Anteontem, foi aprovado no Senado um pacote de bondades no valor de R$ 41 bilhões. Como não há espaço no teto de gastos, foi aprovado, em conjunto, a decretação de um “estado de emergência”, o que permite gastos acima do teto. A PEC (sim, foi necessário emendar a constituição para aprovar essa despesa, dado que o teto de gastos está inscrito na constituição) foi aprovada, no primeiro turno, por incríveis 72 votos a 1 e, na segunda votação, por 67 votos a 1. Além disso, sua tramitação levou poucos dias, um verdadeiro recorde para uma PEC, que, normalmente, tem seu tempo de tramitação medida em meses, quando não em anos.
Este episódio é um suco concentrado de Brasil, e nos permite observar a realidade política e econômica brasileira de diversos ângulos. Vejamos.
1) A lenda de que Bolsonaro não realizou tudo o que queria porque é refém do Legislativo (desculpa normalmente usada para poupar o presidente da crítica de não ter avançado com reformas estruturais) cai por terra. No presidencialismo, quando o presidente quer, mas quer de verdade, a coisa acontece. Um pacote de bondades com o objetivo de ajudá-lo nas eleições foi aprovado por uma quase unanimidade na velocidade da luz. Se isso não é poder político, não sei mais o que é.
2) Dois terços dos senadores não enfrentarão eleições neste ano. Portanto, a desculpa de que estão tentando surfar em medidas populistas para ganhar votos não se aplica. A grande maioria votou por convicção mesmo. O que não deixa de ser assustador.
3) A definição de “emergência” passou a ser mais elástica. Em 2020, a pandemia, que paralisou a economia global por vários meses, foi considerada uma emergência. Ok, fazia todo sentido. Em 2021, os efeitos da pandemia ainda se faziam sentir, mas a vacinação avançava e a economia já vinha em franca reabertura. Isso não impediu que a lei orçamentária fosse aprovada prevendo uma claraboia no teto de gastos, para despesas “emergenciais” com a pandemia, o que incluía basicamente qualquer coisa. E agora, a “emergência” é o aumento dos preços dos combustíveis. Três anos seguidos de emergência, o governo já pode pedir música no Fantástico. É o jeitinho institucionalizado.
4) A banalização do conceito de emergência era tudo o que o PT queria. Fica demonstrado que esse teto de gastos é para inglês ver. Gastar acima do teto passou a ser a norma, não a exceção, o que esfrega a desmoralização da âncora fiscal na cara da nação. Não à toa, em seu programa de governo, o PT afirma que o teto de gastos está desmoralizado. E não à toa, votou em peso por mais essa pá de cal no esquema de controle das contas públicas. Somente José Serra (o único senador que votou contra) terá moral para apontar o dedo e acusar um governo do PT de ser fiscalmente irresponsável.
5) Se esse pacote de bondades era realmente imprescindível, não seria difícil encontrar espaço no orçamento para gastos de R$ 41 bilhões. Trata-se de uma situação completamente diferente da de 2020, quando foram gastos R$700 bilhões em uma verdadeira emergência. No entanto, quem disse que tem espaço em um orçamento de R$ 1,6 trilhões para acomodar mais R$ 41 bi de gastos? Cada milímetro do orçamento é defendido com unhas e dentes por interesses dos mais variados. E essa é a lição deixada por mais essa exceção na regra: todo mundo quer patrocinar bondades, desde que não signifique mexer no meu queijo.
6) Tem quem defenda que há espaço para gastar mais porque o governo tem tido sucesso na gestão fiscal, produzindo superávits primários e obtendo receitas extraordinárias, como os dividendos da Petrobras e a venda da Eletrobras. Essa é uma visão míope da realidade. Grande parte do superávit foi obtido através de receitas inflacionárias, que não foram gastas com o funcionalismo, que tem o seu salário congelado há algum tempo. É óbvio – não, é muito óbvio – que esse esquema não se sustenta no tempo. A inflação vai cair em algum momento e, mais cedo ou mais tarde, a inflação passada terá que ser incorporada ao salário dos servidores. Esse superávit primário tem muita semelhança com os programas alardeados pelo PT: conquistas grandiosas que não têm como se sustentar no tempo. Além disso, nós precisamos fazer superávit primário para diminuir a dívida pública. Se, a cada vez que fizermos superávit, inventarmos uma emergência para gastar, a nossa dívida nunca irá diminuir e o nosso gasto com juros só vai aumentar.
7) E por falar em gastos com juros, o mercado vem respondendo com mau humor a essas “flexibilizações” do teto. A taxa de juros tende a ser mais alta, pois a inflação tende a ser mais alta no futuro. Quem acredita que o governo brasileiro vai deixar de gastar como se não houvesse amanhã, permitindo que o BC traga a inflação para a meta de 3% nos próximos 10 anos, o Tesouro Direto tem uma oportunidade imperdível: título prefixado com vencimento em 2033 e pagando 13% ao ano. Ou seja, um título do governo pagando 10% ao ano acima da inflação oficial! Um negócio da China! Alguém pode desconfiar da esmola, e com razão. Afinal, por que um título do governo está pagando uma taxa de juros tão alta? Simples: porque os investidores estão desconfiados de que a inflação pode ser bem mais alta nos próximos anos, dado o comportamento fiscal do governo. Coisas como esse “pacote emergencial” por fora do teto só fazem aumentar essa desconfiança. Resultado: o custo da dívida aumenta. Se nada for feito, chegará uma hora em que nenhuma taxa satisfará os investidores. Aí, só com inflação descontrolada para rolar a dívida.
8) Os bolsonaristas que entendem tudo o que vai acima, mas ainda assim apoiam a medida, o fazem porque seria a única forma de enfrentar o PT na eleição, um partido que também não mede meios para atingir seus objetivos. Vale “fazer o diabo”, como bem disse a ex-presidenta. Seria como que uma licença para gastar em anos eleitorais, deixando a austeridade para anos não eleitorais. Pode ser. Viveríamos de criar bondades que valem somente para anos eleitorais, sendo retiradas nos outros anos, dado que não existe espaço no orçamento. Resta saber se o mercado e os eleitores se deixariam enganar por esse tipo de “bondade não permanente”.
A PEC ainda vai ser votada na Câmara, mas deverá passar por ampla maioria. E la nave do populismo va.