O sistema de metas de inflação foi inaugurado em 1999, após o abandono da âncora cambial em janeiro daquele ano. Por esse sistema, o CMN (Conselho Monetário Nacional) estabelece uma meta para a inflação nos anos seguintes, meta esta que deve ser perseguida pelo Banco Central. Esta meta serve como uma espécie de “âncora” para as expectativas do mercado em relação à inflação futura. Ou seja, na falta de mais informações, os agentes econômicos cravam a “previsão” para a inflação no futuro na meta, pois confiam que o BC vai agir para levar a inflação para lá.
As primeiras metas foram estabelecidas em reunião do CMN em junho de 1999: 8% para 1999, 6% para 2000 e 4% para 2001. Na reunião de 2000, a meta de 2002 foi estabelecida em 3,5%, e na de 2001, a meta para 2003 foi estabelecida em 3,25%. Ou seja, já no início do sistema de metas, a ideia era levar a meta de inflação para os 3%, que era a meta padrão para países emergentes como o Brasil. No entanto, com a desancoragem do câmbio em 2002, a reunião daquele ano reviu a meta para 2003 para 4% e estabeleceu a meta para 2004 em 3,75%, em uma nova tentativa de convergir a inflação no Brasil para 3%.
Assumindo o governo Lula em 2003, a primeira reunião do CMN reviu a meta de 2004 para 5,5% (de 3,75%) e estabeleceu a meta de 2005 em 4,5%. No entanto, ao contrário do governo FHC, os governos Lula e Dilma mantiveram a meta em 4,5% durante todos os seus mandatos. Houve discussões sobre a redução da meta, mas foram mortas na fonte por Lula. A meta somente foi reduzida para 4,25% na reunião do CMN de 2017 para o ano de 2019 e para 4% para 2020. Nas reuniões seguintes, a meta foi sendo reduzida, até chegar na reunião do CMN de 2021, quando a meta de 2024 foi estabelecida em 3%.
Chegamos em 2023, e Lula mostra disposição de voltar a 2003, quando o CMN reviu a meta do ano seguinte. A discussão é: uma meta maior levará necessariamente a juros mais baixos e maior crescimento econômico? Para entender porque não, precisamos entender a lógica por trás do sistema de metas de inflação.
Em um país com viés inflacionário como o Brasil, o controle da inflação por meio de metas parece algo mais parecido com magia do que com ciência. Afinal, sem controlar preços, como garantir que a inflação não sairá do controle? O que está por trás do sistema de metas é uma teoria bem estabelecida em economia, chamada de “expectativas racionais”. Segundo esta teoria, os agentes econômicos, de alguma maneira, conhecem o modelo de economia em que estão inseridos, e assumem que as previsões sobre o futuro desta economia com base neste modelo estão, de maneira geral, corretas. No caso específico do sistema de metas de inflação, os agentes econômicos “preveem” a inflação futura com base em um modelo bem estabelecido, em que o Banco Central controla o preço do dinheiro na economia (a taxa de juros) de modo a trazer a inflação futura para a meta. Assim, o controle da inflação se dá pela “expectativa racional” dos agentes econômicos, que acreditam que o Banco Central cumprirá a sua tarefa de trazer a inflação para a meta. Por isso, quando perguntados sobre a inflação de, por exemplo, 2026, os bancos e consultorias cravam “3%”, porque esta é a meta. Não é que estejam “prevendo” a inflação através da utilização de modelos ultrassofisticados. Nada disso. Estes agentes econômicos simplesmente olham para a meta e creem que o BC fará o serviço direito. Quando acham que o BC não conseguirá trazer a inflação para a meta, colocam um desvio em relação à meta. Por exemplo, a inflação “prevista” para 2024 está em 3,7% contra uma meta de 3%. Ou seja, os agentes econômicos estão prevendo dificuldades para o BC trazer a inflação para a meta neste horizonte de tempo.
E o quê o BC faz para atingir a meta de inflação? Eleva ou derruba a taxa básica de juros, aquela que comanda toda as outras taxas de juros da economia. Taxas mais elevadas fazem com que menos pessoas estejam dispostas a consumir e menos empresas estejam dispostas a investir, esfriando a economia e, por consequência, a inflação. E vice-versa. Mas tem um detalhe importante, e esta é a parte fundamental deste artigo, preste muita atenção: o que realmente importa para o controle da inflação não é a taxa nominal de juros, mas a taxa REAL de juros. Ou seja, a taxa ACIMA da inflação. E não da inflação passada, mas da inflação ESPERADA NO FUTURO. Os agentes econômicos vão tomar suas decisões com base na taxa REAL de juros ESPERADA NO FUTURO.
Vamos a um exemplo numérico. Segundo o relatório Focus, a inflação esperada para 2024 está em 3,7% enquanto a Selic esperada para o final de 2023 está em 12,50%. Portanto, temos que os agentes econômicos esperam uma taxa de juros real de 8,8% no início de 2024. Note que não importa a inflação de 2022, esta já era. O que importa é quanto de taxa de juros real pode ser esperada, esta é a variável chave para a tomada de decisões de consumo e investimentos. Observe, portanto, que o que importa para o BC é a inflação ESPERADA, não a passada.
Aqui entra outro conceito importante: o de TAXA DE JUROS REAL NEUTRA da economia. A taxa de juros real neutra é aquela que mantém a inflação na meta ao longo dos ciclos econômicos. Se a expectativa de inflação está acima da meta, o BC precisa elevar os juros acima dessa taxa de juros real neutra para trazer a inflação para a meta. E, vice-versa, se a expectativa de inflação está abaixo da meta, a taxa praticada deve estar abaixo da taxa neutra. Essa taxa de juros real neutra depende de uma série de fatores estruturais, que vão desde as condições fiscais do país até a sua produtividade (custo Brasil). Quanto piores forem essas condições, maior será a taxa de juros real neutra da economia. Ninguém sabe exatamente quanto é essa taxa a cada momento, mas o conceito é este.
Agora, estamos preparados para entender o que provavelmente aconteceria se a meta para a inflação fosse elevada. Digamos que, na reunião do CMN de junho, decida-se por elevar a meta de 2024 em diante de 3% para 4,5%. Hoje, a expectativa para a inflação de 2024 está em 3,7%. Como dissemos lá no início, não é que os bancos e consultorias tenham uma bola de cristal e “adivinhem” a inflação de 2024. Eles partem da meta (que é 3%), e colocam um desvio de acordo com as incertezas do cenário. Em pouco tempo depois que a meta for elevada, as expectativas serão reajustadas para a nova meta. Portanto, as expectativas de inflação para 2024 em diante serão elevadas, inicialmente, para 4,5%.
Preste atenção neste ponto agora: o que acontece com a taxa de juros real ESPERADA? Ora, se a taxa real esperada antes era de 8,8% (12,5% menos 3,7%), agora é de 8,0% (12,5% menos 4,5%). Ou seja, PARA UM MESMO NÍVEL DE TAXA SELIC, a taxa real esperada DIMINUI em função do aumento da meta e, portanto, da expectativa de inflação.
Como vimos acima, o BC calibra a taxa real esperada em função da taxa real neutra da economia. Não sabemos qual é essa taxa real neutra, mas de uma coisa podemos estar certos: com a queda da taxa real esperada, o BC está mais próximo da taxa real neutra. Digamos, por exemplo, que a taxa neutra seja de 4% ao ano. Com 8,8% de taxa real esperada, a Selic estava 4,8% acima da taxa neutra. Já com 8%, a taxa real esperada está 4% acima da taxa neutra.
Claro que, com uma meta mais alta, o desvio das expectativas em relação a esta meta mais alta será menor do que a que temos hoje. Por exemplo, se as expectativas de 2024 saltarem de 3,7% para 4,5%, teremos um desvio caindo de 0,7% (3,7% menos 3%) para zero (4,5% menos 4,5%). Portanto, o BC poderia praticar uma taxa real esperada menor, em um primeiro momento. Mas note que, mesmo neste primeiro momento, o espaço para praticar taxas NOMINAIS de juros menores é limitado, pois a taxa real esperada já caiu com o aumento da expectativa de inflação. Ou seja, os juros nominais não caem na proporção que desejaria o governo com a mudança da meta.
O problema ocorre no segundo momento do jogo. A única coisa que mudou foi a meta de inflação. Todo o resto, todas as distorções da economia brasileira, permanecem as mesmas. Portanto, a tendência de descolamento da inflação em relação à meta, qualquer que seja, permanece a mesma. Assim, em algum tempo, começarão a aparecer desvios para cima também em relação à meta de 4,5%. É o que vimos no período de 2010 a 2015, em que a inflação permaneceu sempre perto do teto da banda da inflação, a ponto de o mercado acreditar que o BC estava trabalhando com uma meta “informal” de 5,5%. Considerando que a taxa real neutra da economia permanece a mesma em virtude das distorções da economia brasileira, as únicas coisas que vão mudar serão o nível da inflação e o nível da taxa nominal de juros ao longo do tempo, ambas 1,5 ponto percentual para cima. Voltaremos à estaca zero. Quer dizer, estaca zero, não. Estaca zero mais 1,5 ponto percentual. As taxas de juros serão mais altas, não mais baixas, como desejaria o governo.
Uma inflação mais alta prejudica o horizonte de investimento dos agentes econômicos e, portanto, as perspectivas de crescimento econômico, justamente o que se buscava com o aumento da meta para a inflação. Em economia nem tudo é o que parece ser. Não é a meta de inflação que impede o crescimento econômico, mas as inúmeras distorções da economia brasileira. Elevar a meta só serve para disfarçar essas distorções por algum tempo. Como tudo no Brasil, trata-se de um “jeitinho” que não resolve o problema, somente o adia, voltando lá na frente ainda maior.