Me engana que eu gosto

Em evento ontem, Alckmin, supostamente o adulto na sala, voltou a defender a “responsabilidade fiscal” em tese. Na prática, porém, a sinalização é de que buscam uma maneira para gastar mais enquanto esperam iludir os mercados com fórmulas de “controle de dívida”. Vejamos.

Alckmin afirma que o teto de gastos “esmaga investimentos” ao não permitir que as despesas subam, mesmo que as receitas tenham se elevado. Não sei se é ignorância ou má fé, mas Alckmin convenientemente se esquece da razão estrutural que levou ao debacle fiscal do governo Dilma. Vamos refrescar sua memória.

Até 2014, o regime fiscal no Brasil era o da produção de superávits primários. Funcionava bem. Afinal, para manter a dívida sob controle, o importante mesmo é produzir superávits primários. Controlar gastos é apenas uma forma de atingir esse objetivo. Se fosse garantido que as receitas cresceriam, digamos, 5% ao ano além da inflação, os gastos poderiam crescer nesse mesmo ritmo sem que o superávit primário diminuísse. Aliás, foi exatamente isso o que aconteceu entre 2003 e 2012: despesas e receitas cresciam a uma taxa de 5% ao ano acima da inflação, e os governos Lula e Dilma I colocaram em prática a proposta de Alckmin: permitir que as despesas crescessem no mesmo ritmo, a fim de não “esmagar investimentos”.

Ocorre que, como sabemos, despesas são para sempre, mas nada garante que as receitas o sejam. A partir de 2012, o ritmo de crescimento das receitas começou a cair, e passou a diminuir, em termos reais, a partir de 2014. As despesas, no entanto, continuaram a crescer, pois o orçamento no Brasil é extremamente rígido: uma vez a despesa estando lá, não há condições políticas de tirá-la de lá. Vide, por exemplo, o auxílio de R$ 600, que era para ser uma exceção durante a pandemia, e tornou-se regra.

Então, aconteceu o inevitável: com receitas caindo e despesas rígidas, o superávit se transformou em déficit fiscal, não sem antes ter sido camuflado com as chamadas “pedaladas fiscais”. A solução foi a adoção do teto de gastos: com os gastos crescendo somente com a inflação, era questão de tempo para voltarmos a ter o que importa: superávit primário.

O que Alckmin propõe é, na prática, a volta ao regime anterior: se o aumento das receitas permitir, poderíamos ter aumento das despesas. O desastre, obviamente, será o mesmo, dado que as despesas não diminuirão quando as receitas caírem. E é questão de tempo para que caiam.

Um mecanismo qualquer de “controle de dívida” não muda essa realidade. Assim como o teto de gastos, uma regra de limite de dívida iria igualmente “esmagar investimentos”, o que certamente contribuiria para o seu fracasso, assim como foi com a regra do teto. Não há solução quando o que se quer, na verdade, é gastar sem limites.

A regra do teto tem duas grandes vantagens: é anti-cíclica e é simples de entender. A grande desvantagem é que impõe uma disciplina que a sociedade brasileira não está preparada para suportar. As regras alternativas em discussão, que permitiriam “aumentar as despesas quando as receitas aumentam”, são pró-cíclicas e de uma complexidade bizantina, na medida para serem manipuladas pelos políticos. É um “me engana que eu gosto”, feito sob medida para posar de fiscalista, ao mesmo tempo em que se continua a gastar como se não houvesse amanhã.

Na atual situação das contas públicas nacionais, qualquer regra séria deverá impor uma disciplina insuportável para a sociedade. Desconfie de regras fiscais indolores. Assim como os regimes alimentares que não exigem esforço para emagrecer, essas regras são apenas uma forma de empurrar o problema com a barriga.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.