Quando achávamos que André Lara Resende já tinha esgotado o seu arsenal de asneiras, eis que somos surpreendidos pela sua aparentemente inesgotável criatividade. Em artigo de ontem no Valor Econômica, o economista nos brinda com mais “verdades” e “fatos” para contrapor o consenso (só faltou dizer “de Washington”).
Lara Resende começa dizendo (e esse é um dos dois únicos “fatos” usados pelo economista para sustentar sua argumentação) que o governo brasileiro produziu superávit no ano passado. Ora, onde estaria o problema fiscal em vista desse resultado? Aliás, Lara Resende precisa combinar o discurso com o ministro da Fazenda, que insiste em dizer que herdou uma situação fiscal desastrosa do governo Bolsonaro. O articulista afirma que os arautos do apocalipse dão as costas a esse fato para continuarem sua missão de propagar o pânico, com o objetivo escuso de manter os juros altos. Claro que explicar para Lara Resende a diferença entre foto e filme é perda de tempo.
O segundo “fato” mencionado por Lara Resende é simplesmente falso: o tamanho da nossa dívida estaria em linha com a de outros países emergentes semelhantes. Fake, nossa dívida é muito maior. Não vou gastar muito tempo aqui, pois esse é fato sabido e comprovado.
Voltando à questão do alarmismo do mercado, o economista volta ao mesmo ponto de outros artigos: seria contraditório o mercado apontar o risco fiscal da PEC da gastança, quando o aumento dos juros produz gastos muito maiores. Segundo esse raciocínio, se estivesse mesmo preocupado com o risco fiscal, o mercado deveria clamar por redução dos juros. Bem, esse tipo de raciocínio pressupõe que já estejamos em “dominância fiscal”, um estado da economia em que a política monetária (taxa de juros) se submete à política fiscal (gastos com juros). O problema é que, quando se chega nesse estágio, o doente já está em fase terminal, e os médicos se dedicam somente a cuidados paliativos, como, por exemplo, congelamento de preços e controle de capitais. A Argentina é um bom exemplo desse estado da economia.
Ainda segundo o economista, haveria dois tipos de “investidores”: aqueles que investem em capital físico e intelectual (que seriam os investidores de verdade) e os chamados “rentistas”, que investem em títulos públicos ”sem risco”. Essa expressão, ”sem risco” é, obviamente, falsa. Existe o risco, que vou chamar aqui de risco “Lara Resende”, de um doidivanas como ele assumir o BC e colocar em prática as suas teses. Se isso vier a acontecer, a inflação vai comer todo o rendimento dos títulos públicos e mais um pouco. Chegará um momento em que ninguém mais vai querer carregar esses títulos “sem risco”, preferindo títulos denominados em moedas de verdade. Novamente, vide a Argentina.
Mas é na descrição do mercado de títulos públicos que André Lara Resende se supera, e atinge o próximo nível do perfeito idiota latino-americano. Segundo o economista, se o governo se tornasse superavitário e a dívida pública desaparecesse, a economia entraria em profunda depressão!!! Afinal, onde os rentistas aplicariam a sua poupança? Nesse sentido, a dívida pública seria um “bem público”, assim como o são escolas e hospitais, por exemplo. A conversa é tão de loucos que fica até difícil argumentar. É óbvio que, se a dívida pública desaparecesse via calote, a economia entraria em depressão. Mas, se o governo efetivamente pagasse a sua dívida, esse dinheiro seria liberado para atividades muito mais produtivas. A taxa de juros seria muito mais baixa e o potencial de crescimento da economia seria muito maior. Isso é tão óbvio que tenho até certa vergonha de explicar.
Por fim, Lara Resende afirma que o BC determina sim a taxa básica de juros, e poderia colocá-la onde quisesse. Até cita o BC japonês, que “determina” toda a curva de juros, não só a taxa básica, para demonstrar todo o poder que um BC possui. É aqui que identificamos o erro fundamental do economista: o BC (e o mercado) não estão preocupados com o “risco fiscal” per si. O risco fiscal só entra na equação porque pode determinar a inflação no futuro. Aliás, inflação que é a grande ausente do artigo de André Lara Resende. O BC determina a taxa de juros para controlar a inflação, e a expansão fiscal só torna esse trabalho mais difícil. Ao contrário do que diz Lara Resende, o BC não pode colocar a taxa de juros onde quiser. Quer dizer, poder pode. Mas as consequências vêm depois.
Com esse artigo, André Lara Resende se credencia como futuro banqueiro central do Brasil, talvez mais cedo do que mais tarde. Suas ideias devem soar como música aos ouvidos de Lula e Haddad. Lara Resende terá, então, a oportunidade de colocar em prática toda a sua sabedoria baseada em “fatos”. E se der errado, sempre haverá um bode expiatório à mão, nem que seja uma distante “herança maldita”. Nisso o PT é craque.