Eu nem ia comentar, porque achei a coisa meio folclórica. Mas quando vi o Estadão dar capa para o fato, como se de importante coisa se tratasse, fui olhar com mais atenção.
O assunto teve origem em matéria do site Metrópoles. Na medida em que grande parte das pessoas só lê a manchete e, no máximo, o lead, cuidadosamente escolhidos pelo editor para causar impacto, vou gastar algumas linhas para mostrar algumas inconsistências da reportagem. Depois, vou dar minha interpretação política.
Vamos às inconsistências.
1. A matéria afirma que o governo federal (todas os ministérios e autarquias) gastou, em 2020, R$ 1,8 bilhão em alimentos. Este valor seria 20% acima dos gastos de 2019, insinuando um crescimento bem acima da inflação. Ocorre que a inflação de alimentos em 2020, no IPCA, foi de 18%. Ou seja, todas as famílias brasileiras, se mantiveram a mesma quantidade consumida de alimentos, gastaram 18% a mais em 2020. 20% adicionais não parece ser exagerado.
2. A comparação se deu somente com 2019. E os mesmos gastos em outros governos? Houve um aumento substancial? Ou diminuição? Das duas uma: ou o repórter não pesquisou para dar essa Informação (que é obviamente importante), ou pesquisou e achou números que não ornam com a narrativa pretendida. Em ambos os casos, não fez o trabalho decentemente.
3. Dos R$ 1,8 bi, R$ 632 milhões foram gastos pelo Ministério da Defesa, R$ 60 milhões pelo Ministério da Educação e, em um distante terceiro lugar, R$ 2 milhões pelo Ministério da Justiça. Somando esses 3 primeiros ministérios, temos R$ 694 milhões. Faltam, grosso modo, R$ 1,1 bilhão, que devem ter sido gastos pelos outros ministérios e autarquias. Ocorre que todos esses entes devem ter gasto menos do que os R$ 2 milhões gastos pelo Ministério da Justiça, o 3o lugar. Se assim for, deveríamos ter pelo menos 550 ministérios e autarquias para completar os R$ 1,1 bi que faltam. Temos tudo isso de ministérios e autarquias? A conta não fecha.
4. Na matéria, o Ministério da Defesa informa que os gastos com alimentos se destinam a manter alimentação saudável para uma tropa de 370 mil soldados que, ao contrário de outros servidores, não fizeram home office. Se isso for verdade, temos um gasto mensal de R$ 142/pessoa/mês em alimentos. Não parece muito para fornecer 3 refeições diárias. Os gastos do ministério da Educação, apesar de não serem foco da matéria, devem se justificar pelo fornecimento de alimentos para as universidades federais. Mas esta é apenas uma suposição minha.
Bem, mas tudo isso é irrelevante. O que importa, de fato, é a narrativa política. Quando Bolsonaro tirou a foto comendo pão com leite condensado, havia ali uma narrativa: a do presidente “gente como a gente”, tiozão, bruto mas simpático, que não tem papas na língua quando é pra dizer a verdade sobre as coisas. Tudo isso está sintetizado naquela foto. A foto era uma narrativa. E ele fez isso de maneira consciente.
Antes de continuar, vou fazer uma pequena digressão para fazer o meu ponto. Tem um pequeno livro da década de 50, que amo de paixão, chamado “A Lei de Parkinson”, em que o autor faz uma análise da vida corporativa. Em um dos capítulos, o autor analisa a dinâmica da tomada de decisão nas corporações. A tese é a seguinte: quanto mais complexo e caro for um projeto, menos atenção receberá dos tomadores de decisão. E vice-versa. Ele dá um exemplo: uma reunião para analisar 3 projetos. O primeiro é um reator nuclear no valor de US$ 10 milhões, o segundo é um projeto de cobertura para os automóveis dos funcionários no valor de US$ 3 mil e o terceiro é o tipo de café que vai ser servido na copa, no valor de US$ 100. O autor demonstra que 10% do tempo da reunião será gasto com o reator, enquanto 75% será gasto discutindo o cafezinho. Por que isso? Simples: porque as pessoas não conseguem entender a complexidade do reator e não compreendem o que sejam 10 milhões, mas todo mundo entende o que é um cafezinho, sabe quanto custa no supermercado e compreende a grandeza de 100 dólares.
Este exemplo me ocorreu ao ver o impacto da informação: R$ 15 milhões em leite condensado! Todo mundo sabe quanto custa uma lata de leite condensado, sabe quanto leite condensado vai numa receita de pudim. É muito mais fácil lidar com essa informação do que, por exemplo, com o gasto de R$36 milhões anuais só para MANTER PARADO o canteiro de obras da usina nuclear Angra 3. É dinheiro do mesmo jeito, mas a primeira informação tem uma narrativa compreensível por trás.
Ao tirar uma foto com a lata de leite condensado, Bolsonaro criou uma narrativa. Ao estampar os gastos com leite condensado do governo federal, o site Metrópoles deu um ipon na narrativa de Bolsonaro, colocando um preço na suposta simplicidade do presidente.
Pode até ser (é até bem provável) que haja ineficiências e corrupção nesse processo de compras do governo. Ineficiências e corrupção que não são de hoje, diga-se de passagem. Se a reportagem servir para uma auditoria séria por parte do TCU, já terá sido útil. Mas o ponto principal, claro, não foi apontar irregularidades. Foi colocar em cheque a imagem de austeridade e integridade do governo Bolsonaro. Para tanto, utilizou-se da mesma figura usada pelo presidente. Neste ponto, a reportagem foi genial.
Aos que se incomodam com esse tipo de tática, uma mensagem de conforto: seu político de estimação também usa narrativas. A isso chamamos de política.