O Brasil atingiu ontem 6,4% de mortalidade pelo coronavírus. Ou seja, de cada 100 casos notificados, 6,4 foram a óbito.
A crítica a este número, muito acertada diga-se de passagem, é que há uma enorme subnotificação da população infectada. Então, a base de cálculo está subdimensionada, o que levaria a uma taxa real de letalidade muito menor. Tão baixa, inclusive, que não justificaria toda essa histeria em torno do assunto. Não passaria de uma H1N1 um pouco mais forte (como sabemos, o índice de letalidade da H1N1 está por volta de 0,1%).
Bem, se o problema é subnotificação, vamos pegar alguns exemplos de países que têm uma notificação exemplar. O caso extremo é a Islândia. Esse pequeno país do Ártico já testou nada menos que 12% de sua população. Só para dar uma ideia do que isso significa, a Coreia, sempre citada como um exemplo de testagem em massa, testou 1% de sua população, enquanto o Brasil testou irrelevantes 0,03%. Pois bem: o índice de letalidade da Islândia é de 0,5%. Portanto, ainda cinco vezes maior que a H1N1.
Outro exemplo é Luxemburgo, um pequeno enclave entre Bélgica, Alemanha e França. Luxemburgo testou 5% da população, o quíntuplo da Coreia. Seu índice de letalidade é de 2,0%, muito semelhante ao da Coreia.
Será então que, uma vez testada toda a população, todos os países convergirão para o índice de letalidade da Islândia (0,5%)? A resposta é não.
O vírus não é um algoritmo que “escolhe” matar 0,5% de quem infecta. O índice de letalidade depende também da resposta dada à doença. Fatores como isolamento social, clima, vacinação anterior, podem influenciar o número de pessoas infectadas. Mas, uma vez infectada, as únicas variáveis que contarão para o óbito do infectado são a agressividade do vírus, a idade/comorbidade do contaminado e a resposta hospitalar. A agressividade do vírus deve ser a mesma no mundo inteiro, a não ser que haja mutações. A idade/comorbidade varia de país para país, mas é facilmente corrigida usando-se as pirâmides etárias de cada país. É na terceira variável que a coisa pega: como comparar o potencial de resposta hospitalar de cada país?
A forma mais simples é comparar leitos de UTI per capita. Quanto maior este coeficiente, melhor será a resposta hospitalar e menor será a letalidade. Mas existe uma outra variável muito mais importante, e de difícil mensuração: o grau de isolamento social. Vejamos um exemplo.
Digamos que dois países tenham 100 leitos de UTI/respiradores para cada milhão de habitantes. Digamos também que, se uma pessoa vai para a UTI, ela tem 75% de chance de se salvar. Por outro lado, uma pessoa que precise ir para a UTI mas não consegue vaga, vai a óbito em 100% dos casos.
Agora, suponhamos que os dois países tenham adotado alguma forma de isolamento social. O isolamento social do primeiro fez com que houvesse 100 pessoas precisando de UTI ao mesmo tempo. Tem vaga pra todo mundo, e 25 morrem. No segundo país, o isolamento social foi um pouco mais fraco, e 110 pessoas precisaram de UTI ao mesmo tempo. Dessas 110, 100 foram tratadas e 25 morreram. E das 10 que não foram tratadas, todas morreram, totalizando 35 mortes. Ou seja: um isolamento social apenas 10% mais fraco levou a um índice de letalidade 40% maior! Em outras palavras, comparar graus de letalidade entre países sem conhecer de perto suas práticas de isolamento social não passa de um tiro no escuro.
Sabemos muito pouco sobre essa doença. Calibrar então o grau de isolamento social necessário para não forçar o sistema hospitalar é mais do que uma arte, é puro chute. Lembro de minhas aulas de resistência dos materiais, em que aprendíamos cálculos complicadíssimos para projetar uma ponte. Depois de muita ciência, colocava-se um tal de “coeficiente de segurança”. Esse coeficiente de segurança é proporcional ao grau de ignorância sobre fatores não antecipados pelos cálculos. Quanto maior a ignorância, maior o coeficiente de segurança. Esse coeficiente de segurança, obviamente, custa dinheiro: significa mais material gasto na construção da ponte. Mas vidas estão envolvidas, então algum coeficiente de segurança é necessário.
No caso do coronavírus, o grau de ignorância é gigantesco. E qualquer erro pode levar à multiplicação do grau de letalidade em várias vezes, como vimos acima. Por isso, entende-se o “coeficiente de segurança” usado pelos gestores públicos no mundo inteiro na adoção do isolamento social.