A inflação na Argentina no mês de fevereiro foi de 6,6%. Não haveria nada demais nessa informação, a não ser por um pequeno detalhe: a inflação nos últimos 12 meses dos nossos hermanos acaba de ultrapassar a barreira dos 100%. Mais precisamente, 102,5%.
A última vez que a inflação na Argentina ficou acima de 100% foi em 1991. Em março daquele ano, o presidente Menem, junto com seu ministro da Fazenda, Domingo Cavallo, lançou um plano de estabilização que vinculava o peso ao dólar na proporção de 1 para 1. Era a chamada “lei da conversibilidade”, que durou 10 anos, e foi abandonada em meio ao caos. A partir dos anos 2000, a inflação anual argentina raras vezes ficou abaixo de dois dígitos e, a partir de 2014, sempre acima de 20% ao ano. Mas acima de 100% é a primeira vez desde 1991.
As histórias monetárias de Brasil e Argentina são muito semelhantes até 1991 (na Argentina) e 1994 (no Brasil): hiperinflação na década de 80 e início dos 90, e plano de estabilização que vinculava, de alguma maneira, a moeda nacional ao dólar. Na Argentina, essa vinculação foi explícita, em um modelo de currency board; no Brasil foi implícita, com o BC intervindo no mercado de câmbio dentro de certos parâmetros. A partir de 1999 (no Brasil) e 2001 (na Argentina), ocorre o abandono do “padrão-dólar” por absoluta falta de reservas para manter a paridade, e daí cada país segue o seu caminho: o Brasil com seu tripé macroeconômico (metas de inflação, superávit primário e câmbio flutuante) e a Argentina com um sistema que poderíamos chamar de “administração de preços”, com intervenções cada vez mais profundas no sistema de preços da economia.
Mesmo com todos os seus evidentes problemas, o Brasil conseguiu manter a inflação sob controle, com apenas 3 anos de inflação em 2 dígitos desde 1999 (sendo um deles por conta da saída da pandemia). A Argentina, por sua vez, tem uma inflação descontrolada e está pendurada em um pacote gigantesco com o FMI, sem o qual não poderia estar importando nada.
O Brasil sofreu muito com a hiperinflação, e a sociedade brasileira criou uma espécie de memória ancestral em relação aos males da inflação. Por isso, todos os governantes sempre foram muito ciosos a respeito do controle do dragão. Pelo menos até hoje.
Lula não parece muito preocupado com a inflação. Ele quer aumentar a meta e trabalha para que o BC reduza as taxas de juros. Seu objetivo, acima de qualquer outro, é manter o crescimento econômico. “Um pouco mais de inflação” não parece ser um problema, desde que permita maior crescimento econômico, em uma dicotomia falsa no longo prazo.
Na Copa de 1982, lembro de uma faixa da torcida brasileira na Espanha, que dizia mais ou menos o seguinte: “Nossa seleção é que nem a nossa inflação: 100%”. Naquele ano, a inflação brasileira havia atingido pela primeira vez os 3 dígitos. A Argentina tem hoje uma seleção e uma inflação 100%. A diferença é que eles ganharam a Copa do Mundo, o que serve para distrair um pouco. Aqui, a Copa do Mundo não vai ajudar o governo se a inflação sair do controle.