Reforma tributária: o cerne da questão

Alguns amigos me pediram para escrever um texto mais longo sobre a reforma tributária, explicando com mais detalhe do que se trata. Tem uma página bem didática sobre esse assunto no site da Câmara dos Deputados, então não vou gastar tempo explicando os mecanismos envolvidos. Meu objetivo aqui é mais filosófico, no sentido de explicar qual o problema que a reforma pretende resolver e entender por que levanta tantas resistências.

Um projeto como o da reforma tributária (RT) não poderia passar sem críticas. Afinal, são muitos e variados os interesses que se aninham no atual sistema tributário brasileiro. Cada setor, cada agente político, cada cidadão, tem o seu interesse na mudança ou na manutenção do status quo. O nosso sistema tributário é fruto de décadas de construção laboriosa, e resultou em um arcabouço muitas vezes chamado de “manicômio”.

Para começar qualquer debate, precisamos estabelecer as suas bases. E a base última do debate sobre a reforma tributária é que chegamos a uma situação insustentável. Para ilustrar, basta observar o gráfico abaixo, em que mostramos, para alguns países selecionados, a pontuação do ranking Doing Business (2020), do Banco Mundial, para o quesito “pagando impostos”.

Essa pontuação é resultado de quatro medidas: número de pagamentos por ano, tempo gasto com o processo de pagamento de impostos, carga tributária das empresas e litígios tributários. Observe como o Brasil não somente está na rabeira, como, e isso é o mais importante, a sua pontuação é terrivelmente menor do que de países comparáveis, como México. Não é que estejamos nos últimos lugares, mas por pouco. Estamos a uma longa distância de práticas saudáveis, e esta é a base comum para se discutir o sistema tributário. Temos todos que concordar que, desse jeito, não dá para continuar.

Ok, é preciso mudar. Mas o quê, e como? Aí está o busílis da questão. Para mudar, é preciso um diagnóstico da situação. E o único diagnóstico que temos é que chegamos a essa situação porque a estrutura atual nasceu justamente da discricionariedade do Estado, em seus três níveis de governo, em matéria tributária. Ou seja, presidente, governadores e prefeito criam regras e mais regras, de acordo com suas conveniências políticas, e o empresário que lute para lidar com todas elas. Este é o diagnóstico e, não por outro motivo, tem sido o centro de toda a disputa em torno da reforma tributária.

Ao se insurgir contra a solução apresentada, que é tirar discricionariedade dos agentes políticos, os críticos não apresentam uma alternativa. E não apresentam justamente porque não há outro diagnóstico para o problema. É como um médico que prescreve uma quimioterapia para um câncer, e o paciente se insurge, apontando todos os efeitos colaterais como razões para não seguir a prescrição, ignorando que, afinal, tem um câncer. É de fundamental importância entender este ponto: de nada vale dizer que, de fato, temos um problema e precisamos de uma reforma tributária, mas sem oferecer um diagnóstico do problema. O diagnóstico é o câncer e a prescrição é a quimioterapia. No caso da RT, o diagnóstico é a discricionariedade dos agentes políticos e a prescrição é um órgão que mitigue essa discricionariedade. Desde já fico aberto a outros diagnósticos possíveis para a nossa doença, já que, até o momento, não vi outro diagnóstico alternativo.

Os outros dois pontos positivos da RT, a não-cumulatividade e o imposto no destino e não na origem, são importantes, mas não são o núcleo mesmo da reforma. A questão central, e é exatamente nisso que os críticos estão concentrados, é o fim da discricionariedade dos agentes políticos em matéria tributária. Note que governadores e prefeitos ainda poderão dar subsídios para quem bem entenderem. Por exemplo, nas grandes cidades, o transporte público é subsidiado, mas os prefeitos não precisam de alíquotas diferenciadas de imposto para fazer isso. Basta somente separar um espaço no orçamento para tal. E é disso que governadores e prefeitos fogem como o diabo da cruz. Afinal, batalhar verba no orçamento não é tão fácil quanto mudar uma alíquota de imposto. O dinheiro que não entrou nunca existiu, ao passo que a verba no orçamento é um dinheiro em disputa por várias necessidades.

Vejo muitas críticas a respeito de uma suposta “centralização” na União dos impostos arrecadados em estados e municípios. Não sei de onde tiraram isso. O tal Conselho Federativo não terá participação da União, estados e municípios é que terão que discutir como será a sua governança. Até o momento em que escrevo, ainda não vi o texto que vai ser votado na Câmara, definindo as prerrogativas do tal Conselho. Mas uma coisa é certa: a União não terá nada a ver com isso. Aliás, foi por causa disso que fizeram o IVA dual, que é menos eficiente do que um IVA único: de um lado o imposto que vai unificar os impostos federais, e do outro, o imposto que irá unificar os impostos estaduais e municipais.

Outra crítica é que os preços dos produtos da cesta básica irão explodir. Não é necessariamente verdade. Como o comércio vai se ressarcir automaticamente de créditos tributários nas compras de seus produtos, a alíquota do novo imposto precisaria ser muito maior do que a alíquota do ICMS para compensar esse ressarcimento. Aliás, nem sei como estão calculando o suposto aumento de preços da cesta básica que tem rodado por aí (exemplo abaixo, no post de Eduardo Bolsonaro, em que São Paulo pertence à região Sul e a Bahia ao Sudeste), se nem sabemos a alíquota e nem todos os créditos tributários ao longo da cadeia de produção. De qualquer modo, aparentemente haverá alíquota zero para um grupo de produtos da cesta básica, o que definitivamente desmonta esse argumento.

Mais uma crítica: os preços dos serviços vão explodir, pois o ISS, atual imposto sobre serviços, normalmente tem alíquota muito pequena se comparada com a alíquota prevista para o novo imposto. Bem, isso é verdade para quem não está no Simples, que estará mantido. Além disso, parece que haverá alíquotas especiais para saúde, educação e transportes. De qualquer forma, efetivamente o setor de serviços, hoje, paga menos imposto proporcionalmente ao seu peso na economia (cerca de 2/3 do PIB), onerando por demais os outros setores. A RT não tem o objetivo de fazer justiça tributária, mas este é um efeito desejável da reforma.

Resumindo e concluindo: estamos tratando um grande câncer que está matando o Brasil, que é a discricionariedade de governadores e prefeitos no trato de matéria tributária. Há vários efeitos colaterais, mas não é por isso que devemos deixar de tentar o tratamento. Alguém poderá dizer que os efeitos colaterais são tão grandes e indesejáveis que matarão o paciente de qualquer maneira. Bem, olhe novamente o gráfico abaixo. O sistema proposto é semelhante ao usado em grande parte dos países do mundo, e não parece que estejam assim tão mal. A grande questão, volto a lembrar, não está no setor econômico que vai ganhar ou vai perder mais. Está, isso sim, na capacidade de o Estado brasileiro atazanar a vida do empreendedor, e de todas as cracas que se acoplam a esse navio da insanidade. Com a RT, essa capacidade diminui de maneira relevante. Esse é o cerne da questão.

As críticas que fortalecem o projeto de reforma tributária

O economista Felipe Salto presta um grande serviço à causa da reforma tributária, ao listar claramente quais são as suas críticas ao texto da PEC 45 (que, diga-se de passagem, ninguém conhece ainda, o relator ainda não divulgou por estar em negociações). As críticas, portanto, referem-se às ideias básicas que estão sendo discutidas. O serviço que Salto presta é mostrar que as críticas não têm fundamento na realidade. Vejamos.

A primeira e principal, que ocupa boa parte do artigo, refere-se ao Conselho Federativo. São três críticas, todas igualmente fracas: 1) não impediria que as empresas fraudassem o sistema, emitindo notas frias para se creditarem; 2) somente um Fisco estadual atuante poderia evitar as fraudes, mas os fiscos estaduais desaparecerão e 3) um mecanismo desse tipo não seria necessário para mitigar o risco de crédito no repasse de impostos entre estados.

As críticas 1 e 2 não se sustentam. Fraude sempre haverá, qualquer que seja o sistema. Se houvesse um sistema à prova de fraudes, já teria sido adotado, pode ter certeza. É por isso que existe fiscalização, que continuará existindo. Não sei de onde veio a ideia de que os fiscos estaduais serão substituídos pelo Conselho Federativo. O grande avanço do novo sistema é o sistema de compensações automáticas entre estados, e entre governos e empresas. É esse mecanismo automático que é criticado pelo economista como fonte potencial de fraudes. No entanto, trata-se de um tributo à honestidade da grande maioria das empresas envolvidas. Ao submeter o ressarcimento do crédito tributário a uma fiscalização (só recebe depois do fisco ver se está tudo certo), a proposta de Salto mantém o calvário que empresários enfrentam para empreender no país, em que créditos tributários são uma miragem.

O ponto 3 refere-se ao risco de crédito entre estados. Bem, se já vimos estados atrasando salários e aposentadorias de funcionários públicos, imagine reter indevidamente repasses de impostos para outros estados. Ainda mais com um STF tão, digamos, sensível à causa dos estados mais pobres. A crítica de Salto, com direito a bater no peito, ofendido, afirmando que São Paulo jamais reteria créditos de outros estados, não leva em consideração a história econômica do Brasil.

A segunda crítica refere-se à alíquota do IBS, que seria determinada por modelos estatísticos. Bem, se vamos ter um imposto que vai substituir dois (o ICMS e o ISS), não tem outro jeito, a não ser estimar uma alíquota. Caso contrário, continuaremos com os dois impostos atazanando a vida dos empresários. Para mitigar esse problema, o IBS começa pequeno e vai conviver durante alguns anos (5 anos é a proposta, até onde eu sei) com os outros impostos, de modo a calibrar o seu tamanho com calma.

A terceira e última crítica refere-se ao Fundo que vai ser disponibilizado pela União para bancar, por 10 anos, os incentivos já concedidos pelos estados às empresas. Salto chama isso de “previsão constitucional para a nefanda guerra fiscal”. Eu chamo de “respeito aos contratos”. Imagine você, empresário, que calculou o retorno de seu empreendimento com base no incentivo de um determinado estado, e uma outra lei se sobrepõe e diz que aquele incentivo já não existe mais. Esse dispositivo da RT está aí para proteger um contrato firmado.

Enfim, a cada vez que leio críticas detalhadas sobre o projeto da RT, mais me convenço de que o que se quer é manter o poder do Estado sobre a iniciativa privada. Todos os argumentos vão na direção de manter a discricionariedade de governadores e prefeitos, em detrimento do ambiente de negócios no Brasil. Esse projeto de reforma tributária é o que tem de mais liberal na praça. Não é à toa que vem encontrando tanta resistência.

A roda-gigante da democracia

A respeito do meu post sobre a democracia no Brasil e a probabilidade de “virarmos uma Venezuela”, vários seguidores desta página argumentaram mais ou menos na seguinte linha: o judiciário está mancomunado com o PT, e é só uma questão de “quando”, não de “se”, vamos virar uma Venezuela. Meu argumento, naquele post, era de que o centro político (não confundir com o “centrão”, ainda que este último faça parte do primeiro) é muito forte no Brasil, e não tolera extremismos. Nosso problema é patrimonialismo, não extremismo.

A confirmar essa visão, uma matéria e uma coluna de hoje no Estadão trazem aspas importantes. A matéria, sobre o “isolamento de Lula na cúpula do Mercosul”, traz falas de Carlos Siqueira e Luciano Bivar, repercutindo as declarações de Lula sobre a Venezuela. Bivar é um expoente do Centrão, mas Siqueira é nada menos que o presidente do PSB, demonstrando que o centro político é mais abrangente que o “centrão”.

Mas o mais importante, e que ganhou pouca repercussão, foi o tuíte do decano do STF, Gilmar Mendes, publicado logo após Lula ter afirmado que a democracia seria um “conceito relativo”, e reproduzido na coluna de Marcelo Godoy. O mesmo Gilmar Mendes que impediu Lula de assumir a Casa Civil no governo Dilma e foi instrumental para que Lula fosse solto e recuperasse seus direitos politicos, esse mesmo Gilmar agora mostra o cartão amarelo ao presidente. É a roda-gigante a que me referi no meu post.

Godoy, em sua coluna, afirma que Lula perdeu o habeas corpus que tinha para falar o que bem entendesse no momento em que os direitos políticos de Bolsonaro foram cassados. Lula era o que havia à mão para o sistema se livrar de Bolsonaro. Agora, Siqueira, Bivar e Mendes alertam que a licença de Lula expirou.

Argumento de autoridade do bem

Não gosto disso, mas vou usar argumento de autoridade aqui. Alguns dos economistas que mais respeito assinaram um manifesto em apoio ao projeto de reforma tributária. São eles:

  • Afonso Celso Pastore
  • Armínio Fraga
  • Bráulio Borges
  • Bruno Carazza
  • Edmar Bacha
  • Fábio Giambiagi
  • Mailson da Nóbrega
  • Manoel Pires
  • Márcio Garcia
  • Marco Bonomo
  • Marcos Mendes
  • Otaviano Canuto
  • Samuel Pessôa

São pessoas que entendem do que estão falando e não têm interesses próprios na defesa da tese. Não vi, até o momento, qualquer manifesto em contrário, a não ser patrocinado por entidades de classe ou políticos defendendo o seu pedaço.

Quem ganha com o manicômio tributário

A proposta de reforma tributária em tramitação no Congresso, mesmo que não seja aprovada, já terá cumprido ao menos uma missão: desmascarar aqueles que lucram com o manicômio tributário.

Este anúncio da Frente Nacional dos Prefeitos é paradigmático: assim como a FNP, todos são teoricamente a favor de uma simplificação do sistema tributário brasileiro, desde que não mexam nos seus respectivos queijos. Para tanto, não têm pudor de simplesmente mentir, como é o caso dessa peça de publicidade: os municípios não irão perder recursos e os pobres não serão prejudicados. É equivalente a dizer que os pobres são beneficiados pelo atual sistema, o que chega a ser um escárnio no país com um dos 10 piores índices de Gini do mundo.

Jabuti não sobe em árvore. Se o sistema tributário brasileiro é o que é, não é por obra e graça divina. Antes, é porque atende a diversos interesses, que são obrigados a emergir quando uma proposta de simplificação está para ser votada. Sempre tem alguém ganhando com determinado arranjo institucional. Sempre.

Um problema prático da igualdade salarial entre homens e mulheres

Problema prático.

O meu Santos está uma draga, e acho que desse ano não escapa do rebaixamento para a série B. Ali, não deve ter nenhum jogador ganhando menos do que R$ 200 mil/mês.

Por outro lado, o time feminino do Santos está de encher os olhos, tendo-se classificado para a semifinal do campeonato brasileiro. Não tenho ideia da média salarial ali, mas duvido que a jogadora mais bem paga receba algo sequer perto de R$ 200 mil/mês.

Perguntas:

1) Jogadoras e jogadores são empregados do Santos FC. Com esta lei, todos e todas deverão receber o mesmo salário?

2) O que aconteceria com o time masculino do Santos se os jogadores recebessem o mesmo salário do time feminino?

3) O que aconteceria com o time feminino do Santos se as jogadoras recebessem o mesmo salário do time masculino?

Este é um caso extremo, mas a sua natureza não é muito diferente daquela que as empresas enfrentam. A definição de “mesma remuneração para o mesmo trabalho” nem chega perto de resolver o problema. Vamos acompanhar.

Macroeconomia vintage

Imagine você entrando em um carro de fabricação 1973. Ar-condicionado? Não. Direção hidráulica? Tampouco. Freio ABS? Vai sonhando.

Bem, foi essa a sensação que tive ao ler reportagem de hoje no Valor, em que os políticos de vários países europeus estão culpando os lucros das empresas pela inflação. Em 1971, Richard Nixon estabeleceu congelamento de preços nos EUA com base na mesma premissa. 15 anos depois, a Sunab fechava supermercados aqui, demonizando o lucro dos empresários. E não é que, 50 anos após Nixon, voltamos na história? É a macroeconomia vintage.

A matéria afirma que FMI e OCDE respaldam esse diagnóstico dos políticos, pois concluíram que uma parte relevante do aumento de preços foi parar na linha de lucros das empresas. Os políticos, matreiramente, confundem causa com consequência: não é que o lucro causa inflação, mas é justo o oposto: o excesso de demanda é que permite aumentar os lucros.

Digamos que, por hipótese, as empresas cortassem os preços e diminuíssem suas margens. O que ocorreria? Simples: haveria um excesso de demanda não atendida, provocando escassez de produtos. As empresas poderiam eventualmente produzir mais para atender a esse excesso de demanda, mas trata-se de uma decisão que 1) leva tempo e 2) pode não ser ótima economicamente para as empresas, dados os lotes econômicos e os custos fixos. De qualquer forma, como em todo congelamento de preços, haveria escassez, como explico em detalhe no meu livro Descomplicando o Economês.

Além disso, se as empresas baixassem seus preços, haveria uma diminuição dos preços, não necessariamente uma redução da inflação. Há aqui uma confusão entre inflação e nível de preços, que também explico no meu livro. Depois do degrau para baixo, o processo inflacionário permaneceria intacto, pois a demanda permaneceria lá.

A ciência monetária avançou muito nos últimos 50 anos, e sabemos que inflação se combate com política monetária, calibrando o custo do dinheiro. A inflação que estamos vivendo ainda é fruto dos gigantescos estímulos fiscais da pandemia, além de uma política monetária frouxa, principalmente na Europa. Culpar os empresários é fácil. Difícil é fazer a lição de casa.

In “centrão” we trust

Tenho bons amigos que realmente acham que, se não estamos em uma ditadura, ao menos estamos caminhando firmemente para nos tornarmos uma, e a inelegibilidade de Bolsonaro seria mais um tijolo dessa construção. Será que é o caso?

Ninguém gosta de ser chamado de ditador. Outro dia, Joe Biden, na sua trocentésima gafe, deixou escorregar que a China é uma ditadura. Foi um Deus nos acuda, com o governo chinês pedindo explicações. Lula diz que Maduro não é ditador, que a Venezuela é até democrática demais. A ditadura militar teria sido uma “ditabranda”, com Supremo e Congresso funcionando normalmente (a não ser por “breves períodos”), rodízio de poder e até eleições! E, claro, as pessoas que acamparam em frente aos quarteis até outro dia estavam implorando intervenção militar de modo a evitar que uma ditadura assumisse o país…

Mas afinal, o que caracteriza uma ditadura? Talvez pudéssemos caracterizá-la como o oposto da democracia, mas daí teríamos que definir o que vem a ser democracia, o que nos deixa com um problema circular nas mãos.

Para fugir das impressões e vieses pessoais, talvez a forma mais objetiva de classificar um regime como mais ou menos demcorático seja através de métricas bem definidas na literatura da ciência política. A Economist Inteligence Unit procura fazer justamente isso, com o seu Democracy Index.

O Democracy Index é calculado anualmente, e se baseia em 5 pilares: 1) Processo eleitoral e pluralismo, 2) Funcionamento do governo, 3) Participação política, 4) Cultura política e 5) Liberdades civis. Cada um desses pilares recebe uma nota de 0 a 10, formando o índice total de cada país. Na última edição, de 2022, os 5 países mais democráticos foram Noruega, Nova Zelândia, Islândia, Suécia e Finlândia. Já os 5 menos democráticos foram Afeganistão, Myanmar, Coreia do Norte, Rep. Centro Africana e Síria. O Brasil ficou em 51o lugar (em um ranking de 167 países), com um score de 6,78 pontos (entre um máximo de 9,81 e um mínimo de 0,32 pontos). O Brasil, segundo este índice, não parece ser uma ditadura, ainda que não seja uma democracia perfeita.

Onde o Brasil perde mais pontos? Vejamos:

– Processo eleitoral e pluralismo: 9,58 pontos (equivalente à Suécia)

– Funcionamento do governo: 5,00 pontos

– Participação política: 6,67 pontos

– Cultura política: 5,00 pontos

– Liberdades Civis: 7,65 pontos

Podemos observar que nossos maiores problemas estão no “funcionamento do governo” e na “cultura política”. O que vem a ser isso?

Para medir o “funcionamento do governo”, a Economist mede coisas como o poder de lobbies sobre o funcionamento do governo, se há “accountability” do governo em relação aos cidadãos, nível de corrupção e a confiança da população nos políticos e nos partidos. Bem, não é à toa que não nos saímos tão bem nesse quesito.

Já a “cultura política” é medida principalmente através de pesquisas de percepção da população em relação a quesitos como “desejo de um líder forte ou militar que se sobreponha às instituições”, ou “desejo de um governo de tecnocratas”, ou a percepção da democracia como insuficiente para manter a ordem. Em países onde governos democraticamente eleitos têm falhado em fazer entregas à população, é natural que desejos desse tipo aflorem na população.

De qualquer modo, parece claro que, de acordo com o índice, em quesitos como “eleições livres” e “liberdades civis” estamos longe de sermos uma ditadura. E é justamente a esses dois quesitos que esses meus amigos se apegam ao afirmar que estamos caminhando para uma ditadura. Essa percepção não encontra respaldo em uma medição imparcial.

Mas o problema não seria o estado atual da coisa, mas a tendência. Como esse índice tem se comportado no tempo? É o que podemos observar no gráfico abaixo.

De fato, houve uma deterioração do índice brasileiro a partir de 2015, com todos os eventos que se seguiram à Lava-Jato. Provavelmente tivemos uma piora significativa sobre a visão que a população tem sobre a classe política e a democracia em geral. Mas note como o índice cai de um pico de 7,4 para o atual 6,8, uma queda de 0,6 pontos. Muito diferente do que um país como a Venezuela (gráfico abaixo) sofreu, de aproximadamente 5 pontos para 2 pontos no mesmo período. Uma queda de 3 pontos, em um movimento de clara deterioração das condições democráticas.

Claro, nada garante que não sigamos o mesmo caminho da Venezuela, mas a magnitude da deterioração é de outra ordem de grandeza.

Minha particular percepção é a seguinte: o Brasil é uma roda-gigante, em que os que estão por baixo estarão por cima em algum momento, e vice-versa. Em cada fase, o lado que está por baixo acusa o lado que está por cima de “anti-democrático”. Foi assim durante o processo de impeachment, e está sendo assim agora, no inelegibilidade de Bolsonaro. Em ambos os casos, as instâncias competentes tomaram decisões que desagradaram uma parcela da população, minando a confiança nas instituições democráticas. Mas, bem ou mal, as instituições mambembes do Brasil estão aí, fazendo a roda gigante girar. O chavismo comanda a Venezuela há 24 anos, e não há a mínima perspectiva de que a coisa vai mudar. Aqui, o “centrão” da política acaba por cortar as asas de quem tem um projeto chavista para o país, seja à esquerda, seja à direita. O Brasil nunca será o suprassumo da democracia, mas é bem difícil que uma força política se torne hegemônica na geleia real que é a nossa democracia. In “centrão” we trust.