O ministro da Fazenda embala a ideia de “descriminalizar” o não cumprimento da meta fiscal fazendo um paralelo com a atuação do Banco Central: afinal, se o presidente do BC não é punido por não cumprir a meta de inflação de determinado ano, por que o presidente da República deveria sê-ló por não cumprir a meta fiscal?
Este paralelo está errado de duas maneiras.
Em primeiro lugar, o BC não controla a inflação. O BC controla a taxa de juros, que, espera-se, tenha efeito na atividade econômica e, por consequência, afete a inflação em um (in)certo horizonte de tempo. O governo, por sua vez, controla suas despesas, uma das variáveis-chave para o controle do resultado fiscal. A outra variável são as receitas, e é por isso que a LRF determina que o governo deve contingenciar despesas se houver frustração de receitas. Esse mecanismo, como sabemos, foi retirado do PL. Pode-se argumentar que as despesas obrigatórias não estão nas mãos do governo, restando apenas as despesas discricionárias, uma margem de manobra cada vez mais estreita. Justo. Entramos aí no segundo erro dessa comparação.
Ao contrário do BC, que busca cumprir uma meta determinada pelo CMN, o governo determina sua própria meta fiscal. Se há dificuldade para cumprir uma meta de superávit primário por conta das despesas obrigatórias, é preciso explicitar essa dificuldade na LDO, prevendo um déficit fiscal. Antes de continuar, um pouco de história.
Em 2015, o então governo Dilma causou imenso mal estar ao enviar um orçamento para o Congresso prevendo déficit fiscal para o ano seguinte. Era a primeira vez que isso acontecia desde 1998, e o reconhecimento de que a era dos superávits primários havia terminado. Na verdade, já havia terminado em 2014, mas a coisa estava disfarçada pelas “pedaladas fiscais”. O mal estar foi tão forte, que o governo enviou outro orçamento, desta vez prevendo superávit primário. A forma de cumprir esse compromisso, ainda em 2015, foi a aprovação de créditos suplementares por fora do devido processo legal, o que serviu de base, além das pedaladas, para o processo de impeachment.
Aí está o poder da LRF. O que Haddad pretende é estabelecer uma meta de faz-de-conta, não cumpri-la, e a coisa ficar por isso mesmo. Afinal, para quê passar o perrengue de ter que assumir, logo de cara, que a tal “meta de superávit primário” é fake? Põe lá a meta claramente inatingível no Powerpoint, continua gastando como se não houvesse amanhã e, no final do ano, simplesmente faz uma cartinha para o Congresso. E todo ano a mesma coisa. Afinal, o papel aceita tudo.
Afirmei que o BC tem apenas a taxa de juros para controlar a inflação. Na verdade, a taxa de juros é apenas o instrumento. O BC controla a inflação com a sua credibilidade. Os agentes econômicos trabalham com expectativas, e essas expectativas estão ancoradas na ação do BC. Se o BC tem boa reputação, todos sabem que a taxa de juros será, mais cedo ou mais tarde, colocada em um patamar que controle a inflação. Para que uma meta fiscal funcionasse “sem punição” seria necessário ter uma autoridade fiscal independente do governo, com poder de controlar o orçamento. Na falta dessa autoridade, ficamos reféns da credibilidade do próprio governo. Dá para confiar?