Hoje acordei sem vontade de ler o jornal. Ocorreu-me que é a exata mesma sensação que tenho quando meu time perde uma final de campeonato. No dia seguinte, quero passar longe da seção de esportes. Ler para quê? Para reviver os detalhes de uma experiência dolorosa? Para saber dos detalhes de uma comemoração que deveria ser a minha? Não, obrigado.
A comparação do julgamento de ontem com os 3 x 2 da derrota para a Itália na Cooa de 82 foi a primeira que me veio à mente para traduzir o que estava sentindo no momento. Hoje, depois de uma noite de sono, consigo elaborar um pouco mais.
O ser humano é um misto de razão e emoção. Por mais que tentemos separar essas duas dimensões, elas estão imbricadas de tal maneira que, mesmo quando achamos que nossos julgamentos e decisões foram absolutamente racionais, as emoções estão lá, escondidas, atuando.
Dei-me conta dessa verdade tão simples analisando minhas sensações ontem e hoje. Não é racional. Ou melhor, não é só racional. A paixão por um time não tem explicação racional. Do mesmo modo as paixões políticas, por mais que tentemos dar uma roupagem racional às nossas crenças. Se fosse algo absolutamente racional, e se as emoções não tivessem papel nenhum em nossas escolhas políticas, chegaríamos todos, racionalmente, a uma só conclusão: a melhor. Mas aí não seria o planeta Terra, mas Vulcano, o planeta de Mr. Spock.
Mr. Spock é tripulante da USS Enterprise, na famosa série e filmes da franquia Star Treck. Os habitantes de Vulcano não têm emoções, só razão. Nesse mundo, o bem e o mal, o certo e o errado são definidos de maneira rigorosa, sem possibilidade de erro, a não ser a limitação própria da mente humana, quer dizer, vulcânica, que não consegue ver todos os aspectos de uma determinada questão. Em nosso planeta não é assim. As definições de bem e mal, certo e errado, estão sempre envoltas em uma capa espessa de emoções. Ou, para fazer um paralelo melhor com a psique humana, o nosso invólucro racional esconde um núcleo quente de emoções. Procuramos o tempo inteiro racionalizar as nossas escolhas, que já foram feitas a priori pelo nosso núcleo emocional.
Se para a escolha do time isso parece absolutamente claro (afinal, ninguém tem a pretensão de dizer que o seu time é o “certo”, a não ser o Santos, que está acima de qualquer discussão possível), para as escolhas políticas o papel das emoções é muitas vezes subestimado. As nossas escolhas nos parecem tão claras – racionalmente falando – que não nos damos conta que estamos, na verdade, torcendo para um time.
Bem, todo esse longo preâmbulo serve para colocar o problema: existe juiz absolutamente imparcial? A deusa grega Têmis aparece vendada em frente ao STF, simbolizando a imparcialidade que a justiça deve perseguir, resultando na balança equilibrada que a deusa carrega em uma de suas mãos. O problema, como víamos, é que a parcialidade não reside nos olhos, mas no coração: são as emoções que nos levam a fazer pender a balança para um dos lados, mesmo sem percebermos. Quem assistiu ao julgamento de ontem, me diz se os impropérios de Gilmar Mendes têm algo a ver com defesa racional da justiça. Gilmar foi a encarnação do juiz dominado por suas emoções, a própria definição de parcialidade.
Moro tem uma certa aura de Mr. Spock. Seus interrogatórios, principalmente o de Lula, me fizeram lembrar alguns episódios de Star Treck, em que o vulcano Mr. Spock paira soberano sobre a balbúrdia causada pelas emoções humanas. Mas Moro é humano, e certamente tem suas preferências políticas. Essas preferências, no entanto, deveriam permanecer ocultas, justamente para evitar a associação com uma decisão que deveria ser racional. Ao aceitar um cargo no ministério de Bolsonaro, Moro fez o movimento que expôs o seu núcleo emotivo de anti-petismo. Ainda que a sua suspeição provavelmente seria declarada com base nas gravações rackeadas, o movimento de 2018 ajudou a compor o quadro.
Mas agora vem o ponto principal: o fato de qualquer juiz, por ser humano, ter as suas paixões, torna inútil qualquer tentativa de se fazer justiça? Claro que a resposta é não. É preciso, para cada caso, procurar um juiz que não esteja emocional ou racionalmente ligado às duas partes em litígio. Mas, em se tratando de um grande líder político como Lula, seria possível encontrar um juiz não envolvido emocionalmente? Talvez um juiz estrangeiro, mas, mesmo assim, a se julgar por várias manifestações de personagens internacionais a favor de Lula, a escolha deveria ser cuidadosa.
A busca pela imparcialidade absoluta torna impossível o julgamento de grandes líderes políticos. Os juízes, em tese, julgam de acordo com as provas produzidas e reunidas nos autos do processo. Mas vimos nesse processo do Lula que não há provas absolutas: ao mesmo tempo que o triplex me parece uma prova irrefutável de sua ligação com a roubalheira da Petrobras, para outros tratou-se de um subterfúgio usado por um juiz parcial. Não é que cada parte tenha uma única ideia da verdade mas a esconda debaixo de suas paixões políticas. É que as paixões políticas levam cada uma das partes a crer que está sendo muito racional ao acolher ou rechaçar as mesmas provas.
O mesmo ocorre com as mensagens hackeadas. A depender do time em que se esteja, a simpatia ou antipatia que causa a figura de Moro ou Lula, as mensagens dizem tudo ou não significam absolutamente nada. Onde está a verdade?Acordei hoje de manhã sem vontade de ler os jornais. E isso me despertou para a possibilidade de estar agindo mais como um torcedor de time de futebol, o time do Moro, do que como um ser humano que se orgulha de basear suas decisões na racionalidade.
O Brasil continua. A Lava-Jato existiu, e isso mudou o Brasil a seu jeito. Desistir do Brasil é permitir que o time adversário ganhe de WO. Perdemos a final do campeonato, mas há várias temporadas adiante. Olha eu torcendo de novo…