O julgamento moral da atividade econômica

É justo que… Não é justo que…

Estas são as duas frases que mais ouvimos nas discussões sobre a miríade de exceções no projeto da Reforma Tributária. Via de regra, há uma tentativa de “fazer justiça” tributária, o que passa pelo julgamento moral da atividade econômica.

Nada mais representativo dessa tentativa do que a alíquota seletiva, o que ficou popularmente conhecido como “imposto do pecado”. A última versão do projeto inclui exploração de petróleo e de minério de ferro nessa alíquota, em uma condenação moral implícita dessas duas atividades, no mesmo nível de cigarros e bebidas alcoólicas.

A alíquota seletiva é a porção mais saliente desse julgamento moral, mas está longe de ser o único. A cesta básica terá alíquota diferenciada porque “é justo” para com os mais pobres, a Zona Franca de Manaus será mantida porque “é justo” fomentar a atividade industrial na região e as pejotinhas de profissionais liberais terão alíquotas menores porque “não é justo” o aumento da carga tributária sobre o setor.

A busca pela “eficiência econômica”, por sua vez, é prima-irmã do julgamento moral da atividade econômica. Assim, estabeleceu-se, por exemplo, que os setores de turismo e de transportes mereceriam um tratamento especial, pois, por algum misterioso motivo, aumentariam a “eficiência econômica” do país.

Existe uma regra básica da tributação, qual seja: a tributação deve ser neutra, ou seja, não deve influenciar a escolha do consumidor. Esse é um artigo de fé na eficiência dos mercados na alocação de recursos. Qualquer interferência nesse processo através de alíquotas diferenciadas diminui a eficiência da economia ao longo do tempo, ao provocar a alocação de recursos em setores menos eficientes. Ninguém, e muito menos deputados e senadores influenciados por lobbies, consegue definir os setores que mais “contribuem para o crescimento econômico”. Há um certo fetiche de controle por parte dos economistas desenvolvimentistas, que têm a convicção de que conseguem, em uma sala, puxar os cordões certos da economia. Como se as virtualmente infinitas interações entre os agentes econômicos coubessem em uma planilha.

Quando se abre a Caixa de Pandora da “justiça tributária” ou da “eficiência econômica” perde-se o controle, e aí é o que estamos vendo. A alíquota diferenciada para a cesta básica puxou a fila de todo resto. Afinal, por que só a cesta básica?

O ideal teria sido uma alíquota única de verdade, com o governo subvencionando a cesta básica para famílias cadastradas no Bolsa Família. Com isso, a Caixa de Pandora permaneceria fechada. Mas quem diz que os setores fortes de lobby estavam interessados nisso? Todos defenderam a exceção da cesta básica, porque sabiam que, assim, estaria aberto o caminho para defender suas próprias exceções. E, de exceção em exceção, continuaremos presos na armadilha da baixa eficiência econômica, com o Estado sequestrado por elites bem organizadas e sem real senso de comunidade. Sim, isso é um julgamento moral.

Quando a vaquinha vai para o brejo

O Estado moderno é a forma que a humanidade encontrou de organizar-se e decidir sobre suas prioridades comuns. Para isso, todos fazemos uma vaquinha, entregamos o dinheiro arrecadado para o Estado, para que seus responsáveis (os governantes eleitos) apliquem nas prioridades definidas pelos cidadãos.

Existem, portanto, duas decisões a serem tomadas: como o dinheiro arrecadado será gasto e quem participará da vaquinha e com quanto. As duas notícias de hoje referem-se a essa segunda decisão.

Toda essa discussão sobre a Reforma Tributária e isenções nada mais é do que setores da sociedade buscando diminuir a sua contribuição para a vaquinha nacional. Como o outro lado da moeda, os gastos do Estado, permanece o mesmo, restam duas alternativas: os setores que não conseguem se safar da vaquinha precisam aportar mais e/ou o Estado precisa chamar para a vaquinha os contribuintes do futuro, aumentando a dívida.

A coisa é muito simples, apesar da opacidade da contabilidade pública. Tudo se resume a quem vai contribuir com a vaquinha. Os problemas começam quando a sociedade não quer diminuir os gastos do Estado e, ao mesmo tempo, não quer contribuir com a vaquinha. Essa situação perdura por um tempo, enquanto ainda resta a capacidade do Estado de chamar os contribuintes do futuro para a vaquinha. Quando essa capacidade se exaure, a vaquinha vai para o brejo.

O custo do homem-hora brasileiro

O problema não é nem o risco de ver a reforma da Previdência sendo revogada. A chance disso acontecer é zero.

O problema é o número de homens-hora gastos para desenhar e discutir um “projeto alternativo”. Homens-hora que poderiam estar sendo empregados em atividades úteis para o país, mas serão dedicadas a fazer cafuné em um fetiche da esquerda.

Lupi, vale lembrar, foi recentemente agraciado, juntamente com a irmã da Marielle Franco, com um cargo de conselheiro da metalúrgica Tupy, nas duas vagas reservadas ao BNDES. O ministro da Previdência, portanto, já exerce a sua habilidade de ganhar salário sem fazer nada de útil também na iniciativa privada. Na Tupy, ao menos, não vai gastar homens-hora da empresa em iniciativas sem pé nem cabeça.

Sergio Massa será o próximo presidente da Argentina

Sergio Massa será o próximo presidente da Argentina. De onde concluí isso? Comparando os resultados das primárias com os resultados do 1o turno.

A chave ideológica nos levaria a dizer que Javier Milei tem grandes chances no 2o turno. Afinal, sendo de direita, Milei seria capaz de atrair a maior parte dos votos de Patrícia Bullrich. Somando os votos de Milei e Bullrich no 1o turno, temos 53,9% dos votos válidos, mais do que suficiente para que o candidato “anarcocapitalista” seja eleito. Para ser mais exato, Milei precisaria atrair 60% dos votos de Bullrich e dos outros candidatos para ser eleito. Não parece ser algo difícil, considerando o estado atual da economia argentina. Mas…

Mas não é isso o que a evolução do voto entre as primárias e o 1o turno nos diz. Vejamos.

Primárias:

  • Milei: 30,0%
  • Massa: 27,3%
  • Bullrich: 28,3%
  • Outros: 14,4%
  • Comparecimento: 69%

1o turno (número entre parêntesis é a variação para as primárias):

  • Milei: 30,0% (zero)
  • Massa: 36,5% (+9,2%)
  • Bullrich: 23,9% (-4,4%)
  • Outros: 9,6% (-4,8%)
  • Comparecimento: 78%

Ou seja, os votos de Bullrich (e dos outros candidatos) migraram para Massa, não para Milei. Os argentinos que expliquem esse comportamento, mas foi isso o que aconteceu. O comparecimento maior indica que os novos votantes escolheram preferencialmente Massa, o que também não é boa notícia para Milei.

Se esse mesmo padrão de migração de votos de Bullrich e os outros candidatos se repetir do 1o para o 2o turnos, Massa deveria se eleger até com certa folga. Mas ainda tem muita campanha pela frente.

O pedágio do capitalismo de compadrio

“Crony capitalism” ou “capitalismo de laços” ou “capitalismo de compadrio” como é normalmente traduzida essa expressão no Brasil, refere-se à prática de empresários e políticos arranjarem acordos mutuamente benéficos, às custas de quem está fora desses acordos, normalmente os contribuintes ou a concorrência (geralmente ambos).

Em abril último, escrevi sobre esse acordo entre a Shein e a Coteminas, empresa controlada por Josué Gomes, empresário próximo do PT. Depois desse acordo, as alíquotas de importação das brusinhas chinesas voltaram ao normal. Agora, mais detalhes “picantes” desse acordo vieram à tona, inclusive um empréstimo (conversível em ações) de R$ 100 milhões para a empresa brasileira. Isso, e o fato de a empresa chinesa precisar passar pela Coteminas para fazer parcerias com fábricas locais, são, no dizer da reportagem, práticas incomuns.

A China é a própria definição de crony capitalism, pois tudo lá passa por conexões com o governo. Por isso, deve ter parecido natural, para a Shein, o pedágio que teve que pagar para fazer negócios no Brasil.

Shame on you, Musk!

Ah lá, o Elon Musk de novo se aproveitando das benesses do Estado para impulsionar seus negócios. Dessa vez são os contribuintes europeus que vão pagar a conta desse capitalista até a página 2. Só porque a estatal europeia de foguetes, a Arianegroup, não está conseguindo entregar seus foguetes no prazo? Shame on you, Musk! Você deveria recusar essa encomenda e deixar os europeus para trás na corrida por colocar satélites em órbita. Assim, não seria acusado de crescer “às custas do Estado”.

À espera de Mandela

Thomas Friedman novamente. Em um longo artigo, Friedman descreve, de maneira bastante competente (como sempre), todas as perplexidades que envolvem a atual situação de Israel. No entanto, fica claro como até um analista experiente como ele não consegue articular alternativas minimamente críveis para o fim dessa crise. Não o culpo, porque não existem.

Nesse artigo, Friedman defende o anúncio do fim da política de assentamentos na Cisjordânia como ponto de partida para um processo de paz. E não lá na frente, mas agora, agorinha mesmo. Para entender o tamanho dessa fantasia, basta ler o parágrafo seguinte. Como contrapartida a esse anúncio, a Autoridade Palestina deveria escolher uma “liderança competente para construir instituições decentes e livres de corrupção, que conquistem o respeito das pessoas e legitimidade”. Uau! Nada menos do que um Mandela!

Pena que um Nelson Mandela é figurinha rara no álbum dos governantes globais. E este é o problema dessa proposta de Friedman: o anúncio do fim dos assentamentos é a parte fácil do quidproquo, ainda que não seja propriamente fácil. A parte difícil, incerta, improvável, é essa da “nova liderança palestina”.

Não custa lembrar, pela enésima vez, que já houve algo nessa linha: em 2005, Israel não só anunciou o fim da expansão dos assentamentos em Gaza, como retirou seus colonos à força. E quem fez isso foi um linha dura como Ariel Sharon, tão falcão quanto Netanyahu. E qual foi o resultado? O Hamas ganhou as eleições para comandar o território e, dois anos depois, deu um golpe e assumiu com poderes ditatoriais. Onde está o Mandela?

A política de assentamentos na Cisjordânia nasceu dessa, digamos, experiência. Netanyahu e a linha dura de Israel ganharam força ao se mostrarem premonitórios sobre o que aconteceria com Gaza sem a presença de Israel. Os assentamentos na Cisjordânia são, a um só tempo, exigência dos religiosos e dos militares. Difícil lhes tirar a razão, considerando o que aconteceu em Gaza.

Israel poderia dar uma segunda chance para a paz, anunciando o fim dos assentamentos? Creio que sim. Mas o timing aqui é importante. Friedman fala de um anúncio “agora”, como pré-condição para o distencionamento. O problema dessa proposta é o sinal que envia: depois da carnificina perpetrada pelo Hamas, um anúncio desses soaria como uma legitimação dos métodos do grupo terrorista. -Ah, quer dizer então que funciona, vamos continuar nessa linha e ver até onde Israel vai recuar. Lembre-se, não há um Mandela do outro lado, esse é o raciocínio desse povo nessa parte do mundo.

Não, Israel não tem opções fáceis pela frente. Ainda mais atuando contra um inimigo que vê a morte como algo glorioso, um martírio. O fim dos assentamentos pode até ocorrer, mas certamente não agora, mas como parte de um plano abrangente. O erro da retirada unilateral de Gaza, podem estar certos, não ocorrerá novamente.

Brasil e Argentina: um paralelo

A inflação no Brasil, este ano, deve fechar próxima de 5%. Os juros, apesar de estarem caindo, ainda estão muito altos. O Banco Central ainda mantém uma política monetária bastante apertada, pois ainda estamos distantes da meta de inflação, que é de 3% para o ano que vem. No entanto, do outro lado das Cataratas do Iguaçu, a inflação na Argentina está hoje em 140%, e só Deus sabe quanto vai fechar no ano.

Por que essa diferença gigantesca? O que o Brasil fez de certo, que lhe permite conviver com uma inflação civilizada? Ou, por outra, o que a Argentina fez de errado, para estar às portas de uma hiperinflação?

Como Brasil e Argentina acabaram com a hiperinflação

Investigar a história é sempre um exercício discricionário, no sentido da escolha que se faz do ponto de partida da narrativa. Neste artigo, decidi estabelecer o ponto de partida da comparação no início da década de 90, quando ambos os países resolveram o problema da hiperinflação que assolou a ambos na década de 80. Comecemos pelo Gráfico 1, que mostra justamente essa transição.

Não se deixe enganar pela escala! Mesmo em anos em que as barras estão pequenas, a inflação era muito alta para os nossos padrões atuais. Por exemplo, em 1986 (ano do Plano Cruzado no Brasil), a inflação brasileira foi de 80%, enquanto na Argentina foi de 82%. Observe que a Argentina resolve o seu problema inflacionário já a partir de 1991, com o Plano Cavallo (nome do ministro da economia de Carlos Menem) enquanto, no Brasil, este problema só é definitivamente endereçado em 1994, com o Plano Real. Vamos mostrar o mesmo gráfico a seguir, mas iniciando em 1995, quando ambos os países já tinham as suas inflações estabilizadas (Gráfico 2).

Observe que há duas fontes para a confecção deste gráfico, o FMI e um site chamado Trading Economics. Isso ocorre porque a base de dados do FMI não possui informações sobre a inflação da Argentina de 1997 para trás, e também para os anos de 2015 e 2016. O FMI somente coloca em sua base de dados informações que possuam um mínimo de confiabilidade. Aparentemente, não foi o caso da inflação argentina antes de 1997 e nos anos de 2015 e 2016. O site Trading Economics tem esses números, com exceção de 2016. Neste ano, nem com muito boa vontade.

A política cambial dos dois países

Voltemos para a análise. Note como, até o ano 2001, a inflação brasileira foi substancialmente superior à Argentina. Isso aconteceu porque o Plano Cavallo adotou uma dolarização disfarçada, chamada de “Currency Board”. Este mecanismo garantia a total conversibilidade entre o peso e o dólar, tornando a moeda norte-americana, na prática, a moeda de referência da economia argentina. No Brasil, também adotamos uma dolarização disfarçada, mas muito menos rígida: as “bandas cambiais”, em que o Banco Central comprava ou vendia dólares sempre que a moeda brasileira se afastava de um patamar pré-determinado. Esse mecanismo um pouco mais flexível gerou, como contrapartida, uma inflação muito mais alta do que a do nosso vizinho. No Gráfico 3, vemos os câmbios brasileiro e argentino no período que vai de 1995 a 1998, antes que ambos os governos desvalorizassem suas moedas. Podemos observar que o peso permanece em 1,00, enquanto o real se desvaloriza de 0,85 até 1,20.

No gráfico 4, temos a extensão do gráfico 3 até a desvalorização das duas moedas. Observe como a desvalorização do real, de 1,20 para cerca de 1,80, foi fichinha se comparada à desvalorização do peso, que foi de 1,00 até 3,80 em questão de meses. Isso aconteceu porque a economia argentina acumulou tensões durante muito mais tempo do que a brasileira, em um sistema muito mais rígido. Quando explodiu, a potência da explosão foi muito maior.

É dessa época o famoso “corralito”, um esquema de sequestro de dólares que pegou os argentinos de calças curtas, equivalente ao calote do Plano Collor.

A Odisseia dos Tontos é um filme com Ricardo Darín que tem como pano de fundo o corralito. Muito bom para quem quiser entender o ambiente da Argentina na época.

Temos, então, já de cara, uma diferença fundamental entre Brasil e Argentina: o governo brasileiro decidiu por um sistema cambial mais flexível, mesmo durante o período do “câmbio administrado”, que durou apenas 4 anos. O Currency Board argentino durou nada menos do que 11 anos, do início de 1991 até o final de 2001, acumulando todo tipo de distorção. Sua saída foi caótica, com o presidente De La Rua tendo que sair de helicóptero do telhado da Casa Rosada e nada menos do que 4 presidentes se sucedendo em pouco menos de duas semanas.

A coisa começa a se estabilizar somente a partir de 2003, com a chegada ao poder de Néstor Kirchner e o início do superciclo das commodities, que irá beneficiar o Brasil, a Argentina e todos os outros exportadores de commodities. No gráfico 5, temos o real e o dólar nesse período, que vai de 2003 a 2011.

Note, no entanto, uma coisa estranha: enquanto o real se valoriza de maneira impressionante nesse período, passando de 3,50 para 1,50 entre 2003 e 2008, o peso pouco se move, permanecendo no patamar de 3,00 durante todo esse período. Ora, era de se esperar um comportamento semelhante, dado que os termos de troca eram favoráveis aos dois países, assim como a todos os outros exportadores de commodities. O peso chileno, por exemplo, saiu de 600 para 450 por dólar nesse período.

Por que isso aconteceu? O câmbio serve como um termômetro da saúde de um país. Se o peso não seguiu a tendência dos países exportadores de commodities, é porque algo errado havia. Se observarmos o que aconteceu após a Grande Crise Financeira (GCF) de 2008, ainda no gráfico 5, essa dicotomia fica ainda mais clara: enquanto o real se recupera da grande desvalorização do final de 2008, o peso começa uma escalada de desvalorização que irá somente piorar dali para frente. Podemos estabelecer este evento (a GCF) como o ponto inicial da deterioração da moeda argentina que dura até hoje, apesar de que, como vimos, a distorção está presente desde o abandono do Currency Board.

No gráfico 6, podemos observar o comportamento do ágio entre o câmbio oficial e a cotação do principal câmbio paralelo, o “blue” (infelizmente, só consegui dados a partir de 2008).

Note como o ágio é praticamente zero até 2011, o que indica que o câmbio oficial flutuava livremente. A partir de 2012, algo começa a acontecer, e o governo da então presidente Cristina Kirchner, que havia assumido no final de 2007, começa a controlar o câmbio. Com isso, o ágio explode, variando em torno de 60% a partir de 2013 até a vitória de Maurício Macri, que assume o governo em 2016. O novo governo libera o câmbio, que flutua livremente, fazendo com que o ágio voltasse para zero. Este quadro permanece assim até que Macri perde as eleições, e o novo governo de Alberto Fernández decide tabelar novamente o câmbio, fazendo com que o ágio explodisse novamente. É nesse ponto que estamos hoje.

Para o brasileiro, passou a ser estranho falar de “câmbio paralelo”. A última vez que o Estadão publicou a cotação do câmbio paralelo foi em abril de 2001, ou seja, há mais de 20 anos, e cerca de dois anos após o governo deixar o câmbio flutuar. Na Argentina, onde o câmbio é administrado pelo governo, o mercado paralelo é o que fornece a real cotação do peso.

Última publicação do “dólar paralelo” no Estadão, em abril/2001

As reservas internacionais

O acompanhamento das reservas internacionais fornece uma outra perspectiva do problema externo argentino. Em 2006, a exemplo do Brasil, a Argentina também “se livrou” do FMI. Portanto, vamos acompanhar a evolução das reservas argentinas desde então, no gráfico 7, com e sem os aportes do FMI.

Observe como, a partir de 2011, as reservas, que se encontravam por volta de US$ 50 bi, começam a recuar, até atingir US$ 25 bi em 2014. A partir de meados de 2016, o governo Macri, aproveitando uma onda de boa vontade do mercado internacional de capitais com o seu governo, adota a estratégia de emitir dívida para reforçar as reservas internacionais. Entre abril/16 e maio/18, o governo argentino emitiu US$ 66 bilhões em dívida externa, enquanto as reservas cresceram US$ 20 bilhões nesse período. Só nesta distorção já podemos perceber que havia algo de podre no reino de Buenos Aires. Esse “algo de podre” forçou o governo Macri, em junho/18, a fechar o maior acordo da história do FMI, um stand-by de US$ 56 bilhões. A partir de então, o governo argentino foi sacando desse acordo. Entre junho/18 e agosto/23, a Argentina sacou US$ 50 bilhões deste acordo. Descontando este montante, as reservas argentinas estão negativas em US$ 25 bilhões.

A comparação direta com a trajetória das reservas brasileiras fica prejudicada por conta da diferença de tamanho entre as duas economias. Assim, optei por mostrar a razão entre reservas e o total de importações mais pagamento de serviços de cada país (dados mensais), dado que as reservas servem justamente como uma reserva de emergência para este tipo de gasto. O resultado está no gráfico 8.

Observe como, a partir de 2009, esta relação se deteriora na Argentina, saindo do intervalo de 10-15 meses de importações (como a brasileira), para algo como 5 meses. Com o aumento das reservas feito por Macri, essa relação foi para o intervalo de 15-20 meses (como era a brasileira na época), mas deteriorou-se a partir de então. Note que, mesmo com o aporte do FMI, as reservas argentinas hoje conseguem pagar algo como 5 meses de importações, ao passo que as reservas brasileiras pagam algo como 10-15 meses.

O problema fiscal

Até agora, somente verificamos os sintomas da doença argentina, a inflação e o câmbio. Para entender, contudo, a doença, é preciso abrir o paciente. Ou seja, verificar a sua situação fiscal. É o que fazemos no gráfico 9, a seguir:

Note, em primeiro lugar, que não há estatísticas brasileiras dos resultados das contas públicas na base do FMI antes de 2001. Ocorre que, de fato, estatísticas fiscais do setor público brasileiro consolidado só começam a ser compiladas a partir de 2001. Antes disso, temos estatísticas do governo federal e banco central, em conjunto, a partir de 1991, e separadamente somente a partir de 1999. Temos também estatísticas dos governos subnacionais a partir de 1991, mas sem consolidação com o governo federal. Ou seja, antes de 2001, as contas públicas brasileiras eram bastante opacas, e sabemos que, para qualquer ação de saneamento, antes é necessário ter uma noção da situação real.

Vejamos a situação da Argentina. Durante os anos do Currency Board, a Argentina tinha uma situação fiscal relativamente equilibrada, com baixos superávits e déficits fiscais. Portanto, a saída atabalhoada da paridade cambial, em 2001, deve-se mais aos desequilíbrios externos do que à situação fiscal doméstica. A partir de 2003, assim como o Brasil, a Argentina produziu superávits primários bastante expressivos, aproveitando-se do crescimento econômico trazido pelo superciclo das commodities. O quadro começa a mudar a partir da GCF de 2008. A partir daí, a Argentina começa a produzir déficits fiscais em série e cada vez maiores. Note a diferença para o Brasil, que também tem problemas fiscais, mas somente a partir de 2014 e em escala muito menor. A Argentina não produz superávit primário simplesmente desde 2009, o que nos leva à conclusão de que os problemas atuais se devem não a desequilíbrios externos, mas ao desequilíbrio doméstico. Com o Banco Central argentino tendo que financiar esses gastos, não é à toa que a inflação saiu do controle.

Por que, afinal, o Brasil se diferenciou da Argentina

Até aqui, fizemos um diagnóstico da situação, mas não entramos na discussão sobre os motivos que levaram o Brasil a seguir uma trajetória diferente da Argentina. Como tudo em economia, não há respostas definitivas. Listo, a seguir, algumas hipóteses.

  1. Câmbio controlado: o Brasil teve um período relativamente curto de câmbio controlado, menos de 4 anos, entre 1995 e 1998, ao passo que a Argentina segurou o Currency Board por mais de 10 anos, entre 1991 e 2001. Além disso, o controle brasileiro era mais flexível, permitindo desvalorizações da moeda ao longo do tempo. Assim, a economia brasileira acumulou bem menos tensões do que a argentina nesse período. E o pior: com exceção do breve período do governo Macri, o câmbio argentino nunca deixou de ser controlado pelo governo, ao contrário do câmbio brasileiro, que flutua livremente desde 1999.
  2. Banco Central autônomo: o Banco Central brasileiro sempre contou com mais autonomia que seu homônimo argentino, mesmo antes da aprovação da sua independência formal, em 2021. O nosso Banco Central não pode financiar o governo, comprando dívida pública, em um processo que chamamos de “monetização da dívida”. Na Argentina, até hoje o BC dá uma mãozinha para o Tesouro, comprando títulos emitidos pelo governo. Além disso, o sistema de metas de inflação só funciona quando o mercado acredita que o BC é autônomo, o que não é o caso na Argentina.
  3. Problema fiscal: como vimos no gráfico 9, o problema fiscal argentino é bem maior que o brasileiro, por incrível que pareça. Além disso, dada a opacidade dos dados do governo argentino, não duvido que esses números não sejam ainda piores, escondidos em rubricas que escapam da contabilidade oficial. Aqui, por ruim que seja, temos uma regra que limita os gastos do governo (o novo “arcabouço fiscal”). Na Argentina, não existe algo semelhante.

Note como as três hipóteses acima formam o nosso “tripé macroeconômico” (câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários), a estrutura em torno do qual se mantém a nossa estabilidade macroeconômica.

Hoje os argentinos escolhem o político que vai pegar essa batata quente. Sergio Massa e Patrícia Bullrich são mais do mesmo do que foi feito nos últimos anos pelos peronistas e por Maurício Macri. Javier Milei, por outro lado, é um salto no escuro. Sua plataforma de enxugamento da máquina do Estado vai na direção correta, ainda que seja preciso entender qual será o real apoio político que terá para tirá-la do papel. Por outro lado, a ideia de dolarizar a economia e aposentar o Banco Central vai na mesma direção do Currency Board, que tantas distorções causou na economia argentina na década de 90 e teve um fim desastroso. Faria bem o candidato, se eleito, se dedicar a fazer o feijão com arroz bem feito, o que já é difícil, e deixar as pirotecnias de lado. O Plano Real, que colocou o Brasil nos eixos, não foi um show de pirotecnia, mas antes, foi a construção de todo um arcabouço fiscal e monetário que permitiu ter alguma estabilidade macroeconômica.

Que nossos hermanos possam tirar alguma lição dessa experiência. E que nossos governantes tenham a sabedoria de preservar o que deu certo.

Cafonice autoexultante

Lula sempre se supera. Quando você acha que ele atingiu seu limite de asneiras, eis que jorram asneiras ainda maiores de sua torneirinha, como diria a Tia Anastácia. A última foi a sua “receita” para acabar com a guerra no Oriente Médio: “carinho, afeto, dedicação e solidariedade”.

Esse receita tem funcionado muito bem. Por exemplo, Daniel Ortega tomou e se manteve no poder na Nicarágua com muito “carinho, afeto, dedicação e solidariedade”. Chavez e Maduro são outros que, certamente, empregaram muito “carinho, afeto, dedicação e solidariedade” para se manterem no poder. Em Cuba, Fidel Castro e seus sucessores tiveram e têm muito “carinho, afeto, dedicação e solidariedade”. E isso só pra ficar aqui entre os amigos da América Latina.

Esse discursinho ficaria bem para, sei lá, a Madre Teresa de Calcutá ou o Dalai Lama. Estadistas sabem que os povos têm seus interesses e estão dispostos a lutar por eles, seja na arena diplomática, seja no campo de batalha, que é a diplomacia feita por outros meios, na expressão de Clausewitz. Em um episódio passado, o embaixador de Israel chamou o Brasil de “anão diplomático”. Acho a expressão imprecisa. Seria melhor “criança diplomática”, que pensa o mundo de maneira ingênua e simplória. Há quem diga que, se o mundo fosse governado pelas crianças, seria um mundo muito melhor. Quem diz isso é porque nunca viu crianças brigarem entre si pelos seus “direitos”. De qualquer forma, as crianças são retiradas da sala enquanto os adultos resolvem os problemas. Os adultos sabem que as crianças não têm maturidade para enfrentar os problemas do mundo. O Brasil, com essas “soluções” propostas por Lula, cada vez mais se exclui do mundo dos adultos.

O senador Ciro Nogueira, em artigo no mesmo jornal de hoje, define a diplomacia do governo brasileiro de maneira antológica, como um misto de “megalomania com uma cafonice autoexultante”. Esse discurso de Lula preenche todos os requisitos da cafonice. Nem discurso de miss supera.

A trindade impossível

O crescimento econômico está ao alcance da mão, sua fórmula é conhecida, basta nos livrarmos de amarras ideológicas para a sua implementação. Esta é a tese dos professores da FEA-USP autores deste artigo. As amarras ideológicas seriam, grosso, modo, o Consenso de Washington, que preconizaria, segundo os autores, taxas de juros altas para combater a inflação e equilíbrio fiscal. E qual a fórmula defendida pelos professores? Do ponto de vista macroeconômico, taxas de juros baixas e câmbio administrado. Do ponto de vista microeconômico, aumento do crédito via aumento da competitividade do sistema financeiro e retomada da capacidade de investimento do Estado. Tudo isso levaria a um modelo de exportação de manufaturados, a chave para a retomada do crescimento. Ouvi a palavra “neoindustrialização” aí?

Vamos nos ater às recomendações macroeconômicas dos professores. Para entender seus efeitos, vamos lembrar da “trindade impossível”, um modelo proposto pelo prêmio Nobel Robert Mundell. Segundo este modelo, as seguintes três coisas são impossíveis de acontecer ao mesmo tempo:

– Fluxo livre de capitais

– Câmbio fixo

– Política monetária independente

Volte lá na proposta dos professores. Note que eles propõem câmbio fixo (para manter a indústria competitiva no mercado global) e política monetária independente (para fixar a taxa de juros em níveis “baixos”). Portanto, essa proposta não funciona se o fluxo de capitais for livre. Essa é a parte feia da proposta, e que os professores não mostram. Em outras palavras, para seguir este modelo, o Brasil precisaria fechar suas fronteiras para a saída do capital, tanto estrangeiro quanto dos nacionais.

É fácil de entender porquê: com juros baixos, inflação alta e câmbio fixo, que idiota manteria seu dinheiro no país? Quer um exemplo prático, que está acontecendo agora, enquanto falamos aqui? É só dar uma olhada para o nosso vizinho ao sul, que enfrentará eleições nesse fim de semana em meio a uma grave crise macroeconômica. Câmbio fixo, juros baixos, Estado investidor, o pacote completo.

Mas claro, essa políticas só não foram adotadas por “birra ideológica”, mesmo depois de mais de uma década de governos do PT.

PS.: existe um fetiche pela “exportação de manufaturados”. Austrália e Nova Zelândia exportam basicamente commodities, e são países desenvolvidos. O desenvolvimento de um país se faz com instituições desenvolvidas, e não pela exportação de parafusos.