O sempre genial Gustavo Franco traz hoje, “en passant” um paralelo bem sacado entre a proposta de arcabouço fiscal do governo Lula e a política de “feijão com arroz” do ex-ministro da Fazenda, Mailson da Nóbrega, na segunda metade do governo Sarney.
Um pouco de história. Depois de 3 planos fracassados (Cruzado I, Cruzado II e Bresser) e 3 ministros da Fazenda (Dornelles, Funaro e Bresser-Pereira), o governo Sarney optou por um ministro e uma política “feijão-com-arroz”. Mailson da Nóbrega assumiu o comando da pasta em janeiro de 1988, e colocou em prática um “não plano”. A ideia era dar um tratamento gradualista ao problema do déficit público e, com isso, ir controlando a inflação aos poucos. A ideia de Sarney era evitar uma desaceleração da economia que minasse a sua popularidade.
Obviamente não deu certo, a inflação continuou subindo, e a política “feijão-com-arroz” morreu um ano depois, com o Plano Verão, que envolvia, mais uma vez, congelamento de preços. Seriam necessários mais dois planos além deste (Collor I e II) para que chegássemos ao Plano Real, o único que verdadeiramente atacou o problema do déficit público.
Esse arcabouço tem pé, rabo e focinho de “feijão-com-arroz”: vamos atacar o problema de maneira bem gradual, de modo a não desacelerar a atividade econômica e a não afetar a popularidade do governo. Infelizmente, só estamos empurrando o problema com a barriga. A realidade se fará presente mais cedo ou mais tarde. E, quanto mais tarde, mais cara será a conta a pagar.
Esse é o verdadeiro motivo da visita-relâmpago de Fernandez ao Brasil: juntar forças com Lula a fim de evitar que alguém do estilo de Bolsonaro vença as eleições de outubro. Lula o ajudará por motivos ideológicos, travestidos de razões comerciais.
Acabaram os dólares em poder do governo argentino, e isso os deixa em uma situação complicada, pois não conseguem fornecer dólares ao importadores para que esses possam importar bens.
Mas realmente faltam dólares na Argentina? Provavelmente, não. A classe média argentina deve possuir bilhões de dólares, nos colchões e em contas no exterior. Os argentinos formaram a segunda maior torcida na Copa do Mundo no Catar. E não se vai à Copa do Mundo sem dólares.
Por que, então, o governo argentino não consegue colocar as mãos nesses dólares? Por que os argentinos não vendem seus dólares ao governo em troca de pesos? Simples: falta de confiança. Ninguém confia que o governo fará a lição de casa para controlar a inflação. Portanto, ninguém quer pesos.
O governo argentino mantém um câmbio de faz-de-conta, enquanto o dólar no mercado paralelo tem ágio de quase 100%. Para estimular os exportadores de soja a liberarem seus dólares, o governo inventou o “câmbio-soja”, a 300 pesos por dólar. O câmbio oficial está em 230, o paralelo a quase 500. Óbvio, os exportadores não querem nem saber. A solução, claro, passa por parar de fazer de conta que o câmbio é 230, para o governo ter alguma chance de colocar as mãos nos dólares dos exportadores de soja. Mas e a inflação, que já está em mais de 100% ao ano? Seria necessário, então, dar um choque brutal de juros, derrubando a atividade econômica. Em ano de eleição? Nada feito. Mais fácil pedir dinheiro para o Lula.
Sim, tem o efeito da seca. Mas é aquela história: quem não se prepara para os tempos ruins (que sempre vêm), sempre lamenta o azar. Quando a maré é boa, todo governante é um gênio. É nos tempos de dificuldades que se distingue quem realmente fez a lição de casa. Como dizemos no mercado, é quando a água da piscina baixa que se vê quem estava nadando pelado.
A pergunta que não quer calar é: se os próprios argentinos não confiam no governo de seu país e mantém suas reservas em dólares, por que os brasileiros deveriam confiar?
A história é a seguinte: para o país A comprar coisas do país B, precisa usar a moeda do país B ou dólares, que é moeda coringa, aceita universalmente. Qualquer dessas duas moedas não podem ser impressas na Casa da Moeda do país A. O país A só consegue a moeda do país B ou dólares se vender coisas para o país B ou receber investimentos em dólares. Mas, para tanto, é preciso que os exportadores do país A (aqueles que vendem coisas para o país B e recebem dólares ou moedas do país B ) estejam dispostos a vender esses dólares para o governo do país A, em troca da moeda do país A. Quando esses exportadores não querem fazer isso, preferindo segurar os dólares ou mesmo se recusando a exportar, o governo do país A não tem os dólares para repassar aos importadores. O comércio, então, para.
Troque “país A” por Argentina e “país B” por Brasil. Os dólares acabaram na Argentina, simplesmente porque ninguém mais quer pesos em troca dos dólares. O peso virou um papel pintado inútil. Alberto Fernandez vem ao Brasil para tentar vender seus papéis pintados aqui. Como ele faria isso? Crédito.
A coisa funciona assim: a Argentina não tem reais, mas o Brasil tem. Então, o BNDES dá uma linha de crédito para o exportador brasileiro, que consegue os reais adiantados pela sua venda para a Argentina. O governo argentino promete de pés juntos que, no futuro, irá conseguir os dólares necessários para fornecer ao importador argentino, que, então, pagará a sua dívida com o exportador brasileiro que, por sua vez, pagará a sua dívida com o BNDES. Agora, preste atenção no truque: se o importador argentino não conseguir os dólares, o mico preto fica no ombro do BNDES, não do exportador brasileiro. Ninguém é louco de emprestar para a Argentina em moeda forte, só o FMI e o BNDES. Portanto, é o BNDES que passará a ser credor da Argentina.
Já vimos esse filme antes. A historinha que vão contar é que o financiamento será dado ao exportador, que com isso poderá vender para os argentinos, fazendo uma venda que movimentará a economia brasileira. Bullshit. O dinheiro não é da Argentina, que não colocará a mão no bolso (mesmo porque, o bolso está vazio). O dinheiro é do BNDES, que emprestará para o exportador brasileiro. MAS, o devedor final não será o exportador brasileiro, mas o importador argentino, com a garantia do governo argentino. São eles que precisarão arrumar os dólares para pagar o BNDES.
Para não se perder nesses esquemas, sempre pergunte: quem está correndo o risco de crédito? Quem sobrará com o mico se o devedor não pagar? No caso, certamente não será o exportador brasileiro. Portanto, será o BNDES. Para o exportador brasileiro e para Alberto Fernandez será um excelente negócio. Já para os brasileiros…
A Coteminas está em dificuldade. Nem sequer o balanço do 4o trimestre de 2022 foi publicado. Nos três primeiros trimestres do ano passado, a empresa gerou prejuízo de R$ 400 milhões, contra R$ 100 milhões em 2021, e teve vendas 22% menores. Há protestos de trabalhadores em algumas fábricas por atraso de salários.
Mas, ainda há esperança! A Shein prometeu nacionalizar quase toda a sua produção vendida no Brasil, e escolheu como parceira, dentre as várias empresas têxteis do país, justamente a empresa de Josué Gomes, filho do ex-vice-presidente José Alencar, e muito próximo a Lula. O fato do anúncio ter-se dado algumas horas após o governo ter voltado atrás na taxação de importações de pequenos volumes deve ter sido mera coincidência.
Felipe Salto propõe uma solução definitiva para o problema dos precatórios: incluí-los na dívida pública e transformá-los em despesa financeira. A primeira parte é óbvia, a segunda é uma alquimia. Vejamos.
Em primeiro lugar, vamos relembrar o “problema dos precatórios”. Precatórios, como sabemos, são haveres de cidadãos e empresas contra o governo, resultado de processos transitados em julgado. Trata-se de uma despesa primária que o governo não fez no passado, a justiça julgou como devida, e agora precisa ser paga. Portanto, concordo com Salto, precatórios são dívida pública no momento em que nascem para o mundo. O problema é que consideramos como dívida pública somente a soma de todos os títulos públicos emitidos pelo Tesouro. Ao considerar os precatórios como “dívida pública”, os estamos equiparando a títulos públicos, e essa é uma parte da alquimia que Salto defende. Antes de avançar aqui, vamos continuar com a descrição do “problema dos precatórios”.
O principal “problema dos precatórios” não é a sua natureza, se é ou não dívida pública, mas o fato de que o seu pagamento sempre foi considerado uma despesa primária e, portanto, sujeito a regras fiscais, seja a produção de superávits primários, seja o teto de gastos, seja o novo arcabouço fiscal. E aí está a alquimia proposta por Salto: ao transformar os precatórios em dívida pública, seu pagamento não mais seria uma despesa primária, mas sim, seria classificada como uma “despesa financeira”. E, como sabemos, as despesas financeiras (com juros da dívida) estão longe do escrutínio do maldoso mercado. O mercado fica em cima só das despesas primárias. Assim, com essa alquimia, os precatórios ficariam a salvo do mercado, pressionando a dívida pública mas não o déficit primário, que é a principal métrica de sustentabilidade de dívida ao longo do tempo. A “solução” proposta pelo governo Bolsonaro foi jogar os precatórios em uma espécie de limbo: os precatórios atrasados (uma aberração jurídica) não são nem dívida pública e nem déficit primário, porque não são pagos. Então, de fato, precisa haver uma solução.
No entanto, a “solução” proposta por Salto tem um problema conceitual grave: confunde amortização de dívida com juros de dívida. Explico: a dívida pública nada mais é do que o resultado de despesas presentes que não são cobertas pelas receitas presentes. Essa diferença, que chamamos de “déficit primário”, é transformada em títulos públicos. Portanto, o estoque de títulos públicos nada mais é do que a soma de todos os déficits primários ao longo da história, acrescida dos juros. Há outras fontes de divida pública, como a compra de reservas internacionais e a capitalização de estatais, que não são considerados despesas primárias porque têm como contrapartida um ativo do outro lado.
Pois bem, o que Salto propõe é a equiparação do pagamento dos precatórios com o pagamento dos juros (despesa financeira). Mas o precatório não são os juros, o precatório é a dívida. Seria um caso esdrúxulo em que toda a dívida se transforma em despesa financeira. Repito: a despesa financeira são somente os juros pagos, o pagamento da dívida em si é amortização da dívida. Assim, o pagamento dos precatórios é amortização de dívida, não pagamento de juros. Portanto, pagamento de precatórios não pode ser equivalente a despesa financeira. Isso parece só um jogo de palavras, mas não é: a dívida pública, repito, tem sua origem em déficit primário ou compra de ativos, e a despesa financeira é o pagamento de juros sobre essa dívida. Não dá para os precatórios serem, ao mesmo tempo, dívida E juros (despesas financeiras).
Temos assim, como resultado dessa alquimia, a criação de um bicho fantástico: uma dívida do governo que não teve origem nem em despesa primária e nem da compra de ativos, e que se transforma 100% em despesa financeira. No limite, o governo poderia não pagar nenhuma de suas despesas primárias (aposentadorias, salários, etc), os interessados entrariam na justiça, essas despesas se transformariam em precatórios e, graças à alquimia proposta por Salto, aquelas despesas primárias se transformariam em despesas financeiras. Tudo seria, no final do dia, despesa financeira, fora do alcance das regras fiscais.
Concluindo: para transformar os precatórios em dívida pública, seria preciso emitir títulos da dívida e pagar os precatórios com esses títulos. Isso explicitaria a dívida representada pelos precatórios. Para isso, seria necessário classificar os precatórios como despesa primária, pois não há outra forma de emitir títulos públicos quando não se está comprando um ativo. Tentar uma “terceira via” para os precatórios, em que não seria nem despesa primária e nem compra de ativo é típico da alquimia malemolente brasileira. Seria melhor simplesmente tirar os precatórios da regra fiscal, com todas as consequências que disso advém, a tentar transformar a contabilidade pública em uma criatura fantástica.
Mais um governo que quer “popularizar” o Tesouro Direto. Desde a sua criação, em 2002, a ideia sempre foi o de estimular que pessoas físicas comprassem diretamente os títulos da dívida pública, permitindo, assim, que o governo não ficasse totalmente refém do escrutínio de investidores profissionais, o tal “mercado”. A última grande mudança foi em 2015, quando os títulos com nomes de sopa de letrinhas, como “LFT” e “NTN-B”, passaram a se chamar “Tesouro Selic” e “Tesouro IPCA” para deixar a coisa menos hermética.
O sucesso tem sido relativo. O copo meio cheio é que o Tesouro Direto já acumula R$ 110 bilhões de estoque. O copo meio vazio é que só acumula R$ 110 bilhões de estoque, diante de um montante de dívida pública de R$ 5,9 trilhões. Para comparação, a caderneta de poupança tem estoque de R$ 1 trilhão, quase 10 vezes mais do que o Tesouro Direto.
O governo agora vai patrocinar uma série de iniciativas para tentar aumentar a adesão da população ao sistema. Na minha humilde opinião, nada disso vai funcionar. O motivo é simples e tem um nome: caderneta de poupança. A caderneta é um investimento ultra simples e que “nunca perde”, pois não é marcada a mercado. Ao contrário, o Tesouro Direto é complexo, precisa abrir conta em corretora, ter a expertise para escolher o título, ter o trabalho do reinvestimento e, para adicionar o insulto à injúria, pode ter rentabilidade negativa!
A caderneta é uma excrescência herdada dos tempos da inflação alta e da correção monetária, o overnight dos pobres. O overnight morreu, mas a caderneta continua aí, firme e forte. Enquanto a caderneta existir, pode fazer o que quiser, o Tesouro Direto continuará a ser um coadjuvante. Mas, e a coragem para acabar com a caderneta de poupança? Melhor acreditar que “medidas de estímulo ao TD” funcionarão.
“Paz”, assim como “democracia” e “amor”, é uma palavra fácil. Todos queremos paz, democracia, amor. Quem seria contra?
Lula acha que não. Lula acredita (e fala) que somente ele quer a paz no mundo. E como todos os problemas brasileiros já foram resolvidos, Lula gasta seu tempo e energia para alcançar justamente isso, a paz no mundo.
O problema, meus amigos, é que, assim como democracia e amor, paz não é um termo unívoco. Lula age como se paz significasse apenas e tão somente “ausência de bombardeios”. Trata-se, obviamente, de uma simplificação tosca de quem alçou papo de botequim ao nível de diplomacia internacional. Ou, rebaixou diplomacia internacional a papo de botequim, como queiram.
Mas se fosse somente isso, seria apenas folclórico. O problema é que Lula, de fato, aprova o modus operandi de Putin, e o adota internamente. O governo Lula, por exemplo, quer a “paz no campo”, mas passa a mão na cabeça do MST, inclusive levando Stédile a tiracolo para a China. Até reconhece que as invasões a propriedades não deveriam acontecer, mas “o erro aconteceu, não adianta ficar falando quem está certo e quem está errado”. E negocia com MST e proprietários de terras como se fossem duas forças simétricas. No fundo, Lula pensa que o MST e a Rússia têm a razão ao seu lado, e faz contorcionismo retórico para parecer neutro.
Lula, em sua megalomania insuflada por um ego nunca visto na história desse país (para usar expressão consagrada em suas falas), tem a pretensão de ser visto como um Mahatma Ghandi do século XXI, o mensageiro da paz. Como falta-lhe a grandeza do indiano e sobra-lhe a malandragem de Macunaíma, o máximo que consegue é ser visto como um anão diplomático, que serve de pet para Xi Jiping. Poderíamos ser poupados dessa vergonha.
O planejamento de qualquer empresa, de qualquer porte, passa, necessariamente, pelo aspecto tributário. Todo empreendedor, ao ponderar se vai abrir ou não um negócio, calcula de quanto será o retorno do capital investido. Obviamente, o quanto será pago de imposto pode ser a diferença entre estabelecer ou não o negócio.
Na selva tributária brasileira, as empresas gastam tempo e dinheiro para encontrar formas de minimizar o imposto pago. Inclusive, a sonegação pode ser uma saída, em que o empreendedor pondera o retorno adicional vis-a-vis o risco de ser multado pela Receita. Os seguidos programas Refis diminuem a percepção desse risco.
Benefícios tributários entram nessa conta. Uma empresa tem uma operação em Manaus porque o imposto menor mais do que compensa os custos maiores. E assim por diante, cada empreendedor que se beneficia de uma isenção faz a conta do retorno sobre o capital considerando aquela isenção. Se não fosse pelo benefício, o empreendedor poderia optar por diminuir o seu lucro, aumentar os seus preços ou, simplesmente, descontinuar o negócio, dado que o retorno passou a não compensar o risco do negócio, ou os preços mais altos o inviabilizam.
Benefícios fiscais introduzem distorções na economia. Empresas inviáveis são viabilizadas, o que diminui a produtividade da economia como um todo. Alguns benefícios são justificados por, supostamente, produzirem as chamadas externalidades positivas, que são aumentos de produtividade que extrapolam a empresa que está recebendo o benefício. O difícil é demonstrar esse benefício. Grande parte das isenções fiscais são aprovadas mesmo é na base da saliva dos lobbies.
O ministro da Fazenda afirmou que vai publicar a lista de todos os CNPJs que se beneficiam de exceções tributárias. Vai precisar de toneladas de páginas do diário oficial: o maior benefício tributário do país é o regime do Simples, que beneficia milhares de empresas no país. No Brasil, o limite de faturamento para uma empresa fazer parte do Simples é de quase 1 milhão de dólares, contra uma média de 27,5 mil dólares para os países da OCDE que possuem políticas semelhantes, sendo o máximo de 115 mil dólares. Há algo de errado que não está certo aqui.
Além disso, essa ameaça de publicar os CNPJs, como se fosse estampar os nomes das empresas em um muro da vergonha, é típico de populistas que querem transferir suas responsabilidades. As empresas estão apenas se aproveitando legalmente de leis aprovadas pelo governo brasileiro. Uma parte relevante dos atuais subsídios foi aprovada nos governos do PT, sempre em busca do Santo Graal do desenvolvimento via incentivos específicos, que os luminares petistas avaliaram como essenciais para o crescimento do país. Agora vem o ministro da Fazenda apontar o dedo, como se essas empresas fossem criminosas. Menos, Haddad, menos.
O fim de benefícios tributários tornaria o país mais produtivo no longo prazo, mas, no curto prazo, pode inviabilizar não poucos empreendimentos. Assim, se Haddad espera arrecadar mais para já eliminando esses benefícios, talvez seja o caso de refazer as contas. Esses CNPJs podem simplesmente desaparecer, e o aumento de arrecadação pode não passar de uma miragem.
Enfim, o ministro da Fazenda quer aumentar a arrecadação de maneira indolor para a sociedade, elegendo alguns inimigos e dando uma de machão. Desconfio que vai bater de frente com a realidade mais cedo do que mais tarde.
Mais um pouco de Haddad, em uma entrevista em que não poupou o leitor de gastar toda a cota de vergonha alheia do dia. Depois de propor um paralelo descabido entre BC e governo (que analisei no post anterior), Haddad avança para o seu tema preferido: o “abuso dos subsídios”. O ministro da fazenda quer estampar, “CNPJ por CNPJ”, as empresas que mamam nas tetas do Estado. Com isso, pretende arrecadar R$ 150 bilhões a mais, ou 1,5% do PIB. Vejamos.
Felipe Salto e Josué Pellegrini coordenaram a publicação de um livro muito útil, “Contas Públicas no Brasil”. O capítulo 8, Gastos Tributários e Subsídios na União, de autoria do próprio Pellegrini, abre a tal “caixa-preta” que Haddad afirma existir com relação aos subsídios. Abaixo, eu colo os gráficos e tabelas do capítulo. Os números mais recentes são de 2019, mas já dá para ter uma ideia.
A soma de gastos tributários e subsídios era de 4,9% do PIB em 2019. Em dinheiro de hoje seria algo como R$ 500 bilhões, não R$ 600 bilhões como Haddad menciona. Cabe destacar que esse percentual chegou a 6,6% do PIB em 2015, no auge das “políticas desenvolvimentistas” do PT. O governo Temer reduziu esses gastos em mais de 1,5% do PIB sem precisar bater com a mão no peito se dizendo muito macho e sem publicar CNPJs.
Mas é na lista de gastos tributários e subsídios que podemos tentar entender até onde vai a macheza do ministro. O que ele pretende cortar? Entre os gastos tributários, no regime do Simples, que é o maior gasto, ele já disse que não vai mexer. Isenções do IR da pessoa física, segundo maior gasto, também não (são CNPJs, lembra?). O próximo da lista são entidades filantrópicas. Ele vai pra cima das igrejas e hospitais? Quarto maior item, zona franca de Manaus, também está fora. Quinto maior gasto, agro. Boa sorte, ministro. Sexto maior item, mais isenções da pessoa física, fora. Sétimo maior item, desoneração da folha, que o ministro também já disse que não vai mexer. Até aqui, já foram 75% dos gastos tributários, sobram mais ou menos 1% do PIB em diversos programas, incluindo setor automotivo, MEI e PROUNI. Vamos ver.
Com relação aos subsídios, a maior parte refere-se a contratos passados, que continuam custando caro para a União, a maior parte deles assinados durante os governos do PT, como o PSI, o Minha Casa Minha Vida, o FIES e os empréstimos do BNDES. Ou seja, não tem como não pagar.
Das duas uma: ou Haddad está muito mal informado, ou está querendo dar um passa moleque na sociedade. Não sei o que é pior.
O ministro da Fazenda embala a ideia de “descriminalizar” o não cumprimento da meta fiscal fazendo um paralelo com a atuação do Banco Central: afinal, se o presidente do BC não é punido por não cumprir a meta de inflação de determinado ano, por que o presidente da República deveria sê-ló por não cumprir a meta fiscal?
Este paralelo está errado de duas maneiras.
Em primeiro lugar, o BC não controla a inflação. O BC controla a taxa de juros, que, espera-se, tenha efeito na atividade econômica e, por consequência, afete a inflação em um (in)certo horizonte de tempo. O governo, por sua vez, controla suas despesas, uma das variáveis-chave para o controle do resultado fiscal. A outra variável são as receitas, e é por isso que a LRF determina que o governo deve contingenciar despesas se houver frustração de receitas. Esse mecanismo, como sabemos, foi retirado do PL. Pode-se argumentar que as despesas obrigatórias não estão nas mãos do governo, restando apenas as despesas discricionárias, uma margem de manobra cada vez mais estreita. Justo. Entramos aí no segundo erro dessa comparação.
Ao contrário do BC, que busca cumprir uma meta determinada pelo CMN, o governo determina sua própria meta fiscal. Se há dificuldade para cumprir uma meta de superávit primário por conta das despesas obrigatórias, é preciso explicitar essa dificuldade na LDO, prevendo um déficit fiscal. Antes de continuar, um pouco de história.
Em 2015, o então governo Dilma causou imenso mal estar ao enviar um orçamento para o Congresso prevendo déficit fiscal para o ano seguinte. Era a primeira vez que isso acontecia desde 1998, e o reconhecimento de que a era dos superávits primários havia terminado. Na verdade, já havia terminado em 2014, mas a coisa estava disfarçada pelas “pedaladas fiscais”. O mal estar foi tão forte, que o governo enviou outro orçamento, desta vez prevendo superávit primário. A forma de cumprir esse compromisso, ainda em 2015, foi a aprovação de créditos suplementares por fora do devido processo legal, o que serviu de base, além das pedaladas, para o processo de impeachment.
Aí está o poder da LRF. O que Haddad pretende é estabelecer uma meta de faz-de-conta, não cumpri-la, e a coisa ficar por isso mesmo. Afinal, para quê passar o perrengue de ter que assumir, logo de cara, que a tal “meta de superávit primário” é fake? Põe lá a meta claramente inatingível no Powerpoint, continua gastando como se não houvesse amanhã e, no final do ano, simplesmente faz uma cartinha para o Congresso. E todo ano a mesma coisa. Afinal, o papel aceita tudo.
Afirmei que o BC tem apenas a taxa de juros para controlar a inflação. Na verdade, a taxa de juros é apenas o instrumento. O BC controla a inflação com a sua credibilidade. Os agentes econômicos trabalham com expectativas, e essas expectativas estão ancoradas na ação do BC. Se o BC tem boa reputação, todos sabem que a taxa de juros será, mais cedo ou mais tarde, colocada em um patamar que controle a inflação. Para que uma meta fiscal funcionasse “sem punição” seria necessário ter uma autoridade fiscal independente do governo, com poder de controlar o orçamento. Na falta dessa autoridade, ficamos reféns da credibilidade do próprio governo. Dá para confiar?