Felipe Salto propõe uma solução definitiva para o problema dos precatórios: incluí-los na dívida pública e transformá-los em despesa financeira. A primeira parte é óbvia, a segunda é uma alquimia. Vejamos.
Em primeiro lugar, vamos relembrar o “problema dos precatórios”. Precatórios, como sabemos, são haveres de cidadãos e empresas contra o governo, resultado de processos transitados em julgado. Trata-se de uma despesa primária que o governo não fez no passado, a justiça julgou como devida, e agora precisa ser paga. Portanto, concordo com Salto, precatórios são dívida pública no momento em que nascem para o mundo. O problema é que consideramos como dívida pública somente a soma de todos os títulos públicos emitidos pelo Tesouro. Ao considerar os precatórios como “dívida pública”, os estamos equiparando a títulos públicos, e essa é uma parte da alquimia que Salto defende. Antes de avançar aqui, vamos continuar com a descrição do “problema dos precatórios”.
O principal “problema dos precatórios” não é a sua natureza, se é ou não dívida pública, mas o fato de que o seu pagamento sempre foi considerado uma despesa primária e, portanto, sujeito a regras fiscais, seja a produção de superávits primários, seja o teto de gastos, seja o novo arcabouço fiscal. E aí está a alquimia proposta por Salto: ao transformar os precatórios em dívida pública, seu pagamento não mais seria uma despesa primária, mas sim, seria classificada como uma “despesa financeira”. E, como sabemos, as despesas financeiras (com juros da dívida) estão longe do escrutínio do maldoso mercado. O mercado fica em cima só das despesas primárias. Assim, com essa alquimia, os precatórios ficariam a salvo do mercado, pressionando a dívida pública mas não o déficit primário, que é a principal métrica de sustentabilidade de dívida ao longo do tempo. A “solução” proposta pelo governo Bolsonaro foi jogar os precatórios em uma espécie de limbo: os precatórios atrasados (uma aberração jurídica) não são nem dívida pública e nem déficit primário, porque não são pagos. Então, de fato, precisa haver uma solução.
No entanto, a “solução” proposta por Salto tem um problema conceitual grave: confunde amortização de dívida com juros de dívida. Explico: a dívida pública nada mais é do que o resultado de despesas presentes que não são cobertas pelas receitas presentes. Essa diferença, que chamamos de “déficit primário”, é transformada em títulos públicos. Portanto, o estoque de títulos públicos nada mais é do que a soma de todos os déficits primários ao longo da história, acrescida dos juros. Há outras fontes de divida pública, como a compra de reservas internacionais e a capitalização de estatais, que não são considerados despesas primárias porque têm como contrapartida um ativo do outro lado.
Pois bem, o que Salto propõe é a equiparação do pagamento dos precatórios com o pagamento dos juros (despesa financeira). Mas o precatório não são os juros, o precatório é a dívida. Seria um caso esdrúxulo em que toda a dívida se transforma em despesa financeira. Repito: a despesa financeira são somente os juros pagos, o pagamento da dívida em si é amortização da dívida. Assim, o pagamento dos precatórios é amortização de dívida, não pagamento de juros. Portanto, pagamento de precatórios não pode ser equivalente a despesa financeira. Isso parece só um jogo de palavras, mas não é: a dívida pública, repito, tem sua origem em déficit primário ou compra de ativos, e a despesa financeira é o pagamento de juros sobre essa dívida. Não dá para os precatórios serem, ao mesmo tempo, dívida E juros (despesas financeiras).
Temos assim, como resultado dessa alquimia, a criação de um bicho fantástico: uma dívida do governo que não teve origem nem em despesa primária e nem da compra de ativos, e que se transforma 100% em despesa financeira. No limite, o governo poderia não pagar nenhuma de suas despesas primárias (aposentadorias, salários, etc), os interessados entrariam na justiça, essas despesas se transformariam em precatórios e, graças à alquimia proposta por Salto, aquelas despesas primárias se transformariam em despesas financeiras. Tudo seria, no final do dia, despesa financeira, fora do alcance das regras fiscais.
Concluindo: para transformar os precatórios em dívida pública, seria preciso emitir títulos da dívida e pagar os precatórios com esses títulos. Isso explicitaria a dívida representada pelos precatórios. Para isso, seria necessário classificar os precatórios como despesa primária, pois não há outra forma de emitir títulos públicos quando não se está comprando um ativo. Tentar uma “terceira via” para os precatórios, em que não seria nem despesa primária e nem compra de ativo é típico da alquimia malemolente brasileira. Seria melhor simplesmente tirar os precatórios da regra fiscal, com todas as consequências que disso advém, a tentar transformar a contabilidade pública em uma criatura fantástica.