A verdadeira liberal

Abaixo vai o trecho final do artigo de Mônica de Boule hoje, no Estadão.

Em primeiro lugar, Mônica não aceita que alguém seja liberal na economia e conservador nos costumes. Ela diz que este não seria o “verdadeiro liberalismo”. Na verdade, Mônica é “ultraortodoxa” em seu liberalismo dos costumes e uma “social-democrata” quando se trata do liberalismo econômico. Nada contra. Só não venha querer dar lições do que seja o “verdadeiro liberalismo”, como se houvesse apenas uma ideologia “correta”.

Mas vamos focar no que me interessa aqui: a tal “primazia dos mercados sobre a sociedade”, espécie de mantra supostamente entoado pelos que a economista pejorativamente chama de “ultraortodoxos”.

Do ponto de vista conceitual, não consigo entender o que significa essa “primazia dos mercados sobre a sociedade”. Essa frase só faria sentido em se considerando uma visão estreita dos “mercados”, que seriam somente as mesas de operações dos bancos e, talvez estendendo um pouco mais o conceito, as gerências das grandes empresas. Não concebo que uma economista com a formação de Mônica de Boule tenha esse entendimento estreito do que sejam os mercados.

Os “mercados” somos todos nós. Toda vez que um indivíduo toma uma decisão de consumo ou de investimento (e não tomar uma decisão também é uma decisão) está movendo os preços da economia. Os operadores do mercado financeiro são apenas isso: operadores, que procuram maximizar os ganhos dos verdadeiros senhores do mercado, os indivíduos e as empresas. Quando dizemos “a bolsa subiu”, é porque subiu o sentimento de confiança de que as empresas gerarão lucro no futuro. Lucro esse, adivinha, que depende dos consumidores, que são, no final do dia, aqueles que decretam o sucesso ou o fracasso das empresas.

Portanto, podemos definir os mercados como a sociedade tomando suas decisões de consumo e investimento. É apenas mais um aspecto da sociedade, uma das muitas formas de ver a sociedade, assim como há muitas formas de ver um ser humano. Dizer que existe uma “primazia dos mercados sobre a sociedade” é colocar os mercados fora da sociedade, como um alienígena que nada tem a ver com nossas vidas. Um agente a mais, que suga os recursos da “sociedade”.

Claro, assim como um indivíduo não se reduz às suas condições materiais, a sociedade não se reduz aos mercados. Isso é coisa de marxistas, para os quais não existe nada além da dimensão material da vida. Para um liberal, os mercados são apenas e tão somente a base material da sociedade. Cuidar para que a sociedade tenha uma base material sólida é condição sine qua non para que consiga desenvolver todas as suas potencialidades. Como diz o ditado, “em casa que falta pão, todo mundo grita e ninguém tem razão”.

Mônica de Boule se esconde atrás desses rótulos (ultraortodoxos, primazia dos mercados sobre a sociedade) para não colocar claramente o que pensa sobre os diversos desafios práticos que qualquer governo precisa enfrentar:

1) Se Mônica fosse presidente da República, de que forma enfrentaria o déficit fiscal? Procuraria ajustar como preconiza o atual e o futuro governo? Ou seria adepta do “déficit é vida” do governo Dilma? Um “verdadeiro liberal” ajustaria ou não as contas públicas?

2) Se Mônica fosse presidente da República, procuraria ajustar o déficit de maneira rápida ou lenta? O futuro governo quer ajustar de maneira rápida. Seria esta uma visão “ultraortodoxa”? Macri tentou um ajuste lento na Argentina e foi parar no colo do FMI. É isso o que preconiza o “verdadeiro liberalismo”? Não seria mais razoável deixar os adjetivos de lado e focar naquilo que importa, no caso, a paciência dos credores?

3) Se Mônica fosse presidente da República, que tipo de reforma de Previdência faria? Uma que colocasse o sistema em equilíbrio atuarial de longo prazo, ou outra, que preservasse os privilégios do funcionalismo público e da classe média? O atual e o futuro governo defendem a primeira hipótese. Isso é “ultraortodoxia”?

4) Se Mônica fosse presidente da República, manteria o Bolsa Família, como preconiza o futuro governo? Essa posição do presidente eleito é a “primazia dos mercados sobre a sociedade”?

5) Se Mônica fosse presidente da República, privatizaria todas as estatais, ou manteria as que têm “valor estratégico”, como defende o presidente eleito? Onde está a “ultraortodoxia”? De que lado Mônica está neste quesito?

6) Se Mônica fosse presidente da República, defenderia que uma carga tributária de 37% do PIB é razoável? É esse o tamanho do Estado que um “verdadeiro liberal” preconiza? Ou seria ainda maior, para que “a sociedade tenha primazia sobre os mercados”?

7) Se Mônica fosse presidente da República, estaria satisfeita com o atual sistema tributário? Ou procuraria simplifica-lo, como defende o “ultraortodoxo” ministro da Fazenda do presidente eleito?

Enfim, poderíamos continuar indefinidamente. Adoraria ler um artigo onde Mônica de Boule e outros economistas “verdadeiramente liberais” descrevessem suas soluções para os problemas práticos de qualquer governo, ao invés de simplesmente enfileirar adjetivos e frases de efeitos sem sentido, só para marcar uma posição. Seria muito mais útil para a sociedade que tanto dizem defender.

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