se intimidou com essas dificuldades menores. Na quinta-feira passada, dia de greve no metrô, tentou chamar um Mobi. Um motorista aceitou mas, em seguida, cancelou. Não tendo mais tempo para continuar tentando, desistiu. Detalhe: quando o motorista aceita, o app já cobra o cartão de crédito. Quando o motorista desiste, o app estorna o lançamento. O Uber e a 99, como sabemos, só cobra quando se chega ao destino.

Ontem, segunda-feira, meu colega resolveu tentar novamente. Sorte! O motorista aceitou e não cancelou! O problema é que o app não permite saber onde está o motorista, e também não dá uma previsão de quando ele chega. Arturo, que não se dá por vencido facilmente, esperou pacientemente. E não é que o motorista chegou mesmo! Foram “apenas” 24 minutos de espera, no escuro, sem informação alguma.

Antes de continuar, vale mencionar que a corrida solicitada teria o preço de R$ 18,14. A mesma corrida, pelo Uber X, estava em R$ 39,93. Tarifa dinâmica, beibe! No Mobi não tem nada disso, aqui é a mesma tarifa sempre, faça sol, faça temporal, com greve ou sem greve de metrô. Inegavelmente, Arturo estava bem satisfeito de poder economizar essa grana.

Entrando no veículo, Arturo logo perguntou ao motorista se era a primeira vez que usava o app. Sim, era. O motorista, assim como meu colega, estava testando o serviço. Tinha deixado ligado o dia inteiro, e aquela tinha sido a primeira chamada do dia. O motorista, seu Evaristo (nome fictício), disse que o app não fornece o endereço de quem pediu o carro, só mostra um bonequinho. “Se passar sem querer, já era!”, foi a conclusão do seu Evaristo. Meu colega perguntou se ele tinha visto a mensagem do chat (Arturo tinha mandado uma mensagem perguntando se o motorista estava a caminho). “Não, não vi”. Ao contrário do Uber, o Mobi não mostra para o motorista as mensagens quando chegam, é preciso que o motorista abra o chat… Além disso, o app não mostra quanto tempo falta para chegar ao destino.

O percurso todo levou 23 minutos. Considerando o tempo entre atender ao chamado e o final da corrida, foram 47 minutos. O motorista levou, em 47 minutos, R$ 18,14 para casa (sim, esse foi o valor que apareceu para o meu colega, mas ele descobriu, no final, que esse é o valor do motorista. A cobrança foi de R$ 20,37. Ou seja, para saber o valor de sua corrida, precisa dividir o valor que aparece por 0,89. Bizarro).

Voltemos. Foram R$ 18,14 por 47 minutos. Considerando que, no anda e para do trânsito, foram uns 2 litros de gasolina, líquido sobraram uns R$ 8. Obviamente, por mais que a comissão do Uber seja maior, em horários de pico não tem comparação, a remuneração do motorista é maior. Portanto, o Mobi não tem tarifa dinâmica, mas também não vai ter motorista aceitando corrida em horário de pico. Já é difícil com Uber, imagine com um app que paga quase zero.

Em períodos normais, as tarifas se igualam, e então os motoristas irão aceitar mais corridas pelo Mobi, por que a comissão do app é menor. Mas aí, entra a usabilidade. Entre duas tarifas semelhantes, os usuários vão preferir usar o Uber, que tem uma experiência de usuário muito melhor. Então, temos praticamente um conjunto vazio: em horários de pico, os motoristas preferem o Uber; em períodos normais, os usuários preferem o Uber.

Fico cá imaginando a quantidade monstruosa de dinheiro que será necessário para desenvolver algo minimamente semelhante ao Uber ou 99, com anos de desenvolvimento acumulado. O consórcio que ganhou a licitação vai precisar fazer várias rodadas de capital para manter o negócio em pé. Haja investidor-anjo. A não ser, claro, que o consórcio tenha outros interesses na Prefeitura.

Meu colega, tendo gostado da experiência de ontem, resolveu repetir a dose hoje. Com o Uber X a R$ 44,92, chamou um Mobi, que estava cobrando os mesmos R$ 18,14 de ontem, mas o motorista aceitou e cancelou. Tentou mais uma vez, idem. Uma terceira, a mesma coisa. Foram, no total, 14 tentativas (sim, Arturo é uma pessoa perseverante). O seu Evaristo, pelo jeito, não topou levar o Arturo para casa de graça novamente. Assim como nenhum dos seus colegas. Ainda não inventaram um ser humano que não reaja aos incentivos econômicos.

Precificando o risco PT

O ministro das Minas e Energia do governo Lula, Alexandre Silveira, voltou a questionar, ontem, a privatização da Eletrobrás. Seguindo o mantra do chefe, afirmou ser “injusto” que o governo detenha 40% do capital da empresa, mas que só possa indicar um de seus nove conselheiros.

O processo de privatização contou com lei própria, e teve o aval do TCU e do STF. Trata-se, portanto, de ato jurídico perfeito. Como tal, gerou efeitos que não podem ser revertidos sem o pagamento de indenização. Por exemplo, os investidores que compraram ações da Eletrobrás no leilão de privatização somente o fizeram porque o governo teria direito a apenas um conselheiro. Compraram ações de uma empresa privada, não de uma empresa de capital misto. Fosse esse o caso, o preço seria bem diferente. Portanto, qualquer mudança nesse status ensejaria ações de ressarcimento, dado que se comprou gato por lebre.

Haveria outra maneira de consertar a “injustiça”: vender as ações em poder da União, de forma a harmonizar o poder de voto com a participação no capital. A preços de hoje, o governo colocaria no bolso algo como R$ 30 bilhões pela sua participação. Aliás, esse era o objetivo de manter a participação de 40%: o governo se beneficiaria da esperada valorização da empresa como entidade privada, e poderia vender esse lote por um valor muito maior. A ingenuidade de quem modelou a venda não permitiu levar em consideração que essa participação de 40% seria usada por um governo do PT como desculpa para tentar reestatizar a empresa. Alguma dúvida de que, entre colocar R$ 30 bilhões no bolso ou usar a empresa para seus “interesses estratégicos”, um governo do PT optaria pela segunda alternativa?

O governo Lula tem batido na tecla dos investimentos em infraestrutura, muitos dos quais dependem de parceria com a iniciativa privada, através de PPPs. Qual será a segurança que os investidores terão em participar de uma parceria com todo jeito de caracú? O que será capaz de fazer, no futuro, o governo do PT para reparar “injustiças” nessas parcerias? Claro que os participantes dessas parcerias cobrarão um preço proporcional ao risco PT.

O ataque à privatização da Eletrobrás tem a mesma natureza do ataque à independência do BC. O PT não se conforma em não ter os meios de poder que agências governamentais e empresas estatais lhe dão para implementar suas políticas. É preciso dominar tudo, sem amarras, para “fazer o bem”. Mesmo que isso signifique atropelar regras mínimas de governança. Afinal, são detalhes que só atrapalham, diante do grandioso futuro que nos espera.

A agência de checagem governamental: bem-vindo à URSS

O governo federal acaba de lançar uma “plataforma de checagem de informações“, no melhor estilo “agência de checagem”, com direito a um filmete de apresentação de 1 minuto (coloquei o link nos comentários).

Antes de entrar na “plataforma” propriamente dita, vale comentar o filmete, pois o contraste com o conteúdo da “plataforma” é chocante.

Em um minuto, o filmete publicitário manda as seguintes mensagens:

1. Os brasileiros precisam se unir contra o ódio

2. Informações falsas podem destruir a democracia

3. Informações falsas podem destruir famílias

4. Informações falsas podem destruir reputações

5. Informações falsas podem destruir vidas

6. É hora de frear o ódio

7. É hora de parar de repassar informações falsas

8. Quem espalha fake news, espalha destruição

Tudo isso embalado em muito choro, sorrisos, abraços, enfim, um clima bem emotivo.

Aí, você vai até a “plataforma”. O que você encontra? Uma série de refutações de “notícias falsas” contra o próprio governo e, claro, contra Lula.

Alguns exemplos:

“É falso que governo Lula mandou desligar bombas do São Francisco”

“É falso que ministério da Fazendo vai taxar setor de games”

“É falso que Lula levou mais de 400 presentes da Presidência”

E por aí vai. Tem espaço, inclusive, para “esclarecimentos” do governo. Por exemplo:

“Governo Federal esclarece sobre live com primeira-dama em canal no youtube”

“Esclarecimentos sobre os dados de desmatamento na Amazônia Legal jan/fev 2023”

Vários desses desmentidos são reproduções de levantamentos já anteriormente feitos por agências de checagem. Fica a questão: o governo irá reproduzir todos os desmentidos, ou somente aqueles que lhe interessam?

Alguns “esclarecimentos” são mero pretexto para exercer a hagiografia do presidente. Por exemplo:

“Presidente não disse que pobre deve esperar ajuda do governo.

A frase tirada de contexto, em vídeos editados postados em redes sociais, transmite uma ideia que não condiz nem com o legado e nem com a missão do presidente Luíz Inácio Lula da Silva”.

E, finalmente, como não poderia deixar de ser, não falta espaço também para fake news. Por exemplo, quando a “plataforma” refuta a notícia de que Ludmila teria recebido R$ 5 milhões da Lei Rouanet. Na verdade, foi a Lei do Audiovisual, mas a frase que finaliza o esclarecimento é fake: “Vale lembrar que nem a Lei do Audiovisual e nem a Lei Rouanet têm recursos transferidos diretamente do Tesouro previstos no Orçamento. Ou seja: o governo não tira dinheiro de outras áreas para financiar a cultura do país”. A verdade é que tira sim: isso se chama “gasto tributário”, em que o governo abre mão de impostos para fomentar alguma política pública. E “gastos tributários” estão previstos no orçamento. Se não fosse gasto, estaria criada a fonte da eterna juventude, em que se pode ter todos os bens do mundo sem gasto nenhum.

Em resumo: para quem acreditou no filmete, e esperava, finalmente, um Brasil livre das fake news, onde o leite e o mel correriam livremente, recebeu uma página em que o governo se defende. É o governo determinando como as notícias sobre si próprio devem ser corretamente interpretadas. Se isso não é autoritário, então perdi o sentido das palavras.

Paranoia, uma característica dos extremos

Quem dá uma passeada por perfis governistas no Twitter sai com a nítida impressão de que estamos às vésperas de um golpe de estado. É impressionante, mas essa coisa do Moro pegou mesmo nas hostes governistas. O pessoal está em pânico, pintado pra guerra. Não entendo muito por quê, dado que Moro é uma sombra do que foi durante o julgamento da Lava-Jato, seu desempenho como político é pífio. Só se explica por uma espécie de paranoia, a mesma que fazia Bolsonaro e bolsonaristas ver traidores e ameaças debaixo da cama.

E olha que estamos com menos de 3 meses de governo. Imagine quando tiverem passado dois anos, com resultados medíocres (serão) e popularidade em baixa, qual será o nível de virulência contra qualquer sombra de ameaça. A data de validade do amor venceu no dia 30/10.

A resposta política do BC

Quando Lula assumiu, em 2003, o IPCA estava rodando a 12% (chegaria a 17% em meados do ano) e a Selic estava em 25%. Henrique Meirelles, então presidente do BC nomeado por Lula, não teve dúvida: elevou a Selic para 25,5% em 22/01, e novamente, na reunião de 19/02, para 26,5%, mantendo a taxa básica neste patamar até a reunião de 18/06, quando decidiu pela redução em tímidos 0,5%. Isso em um mundo em que a taxa básica nos EUA estava em suas mínimas históricas até então, 1,25%.

Faço um convite: procure alguma palavra de Lula a respeito de taxa Selic neste período. Faço outro convite: procure alguma palavra da claque petista nesse período. Os únicos que reclamavam eram os empresários da FIESP, liderados pelo então vice-presidente José de Alencar. Estes, pelo menos, guardam coerência no tempo, estão sempre reclamando da taxa de juros e do câmbio.

O contraste entre 2003 e 2023 é absolutamente acachapante. Lula deu a senha, e a claque petista vem atacando o BC tal qual matilha de cães em cima de invasor de terreno. Dado que o comportamento do BC hoje é em tudo semelhante ao comportamento do BC em 2003, há que se procurar razões para essa mudança de postura de Lula. Há duas hipóteses não excludentes: 1) Lula tem “novas ideias” a respeito de economia e 2) o presidente do BC não foi escolhido por ele, mas por sua nêmesis, Jair Bolsonaro.

A primeira hipótese contraria a imagem do “Lula pragmático” que povoou a imaginação de boa parte dos economistas e empresários preocupados com o futuro de nossa democracia. O ponto é que Lula nunca teve ideias diferentes. Na verdade, nunca teve ideia alguma sobre economia, a não ser o tosco “o consumo girando a roda do crescimento”. Para sua sorte, deu ouvidos a Antônio Palocci, o único petista do mundo com ideias razoáveis sobre economia. Hoje, o presidente conta com Fernando Haddad, que, ao contrário do que seu apelido de “o mais tucano dos petistas” faz supor, está a anos-luz de Palocci, e não tem a mínima condição ou convicção de mudar o rumo da prosa. Prova disso (mais uma) é a matéria de ontem com Guilherme Mello, secretário de política econômica de Haddad.

Mello reverbera a tese de que o BC está atuando politicamente, deixando a técnica de lado. E ele tem razão, ainda que não da forma como ele pensa. Na cabeça de Lula, e mimetizado por sua claque, está a ideia de que um presidente do BC nomeado por um inimigo político só pode estar atuando politicamente contra o seu governo (hipótese 2 acima). O ponto é que quem trouxe o BC para a arena política foi Lula e sua claque. Explico.

Muitos pensam que o principal (ou único) instrumento de que o BC dispõe para controlar a inflação é a taxa Selic. Ledo engano. Sim, a taxa de juros é o instrumento, mas o principal ingrediente dessa receita é a credibilidade do BC junto aos agentes econômicos. O conjunto da sociedade precisa acreditar que o BC irá fazer a sua lição de casa, que é manter a inflação sob controle.

Pois bem, o que acontece quando Lula e sua claque politizam o BC? O efeito dessa politização é incluir um ingrediente estranho na matriz de decisão do BC. Tecnicamente, o BC até poderia ter elementos para baixar as taxas de juros. Mas como isso não é preto no branco, e ocorreu a politização, os agentes econômicos poderiam questionar se dado movimento foi realizado por motivos técnicos ou políticos. Em outras palavras, se o BC baixou os juros por vontade ou por pressão.

O BC, para manter a sua credibilidade, precisa incluir essa politização em sua matriz de decisão. Isso significa taxas de juros mais altas por mais tempo, porque não pode restar dúvidas de que a decisão de baixar os juros foi realmente técnica. Então, Guilherme Mello tem razão, a decisão foi, também, política. Mas não no sentido que Mello, Haddad e Lula dão ao termo. Quem começou a politização foi Lula. O BC apenas reagiu para preservar a sua credibilidade, como manda o livro-texto. A manutenção da frase em que afirma que pode retomar a alta dos juros vai nessa linha. Este é o típico caso em que a pressão política provoca o efeito inverso ao pretendido.

Existem duas formas de Lula atingir seu objetivo: acabando agora com a independência formal do BC ou ir trocando os diretores até formar maioria de acordo com suas “ideias”. Em ambos os casos, a credibilidade do BC terá desaparecido e, com ela, qualquer capacidade de controlar a inflação.

O problema é o consumo

Há cerca de dois meses, o secretário-geral da ONU, António Guterres, proferiu discurso furibundo, propondo a responsabilização das petroleiras pelo aquecimento global. As empresas seriam obrigadas a pagar uma indenização global, a exemplo das empresas de tabaco, que acabaram com a saúde de milhões. Analisei a genial ideia neste post aqui.

Hoje, em entrevista de página inteira no Valor, o ministro do meio-ambiente da Noruega, Espen Barth Eide, que está em visita ao Brasil, coloca as coisas em seus devidos lugares. O problema não está na produção, mas no consumo. Óbvio.

Talvez por ser um representante de um dos maiores exportadores de petróleo do mundo, o ministro vê a questão do ponto de vista do produtor: como inviabilizar a produção, se não há substituto viável para o consumo? O caos se seguiria, conclui, em um raciocínio que o secretário-geral da ONU foi incapaz de fazer.

Barth Eide afirma que, até o momento, não houve verdadeiramente substituição de fontes de energia, mas simples acréscimos. Ou seja, os combustíveis fósseis continuam sendo queimados como no passado, e as novas fontes de energia só serviram para mal e mal saciar a fome adicional de energia de um mundo que consome cada vez mais.

Os mais cínicos poderiam pensar que o ministro norueguês esteja, no final do dia, defendendo uma fonte importante de receita de seu país. Mas eu acredito que, de fato, há aqui uma preocupação genuína com o futuro do planeta. A diferença é que a abordagem é adulta, não a juvenil típica de quem quer resolver os problemas do mundo na base da vontade e do desejo.

Comparando alhos com alhos

Apenas um breve comentário a respeito de algumas comparações que vejo recorrentemente por aí, entre a taxa de juros real praticada no Brasil e em outros países. O objetivo dessas comparações é sempre mostrar que o Brasil tem, disparado, a maior taxa de juros real do mundo, e isso estaria, obviamente, errado.

Em primeiro lugar, vejamos se a taxa de juros praticada pelo Roberto Campos Neto é uma excepcionalidade ou é a regra. Para tanto, vamos tomar três países da América Latina mais ou menos comparáveis com o Brasil (Chile, Colômbia e México) e vamos construir um gráfico comparando a taxa de juros básica de cada economia comparada com a inflação dos últimos 12 meses. Essa não é a medida ideal, pois o importante é saber a taxa de juros comparada com a expectativa de inflação futura. Mas, como as comparações que vejo por aí consideram a inflação passada, vamos usar a mesma régua. O resultado está no gráfico 1.

Observe como, com raras exceções (o período Tombini e o final de 2020 e início de 2021), a taxa de juros real brasileira sempre foi bem superior às de seus pares na América Latina. Essa é a regra, não a exceção, o que inclui grande parte do período PT no governo. Ou seja, a taxa de juros muito alta não parece ser uma maldade especial de RCN, mas algo mais estrutural da economia brasileira.

O gráfico 2 explicita um dos motivos pelos quais precisamos pagar taxas reais mais altas: a nossa dívida é consistentemente mais alta do que a de nossos pares.

Mais especificamente, 50 a 60 pontos percentuais mais alta do que no Chile, e cerca de 30 pontos percentuais mais alta do que no México e Colômbia. Não à toa, a dívida doméstica desses países ainda é grau de investimento, enquanto nós perdemos o selo de bom pagador.

Então, quando alguém tentar comparar o Brasil com outros países, lembre-se que cada país tem suas característica próprias, e a comparação deve levar em consideração essas características.