As externalidades negativas da CLT

A economista Laura Karpuska está muito preocupada com os entregadores e pergunta: quem paga pela seguridade social dos moto e cicloboys? A economista usa uma palavra difícil para traduzir a sua preocupação: externalidade. As plataformas de entrega estariam se aproveitando de uma externalidade negativa, porque, no final do dia, a seguridade social dos entregadores estaria sendo custeada pelo Estado. Em outras palavras, o lucro da plataforma viria, em parte, do SUS e do INSS.

A economista tem razão, mas ela conta só metade da história. A outra metade, os usuários, também se aproveitam dessa externalidade negativa, ao pagar preços convenientes pela entrega. Sabemos que a CLT dobra o custo do trabalhador. Estaria a economista disposta a pagar o dobro pela sua pizza de domingo à noite? São somente as plataformas que “lucram” com a informalidade?

Mas o problema principal não é nem esse. Segundo dados do IPEA, temos aproximadamente 500 mil entregadores de plataforma no Brasil. Esse número representa 1,3% dos 38 milhões de trabalhadores sem carteira assinada, segundo os últimos números do IBGE. Karpuska está preocupada com a externalidade negativa das plataformas. Eu estaria mais preocupado (76 vezes mais preocupado, para ser mais exato) com a externalidade negativa da CLT, que expulsa milhões de trabalhadores do mercado formal de trabalho. Para usar os mesmos termos da economista, faltam evidências de como a nossa legislação trabalhista internaliza seus custos sociais.

A preocupação da economista é típica da classe média com peso na consciência. Afinal, dos milhões de trabalhadores sem carteira nesse Brazilsão, o nosso contato diário é com os entregadores, que garantem a entrega da blusinha da Shein. Há uma espécie de fetiche em relação às plataformas de entrega, como se concentrassem todos os problemas do mercado de trabalho brasileiro e fossem os únicos agentes econômicos a “lucrar” com a informalidade. O ponto principal é que nossa mão de obra é mal preparada e pouco produtiva, e está longe de justificar a seguridade social nórdica de que dispomos. Essa é a realidade nua e crua, e que não será resolvida enquadrando-se as plataformas de entrega.

Bomba de fumaça

Sabe aquela história da bomba de fumaça, que alguém joga para distrair o inimigo enquanto se dedica a executar o seu plano? Pois é exatamente isso que Haddad está fazendo ao defender uma “reforma administrativa” para limitar os “supersalários” do funcionalismo.

Não que os salários que ultrapassam o teto constitucional não sejam uma vergonha. Mas o seu montante (cerca de R$ 3,9 bilhões anuais) sequer arranha o problema. A folha de pagamentos da União totaliza R$ 350 bilhões/ano. Sentiu o drama?

Haddad propõe uma reforma para estampar nas manchetes, o brasileirinho vibra com o fim das mordomias, enquanto tudo continuará como está. E assim vamos, de factoide em factoide, até a próxima crise global arrastar os países que não fizeram a lição de casa.

O Threads “flopou”?

O que aconteceu com o Threads, a nova rede social que iria desbancar o Twitter? (Eu sei que é X, mas ninguém chama de X, né?)

Eu recortei e guardei a análise abaixo, do colunista Pedro Doria, publicado há exatos dois meses, praticamente decretando a morte do Twitter. Afinal, Elon Musk “cometeu muitos erros”, e as pessoas “estavam há meses procurando uma alternativa”.

O começo foi arrasador: o Threads conseguiu a marca de 10 milhões de usuários em meras 7 horas. O recorde anterior era do ChatGPT, que atingiu essa marca em 40 dias. Facebook e Instagram haviam conquistado 10 milhões de usuários em 852 e 355 dias, respectivamente. Um verdadeiro furacão. Não é à toa que Pedro Doria e todos os desafetos de Musk estavam como pinto no lixo.

Mas alguma coisa aconteceu. Quer dizer, alguma coisa não aconteceu. No gráfico abaixo, podemos observar o crescimento da base de usuários do Threads: depois de atingir 100 milhões de usuários em meros 4 dias, a coisa simplesmente parou. Hoje, a nova rede social de Zuckerberg tem 130 milhões de usuários (número de 05/09), contra 450 milhões do Twitter.

Mas não é no número de usuários que se mede o tamanho da flopada do Threads. Eu sou um usuário, mas entrei na rede somente quando a criei e nunca mais voltei. No dia 07/07, dia em que o artigo abaixo foi publicado, o número de usuários ativos bateu quase 50 milhões. Atualmente, com 130 milhões de usuários cadastrados, o número de usuários ativos é de 10 milhões. Para se ter uma ideia, esse número é 20 vezes menor que o número de usuários ativos do Twitter. O tempo médio gasto pelos usuários do Threads na rede é de 3 minutos, contra 30 minutos do usuário do Twitter. Combinando os dois números, a publicidade no Twitter tem 300 vezes mais exposição do que a publicidade no Threads, e é isso o que importa. (Vou colocar nos comentários a fonte dessas informações).

A conclusão que eu chego é a seguinte: o usuário está pouco se lixando com as polêmicas envolvendo Elon Musk, e só quer uma rede onde possa brigar. O Threads surgiu para fazer a mesma coisa que o Twitter. Ora, se vai fazer a mesma coisa, por que mudar? O efeito inércia trabalha a favor do incumbente. Se o Threads não mostrar alguma vantagem relevante em relação ao Twitter, não vai decolar. Essa história de prometer ser uma rede “limpinha e civilizada” não é um diferencial e, arrisco dizer, é contraproducente. As pessoas querem ler brigas e insultos, e não discursos politicamente corretos. Para isso, já temos a mídia mainstream.

Zeus e Prometeu

O grande erro da Lava-Jato foi ter tocado no Intocável. Mais sábios foram os juízes do Mensalão, que chegaram, no máximo, ao capataz.

– Ah, mas como é possível ignorar provas? – dirão alguns.

Sempre é possível, trata-se de uma avaliação. No caso, a Lava-Jato assinou a sua sentença de morte ao não ignorar as provas contra o Demiurgo.

Estou entre aqueles que se entusiasmaram com um Brasil que parecia ter amadurecido, um Brasil em que não existem deuses, mas apenas homens pecadores. Estava enganado, há um ser Divino e toda uma corte olímpica a servi-lo.

Lula elegeu-se com apenas um objetivo em mente: colocar atrás das grades Sérgio Moro e todos os procuradores envolvidos em sua prisão. A peça de Toffoli servirá para isso. Tal qual Zeus do alto do Olimpo, não descansará enquanto não amarrar Prometeu ao penhasco para ser comido vivo pelas águias, Prometeu que ousou roubar o fogo da sabedoria e dá-lo aos homens dessa Terra Brasilis.

Putin lança o programa Mais Soldados

O governo cubano está indignado. Parece que Moscou está pescando em águas cubanas para recrutar soldados para a guerra. O que a reportagem chama de “tráfico”, na verdade, não passa de uma relação comercial: Putin mitiga o seu problema de recrutamento de cidadãos russos, enquanto os cubanos têm a oportunidade de ganhar uns trocos e, com alguma sorte, voltar para casa após o fim do contrato. Uma relação ganha-ganha. A não ser para o governo cubano.

No programa Mais Médicos do governo Dilma, o “tráfico” de cubanos era oficializado, e o governo cubano ficava com a parte do leão dos salários de seus cidadãos. Esse sim era um arranjo que interessava aos dirigentes da ilha de Fidel. Agora, Putin atravessou o intermediário, e está tratando diretamente com a mão de obra. Putin gasta menos e os cubanos recebem mais. Todo mundo sai satisfeito, menos o governo cubano, que denuncia o “tráfico de pessoas” e afirma não ter nada a ver com a guerra.

Pelo jeito, Putin terá que estabelecer o programa Mais Soldados e pagar mais caro, se quiser continuar contando com a prestimosa ajuda dos recrutas cubanos.

Pirão pouco, meu caviar primeiro

O advogado criminalista Antônio Cláudio Mariz de Oliveira, dono de uma das maiores bancas de advogados do país, mostra a sua face humana em artigo de hoje, em que urge o Estado e os cidadãos a “dar um teto” aos sem-teto. Sua frase “toda a sociedade brasileira precisa estar imbuída de solidariedade e amor ao próximo”, confesso, arrancou-me suspiros. Faltava-nos alguém para lembrar que só o amor constrói.

Mas o verdadeiro amor não é só suspiros. O látego justiceiro do criminalista não descansa. Amor e solidariedade, segundo o advogado, são virtudes de poucos. A maioria dos cidadãos e políticos “não se sensibiliza com essa tragédia”. Só querem mesmo saber de suas próprias vidas, desde que as pessoas em situação de rua estejam fora de seu campo de visão.

O Brasil é um dos 10 países com pior distribuição de renda no mundo, medido pelo índice de Gini. Trocentos programas sociais não foram capazes de mover um milímetro sequer esse ponteiro. Os sem-teto que habitam as ruas de nossas cidades, assim como as favelas, são a face visível dessa desigualdade. Quando apareceu uma reforma tributária que iguala as alíquotas para todos, e tem o poder de mitigar um pouco essa situação, grupos bem organizados, que desde Cabral souberam entortar as regras a seu favor, correram para garantir exceções que permitissem a continuidade de seus privilégios. A OAB a que Mariz de Oliveira pertence, é um deles.

Mariz de Oliveira é uma pessoa especial. Apesar de ser um dos homens mais ricos do Brasil sob qualquer parâmetro que se meça, seu coração está cheio de amor e solidariedade. Então, justifica-se que lute com unhas e dentes para que a reforma tributária não alcance os grandes escritórios de advocacia, que pagam um montante de ISS vergonhosamente baixo. A reforma igualará a alíquota de seu escritório com a do salão de cabeleireiro onde trabalham moças que mal conseguem pagar o seu aluguel. Mas, claro, essas moças não devem ter “amor e solidariedade” em seus corações, então precisam compensar esse defeito pagando mais impostos, mantendo a desigualdade secular do país intacta. Assim, vez por outra, os champions do amor e da solidariedade poderão continuar desfilando suas virtudes em artigos de jornal.

Ozark

Ontem terminei de assistir à série Ozark. Não sou muito de séries, prefiro filmes. Raramente chego ao fim de uma série, normalmente me cansam com a circularidade do enredo, que são esticados em situações pouco plausíveis, só para não terminarem. Ozark, por outro lado, é um grande filme, em que uma família comum de classe média vai se transformando na medida em que cede às suas ambições.

A história é relativamente simples: um consultor financeiro, por trás da fachada respeitável de sua firma de consultoria em Chicago, lava dinheiro para um cartel mexicano. No entanto, são pegos pelo cartel roubando uma parte do dinheiro, e o consultor, para não ser morto, convence o cartel de que pode lavar muito mais dinheiro em Ozark, uma cidade perdida no Missouri. Aliás, essa é uma marca da série: o consultor e sua esposa saindo de situações-limite jogando xadrez verbal com seus inimigos. A série é um imenso jogo de xadrez, em que um avanço abre mais possibilidades de jogadas, atiçando a ambição do casal.

A série é bastante violenta, e chega a ser perturbadora em alguns momentos, na medida em que envolve assassinatos chocantes. A tensão é constante, como em um filme interminável de Hitchcock. As interpretações são perfeitas, com destaque para Jason Bateman, que faz o papel do consultor estilo MacGyver, capaz de sair das situações mais difíceis, e que alterna seu poker face diante de situações-limite com momentos de sincero desespero.

Uma última observação: as mulheres são as personagens fortes nesta série. Os homens aparecem, via de regra, como frágeis ou manipuláveis ou impotentes para deterem as mulheres. Ou seja, mais ou menos como é a realidade dos casais.

Mais uma inauguração de obra

O monotrilho que ligaria o aeroporto de Congonhas até outros modais de transporte foi contratado em 2011 para ser entregue para a Copa de 2014. Geraldo Alckmin era o governador na época, e só saiu do Palácio dos Bandeirantes 8 anos depois. A sucedê-lo tivemos João Doria, que ficou quase 4 anos à frente do governo paulista. Nem Alckmin, nem Doria conseguiram entregar o monotrilho, ainda que, no caso deste último, existe a desculpa da pandemia.

Como sabemos, Geraldo Alckmin, hoje, está exercitando a sua habilidade de fazer belos discursos e não entregar nada no Ministério da Indústria e Comércio. Doria voltou para o ramo de show business, que é a sua praia.

Vamos ver agora se Tarcísio resolve. Pelo menos parece que é do ramo. O presidente do metrô (empresa que irá operar a linha depois de pronta) pronunciou sábias palavras: “não vamos celebrar o anúncio da retomada das obras. A sociedade paulistana espera a entrega”. No dia em que os políticos brasileiros inaugurarem tantas obras prontas quanto canteiros de obras, seremos um país rico.

O papel das expectativas

A discussão sobre a meta de superávit fiscal é muito interessante, por envolver percepções e expectativas, mais do que a realidade em si.

O ministro Haddad bateu o pé, e enviou uma LDO com previsão de déficit zero para 2024, que é a meta estabelecida para o ano que vem na lei do arcabouço fiscal. Para que essa meta seja cumprida, é necessária a arrecadação de R$ 168 bilhões adicionais às receitas já previstas. O grosso da lista de potenciais receitas refere-se a decisões judiciais favoráveis ao fisco.

A verdade é que, para o governo, tanto faz cumprir a meta ou não. Qualquer que seja o resultado primário, as despesas vão crescer, em termos reais, 50% do aumento das receitas, ou, no mínimo, 0,6% ao ano. Ou seja, faça chuva, faça sol, o crescimento real das despesas está garantido.

Então, por que bater o pé em uma meta, qualquer que seja? Simples: para manter as expectativas do mercado sob controle. O ministro não pode simplesmente jogar a toalha, demonstrando lassidão. Ele precisa parecer comprometido com a meta, mesmo que não acredite que seja possível alcançá-la. Aliás, ninguém no mercado realmente acredita nessa meta. Mas deixa para o mercado o ceticismo, o ministro não pode piscar.

Mas se o mercado duvida da promessa do ministro, de que adianta prometer? Adianta muito. Uma coisa é não cumprir a meta tentando cumpri-la. Outra coisa é simplesmente não tentar. As expectativas são formadas não somente com base na promessa para o ano que vem. Os agentes extrapolam as atitudes de hoje para a perpetuidade, de modo que a promessa de hoje é considerada como uma promessa para sempre.

É claro que promessas não cumpridas têm prazo de validade. Se a meta de 2024 não for cumprida (e não será), uma promessa para 2025 parecerá menos crível. E, assim, ao longo do tempo, o governo perderá a sua credibilidade, com os efeitos conhecidos sobre os mercados. Mas esse é um problema do futuro. Hoje, Haddad precisa correr atrás de receitas, mesmo que não sejam permanentes, para cumprir a meta de 2024. Quanto mais próximo chegar, mais crível será a sua promessa para 2025. Desistir a zero de jogo de 2024 significaria desistir do próprio arcabouço fiscal.