Para depois não me acusarem de estar criticando sem ter lido o texto do PL das Fake News, sim, eu li. Algumas coisas que me chamaram mais a atenção:
1) O art. 6, inciso I, prevê responsabilidade solidária dos provedores quando houver “danos causados por conteúdos gerados por terceiros, cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade”. Imagine que uma corretora de bitcoins coloque um anúncio em jornal de grande circulação, vendendo serviços de corretagem da moeda eletrônica. Essa corretora quebra, e leva a poupança de milhares de investidores. O jornal é solidário com os “danos causados”? Se não, por que os provedores seriam?
2) O art. 7 é um primor de imprecisão, onde cabe literalmente qualquer coisa. O artigo determina o dever de os provedores “identificarem, analisarem e avaliarem diligentemente os riscos sistêmicos decorrentes da concepção ou do funcionamento dos seus serviços e dos seus sistemas relacionados, incluindo os sistemas algorítmicos”. O parágrafo 2o do artigo diz que essa “identificação, análise e avaliação” dos “algoritmos” deve ocorrer para mitigar o risco de propagação de “conteúdos ilícitos”, “ameaças ao Estado Democrático de Direito”, e outros crimes, incluindo o bullying. O problema desse tipo de artigo é que parte do pressuposto de que “conteúdos ilícitos” se propagam de maneira mais fácil do que outros. Como os provedores provariam que não é assim? E se de fato for, como o poder público prova que é assim? O parágrafo primeiro remete a uma “regulamentação posterior” esse imbróglio.
3) O art. 12 prevê um tal “protocolo de segurança”, que seria instaurado quando configurada a “iminência” dos riscos descritos no art. 7 ou a negligência ou insuficiência da ação do provedor. Não está claro o que seria esse tal “protocolo de segurança”, pois suas etapas e objetivos são remetidos para regulamentação posterior. Somente sabemos, pelo art. 13, que durante a vigência do tal “protocolo”, os provedores respondem solidariamente por todos os danos provocados por terceiros, referentes aos riscos apontados no art. 7, desde que os provedores tenham conhecimento de tais riscos. E, para terem conhecimento, basta que um “internauta” avise a plataforma de alguma forma (art. 16)
Acho que o grande e insanável problema dessa legislação é tentar transformar as plataformas em braços do Estado. Sim, há crimes anunciados nas plataformas, há crimes realizados com a ajuda das plataformas. As plataformas, já hoje, procuram realizar os melhores esforços para que isso não aconteça, mas é virtualmente impossível garantir 100% de eficácia. Fazer com que as plataformas sejam punidas solidariamente com o criminoso é o mesmo que punir o policial (ou a corporação) da mesma forma que o criminoso por não ter evitado o crime. Pense: são milhões de postagens todo santo dia, como gerenciar isso, a ponto de evitar 100% dos crimes?
O que as plataformas vão fazer se essa legislação passar? Não tendo acesso aos economics de Google, Facebook e cia, meu chute é que farão uma estimativa da perda monetária em função dessas novas obrigações (que nem sequer estão claras, tem muita coisa a ser definida em regulamentação posterior), e tomarão uma decisão empresarial: cobrarão por serviços antes gratuítos, entubarão o prejuízo ou simplesmente deixarão de operar no país.
Se as plataformas procurarem minimizar o prejuízo sendo mais sensíveis aos conteúdos e derrubando mais posts, poderá haver uma diminuição do interesse dos usuários. Este trade off deverá ser objeto de análise das plataformas também.
Enfim, claro que todos gostaríamos de um mundo bom, belo e justo, em que o crime fosse combatido implacavelmente onde quer que estivesse. O problema é que a realidade é bem mais complexa do que a boa intenção de uma lei. Exigir que as plataformas combatam o crime é transferir para entes privados um dever estatal. Os moderadores de conteúdo se tornariam policiais, com o agravante de que, se falhassem em sua missão, seriam tão culpados quanto os criminosos. Pode ser que esta seja a única solução, mas desconfio de que estão jogando o bebê fora junto com a água suja da bacia.