A ilusão do Grande Irmão

No livro 1984, George Orwell descreve o desejo oculto de todos os que exercem o poder: controlar a mente dos cidadãos. Na história, não bastou que o personagem principal tivesse sido preso e condenado à morte por subversão. O objetivo final, antes de ser executado, é que o criminoso amasse o Grande Irmão. E, de fato, antes de morrer, nosso personagem não consegue reprimir seu sentimento de amor ao Grande Irmão. A sua mente estava dominada.

Claro, trata-se apenas de uma fábula. Não que o domínio da mente das pessoas não ocorra. Pelo contrário, estamos, o tempo inteiro, e sem perceber, sendo bombardeados por ideias que buscam lugar em nossas mentes. Neste livre fluxo de ideias, cada um formará a sua própria, sem nem mesmo perceber como.

Frequentemente, os governantes são acometidos da ilusão de que têm o poder de controlar esse fluxo de ideias, de modo que somente as “boas ideias” possam circular. Trata-se, como disse, de mera ilusão. “Se eles se calarem, as pedras gritarão”, disse Jesus, em uma passagem em que avisa aos fariseus que sua tentativa de controlar as mentes dos discípulos é vã.

As “Big Techs” são a bola da vez na tentativa de controlar o livre fluxo de ideias. Sim, há crimes cometidos com o suporte das redes sociais, assim como havia crimes antes do advento das redes sociais. O nazismo e os tiroteios em escolas não nasceram com as redes sociais. Controlar as redes sociais não fará com que as pessoas acreditem mais nas vacinas ou no processo eleitoral. Quem não quer acreditar continuará não querendo acreditar, faça o que fizer o governante de plantão. As ideias são como água, passam por qualquer fresta. A mente das pessoas é incontrolável.

1984 é somente uma fábula. Ninguém, no final, amará o Grande Irmão contra a sua vontade.

A Constituição de um só artigo

O ministro da Justiça, Flávio Dino, chegou à conclusão correta: toda essa discussão sobre a PL das Fake News é ociosa. No final, o STF e “outras agências do Estado” resolverão o problema. Ontem, o ministro Alexandre de Moraes já chamou na chincha os diretores das Big Techs. Daí para encontrar alguma alínea de nossa profícua Constituição que justifique multas e até prisão é piece of cake. Se até Flávio Dino, recém-chegado ao ministério, já encontrou uma forma de tascar uma multa de um milhão por hora ao Google com base no Código de Defesa do Consumidor (?!?), ao ministro do STF certamente não faltará criatividade.

Aliás, editorial do Estadão de hoje chama a atenção justamente para a invasão de competência do STF no caso da determinação do índice de correção do FGTS, assunto que deveria ser tratado pelo Legislativo.

A conclusão que chegamos é que tanto faz o que vai escrito na Constituição. No limite, poderia haver apenas um artigo, rezando algo assim:

Constituição do Brasil

Artigo único: é direito de todos os brasileiros serem felizes.

Parágrafo único: revogam-se todas as disposições em contrário.

Pronto. A partir daí, os luminares do STF decidiriam todas as questões com base no que acham que seja o belo, o bom e o justo. É basicamente isso que nos está dizendo o ministro da Justiça (não sem razão). Nesse mundo de Flávio Dino, a tarefa dos Congressistas se limitaria a aprovar emendas parlamentares, desde que cumprissem o mandamento de fazerem todos os brasileiros felizes. Senão, nem isso.

Correlação e apelação

Chamou-me a atenção uma foto de uma matéria de O Globo, mostrando um gramado em frente ao Congresso, com mochilas escolares espalhadas. A legenda nos informa que se trata de um movimento (não nomeado) que teria colocado os objetos para “lembrar as vítimas dos massacres em escolas”, de modo a pressionar pela aprovação da lei das Fake News.

A foto, sem dúvida, é tocante, e parte do pressuposto de que os massacres em escolas têm relação com as redes sociais. Portanto, seria necessária a regulação das redes para que tragédias desse gênero fossem evitadas.

Estamos, obviamente, chocados pelos últimos eventos ocorridos (a facada na professora e o assassinato das crianças na creche). Mas, como qualquer correlação, precisa-se provar relação de causalidade entre os dois eventos. Aliás, antes disso até, é necessário que se prove a correlação.

No Brasil, felizmente, não temos um número de eventos desse tipo que nos permita fazer qualquer inferência. Vamos, então, para os EUA, a terra das redes sociais e dos tiroteios em escolas. O Washington Post publicou recentemente uma estatística com todos os eventos desse tipo desde o massacre de Columbine, em 1999. Além disso, o site Our World in Data tem uma estatística de quantos lares americanos usam redes sociais desde 2005 (o Facebook é de 2004) até 2019. Fiz então um gráfico com as duas variáveis para tentar observar alguma correlação (gráfico 1).

Podemos observar algumas coisas interessantes:

1) Houve 359 tiroteios entre 1999 e 2022, dos quais 58 (16%) ocorreram sem que houvesse a existência de redes sociais.

2) Há uma certa estabilidade no número de eventos entre 2005 e 2016, mesmo com a explosão do número de usuários de redes sociais.

3) Há um salto no número de eventos a partir de 2018 (com exceção de 2020, ano da pandemia), depois que o número de usuários se estabiliza no patamar atual.

A relação entre número de eventos e número de usuários, se houvesse uma correlação perfeita, deveria ser constante no tempo. O que observamos, no entanto, é que há grande variação ano a ano (gráfico 2), variando entre 0,03 e 0,22 eventos para cada milhão de usuários (tirei os anos de 2004 e 2005 pois os números ficam distorcidos pelo pequeno número de usuários).

Por fim, a correlação (gráfico 3). Podemos observar que há uma leve tendência de aumento de eventos na medida em que aumenta o número de usuários: são 5 eventos adicionais para cada 100 milhões de usuários adicionais (p-value desse coeficiente de 0,6%). O r2 é de 0,3. Portanto, há alguma correlação, ainda que fraca. Falta, obviamente, provar a causalidade.

Esse foi um exercício simples, feito em alguns minutos, sem muito rigor. Seria interessante ver algo mais elaborado, considerando outras variáveis que poderiam explicar os eventos. De qualquer modo, parece uma apelação sensacionalista, que tem como objetivo usar essa suposta e longe de estar provada causalidade para mexer com os sentimentos da opinião pública e dos deputados. Mas essa manipulação o Ministério da Justiça e o STF não irão multar.

Jogando o bebê fora junto com a água da bacia

Para depois não me acusarem de estar criticando sem ter lido o texto do PL das Fake News, sim, eu li. Algumas coisas que me chamaram mais a atenção:

1) O art. 6, inciso I, prevê responsabilidade solidária dos provedores quando houver “danos causados por conteúdos gerados por terceiros, cuja distribuição tenha sido realizada por meio de publicidade”. Imagine que uma corretora de bitcoins coloque um anúncio em jornal de grande circulação, vendendo serviços de corretagem da moeda eletrônica. Essa corretora quebra, e leva a poupança de milhares de investidores. O jornal é solidário com os “danos causados”? Se não, por que os provedores seriam?

2) O art. 7 é um primor de imprecisão, onde cabe literalmente qualquer coisa. O artigo determina o dever de os provedores “identificarem, analisarem e avaliarem diligentemente os riscos sistêmicos decorrentes da concepção ou do funcionamento dos seus serviços e dos seus sistemas relacionados, incluindo os sistemas algorítmicos”. O parágrafo 2o do artigo diz que essa “identificação, análise e avaliação” dos “algoritmos” deve ocorrer para mitigar o risco de propagação de “conteúdos ilícitos”, “ameaças ao Estado Democrático de Direito”, e outros crimes, incluindo o bullying. O problema desse tipo de artigo é que parte do pressuposto de que “conteúdos ilícitos” se propagam de maneira mais fácil do que outros. Como os provedores provariam que não é assim? E se de fato for, como o poder público prova que é assim? O parágrafo primeiro remete a uma “regulamentação posterior” esse imbróglio.

3) O art. 12 prevê um tal “protocolo de segurança”, que seria instaurado quando configurada a “iminência” dos riscos descritos no art. 7 ou a negligência ou insuficiência da ação do provedor. Não está claro o que seria esse tal “protocolo de segurança”, pois suas etapas e objetivos são remetidos para regulamentação posterior. Somente sabemos, pelo art. 13, que durante a vigência do tal “protocolo”, os provedores respondem solidariamente por todos os danos provocados por terceiros, referentes aos riscos apontados no art. 7, desde que os provedores tenham conhecimento de tais riscos. E, para terem conhecimento, basta que um “internauta” avise a plataforma de alguma forma (art. 16)

Acho que o grande e insanável problema dessa legislação é tentar transformar as plataformas em braços do Estado. Sim, há crimes anunciados nas plataformas, há crimes realizados com a ajuda das plataformas. As plataformas, já hoje, procuram realizar os melhores esforços para que isso não aconteça, mas é virtualmente impossível garantir 100% de eficácia. Fazer com que as plataformas sejam punidas solidariamente com o criminoso é o mesmo que punir o policial (ou a corporação) da mesma forma que o criminoso por não ter evitado o crime. Pense: são milhões de postagens todo santo dia, como gerenciar isso, a ponto de evitar 100% dos crimes?

O que as plataformas vão fazer se essa legislação passar? Não tendo acesso aos economics de Google, Facebook e cia, meu chute é que farão uma estimativa da perda monetária em função dessas novas obrigações (que nem sequer estão claras, tem muita coisa a ser definida em regulamentação posterior), e tomarão uma decisão empresarial: cobrarão por serviços antes gratuítos, entubarão o prejuízo ou simplesmente deixarão de operar no país.

Se as plataformas procurarem minimizar o prejuízo sendo mais sensíveis aos conteúdos e derrubando mais posts, poderá haver uma diminuição do interesse dos usuários. Este trade off deverá ser objeto de análise das plataformas também.

Enfim, claro que todos gostaríamos de um mundo bom, belo e justo, em que o crime fosse combatido implacavelmente onde quer que estivesse. O problema é que a realidade é bem mais complexa do que a boa intenção de uma lei. Exigir que as plataformas combatam o crime é transferir para entes privados um dever estatal. Os moderadores de conteúdo se tornariam policiais, com o agravante de que, se falhassem em sua missão, seriam tão culpados quanto os criminosos. Pode ser que esta seja a única solução, mas desconfio de que estão jogando o bebê fora junto com a água suja da bacia.

Um exemplo teórico da aplicação da lei das Fake News

Digamos que a chamada lei das Fake News já estivesse em pleno vigor, e um jornal de grande circulação (o Globo, por exemplo), em tese, publicasse uma manchete teórica como a que abre este post. Como se daria o processo com base na nova lei?

Os censores, quer dizer, moderadores do Facebook teriam que ficar atentos, pois trata-se de uma notícia claramente fake: não há “líderes” religiosos nem “representantes” de denominações evangélicas e da Igreja Católica. Quando se lê a notícia, fica-se sabendo que se trata de pessoas que não são líderes nem representam coisa alguma, a não ser a si mesmos. Para terem uma ideia, o “líder católico” chama-se Frei Lorrane, da Ordem Franciscana dos Frades Menores. Representante da Igreja Católica?

Com a lei em vigor, o Facebook deveria imediatamente remover o meu post, para que tal mentira não se propagasse. Seria, de fato, um belo serviço em prol da verdade.

Detalhe: como a lei das Fake News atinge somente as “Big Techs”, a notícia fake original restaria intacta nas páginas do grande jornal.

PS.: a avaliação sobre a veracidade da notícia é de minha e exclusiva lavra. No caso, obviamente, não seria válida, precisaríamos que a Anatel (?!?) se pronunciasse a respeito.

Vício de origem insanável

Se eu não tivesse lido uma reportagem ontem sobre o assunto, não teria notado que o Google havia colocado um discreto link em sua página inicial de buscas para um texto em que coloca a sua visão sobre o PL das Fake News. O link é discreto mesmo, precisa se esforçar para vê-lo.

A não ser que o relator do projeto, Orlando Silva, tenha informações sobre pagamento de mesada para deputados por parte do Google, no estilo Mensalão, talvez seja um pouco exagerada a expressão “nunca vi tanta sujeira política” usada pelo deputado.

O tal link foi suficiente para o ministro da Justiça, Flávio Dino, acionar a Secretaria Nacional do Consumidor, enquanto o senador Randolfe Rodrigues pede que o CADE (?!?) multe a empresa. Se os dois próceres do governo petista estão fazendo isso contra o Google sem lei alguma, imagine quando tiverem a faca, o queijo e a lei na mão.

O PL das Fake News pode ter toda a boa intenção do mundo, mas nasce com um vício de origem insanável: é patrocinada pelo governo do PT, um dos lados pela disputa do pós-verdade. Qual a confiabilidade que se pode ter nas intenções de um governo que cria um site de propaganda de si mesmo e chama a isso de “combate às fake news”?

Os grandes jornais publicaram editoriais a favor da aprovação do PL das Fake News, defendendo o seu modelo de negócios. Qual é exatamente o problema de o Google fazer o mesmo em sua página? Os deputados estão abertos à pressão da sociedade, como em todo regime democrático. Cada um, assim como cada cidadão, formará a sua opinião depois de expostos aos diversos pontos de vista. O chororô de Orlando Silva faz parte do jogo. Já a truculência de Flávio Dino e Randolfe Rodrigues, ameaçando uma empresa privada com a máquina do Estado pelo simples fato de externar sua opinião, mostra bem o ânimo desse pessoal.

Run, Haddad, run!

Fernando Haddad é o Forrest Gump do governo Lula. Enquanto a vida real acontece aqui fora, o ministro se dedica a contar histórias. A história do Desenrola, por exemplo, tem tons dramáticos, mas a realidade é que milhões de brasileiros continuam pendurados em dívidas, à espera de um “sistema” que deveria chamar-se Godot.

Mas a história mais heróica de nosso Forrest Gump tropical é o “superávit primário em 2024”, fruto do seu épico “novo arcabouço fiscal”. Declarações grandiloquentes de “prendo e arrebento os sonegadores” sucumbiram a um meigo pedido de Janja para não taxar as brusinhas da Shein.

E a realidade continua a desafiar o mundo idílico de Forrest. Ontem, seu chefe anunciou medidas que aumentam despesas e reduzem receitas, colocando mais uma bola de ferro na perna do nosso personagem fantástico, que já tem problemas sérios para caminhar.

No seu mundo alternativo, Forrest Gump se livra do aparelho que o ajuda a andar, e sai correndo para o mundo. Haddad tem, de alguma forma, esse pensamento fantástico, que transmite sem pudor para as pessoas, como se fosse a realidade. Na cabeça de Haddad, ele vai se livrar de todas essas amarras da realidade, e sair correndo pelo mundo.

Run, Haddad, run!