As máscaras como símbolo político

Escrevo este post inspirado em um artigo de Alexander Nazaryan, jornalista do Yahoo!News, Why the mask culture wars may never end.

O autor começa o artigo contrapondo dois exemplos de restaurantes nos EUA. O primeiro, em Mendocino, California, avisa que usar máscaras dentro do salão acarretará uma taxa adicional de 5 dólares. O segundo, em Washington D.C., avisa que, sem máscara, não será servido hummus.

As máscaras, mais que uma questão de saúde pública, se transformaram em uma questão política. Antes de avançar, permitam-me uma pequena digressão.

Entre 2009 e 2014, viajei a trabalho ao Japão uma vez por ano. Uma das muitas coisas que me chamaram a atenção era o fato de alguns usarem máscaras ao andarem na rua ou em transporte público.

Estas fotos foram tiradas por mim mesmo. Não era a maioria, mas também não era difícil encontrar crianças, jovens e adultos usando máscara. Perguntei aos meus anfitriões o porquê daquilo. A resposta foi meio óbvia: ou porque estavam ligeiramente resfriados e não queriam passar a doença adiante, ou porque tinham receio de pegar doenças pelo ar e queriam se proteger.

As máscaras eram, então, uma forma de profilaxia. Só isso. Em um país que sofreu muito com a epidemia de SARS em 2003, aquele comportamento era natural. Tratava-se apenas de uma decisão relacionada com a saúde própria e de terceiros. Não havia conotação política.

Como um simples pedaço de pano no rosto se transformou no símbolo maior da verdadeira guerra cultural que se instalou no Ocidente?

O início de tudo

No início, não eram as máscaras. Ou melhor, máscaras não eram recomendadas, a não ser para os profissionais de saúde e pessoas infectadas. Por exemplo, na edição de 06/03/2020 do Estadão, podíamos ler a seguinte orientação:

Isso não impediu, no entanto, que o próprio presidente Bolsonaro aparecesse de máscara em live no dia 13/03/2020, ao lado do então ministro da saúde, Luiz Henrique Mandetta.

Ou seja, apesar de não ter caráter obrigatório, o presidente foi garoto-propaganda do uso da máscara no início da pandemia.

No dia 15/03/2020, Bolsonaro foi a uma manifestação em seu apoio.

Observe que as críticas da imprensa e dos infectologistas se restringiram à falta de isolamento social. Não há menção à falta de máscaras, nem do presidente e nem dos manifestantes, em uma evidência de que este não era um problema àquela altura.

Em foto do dia 08/04/2020, vemos pessoas em transporte público de São Paulo sem máscaras. Este fato não é citado na reportagem. Ainda não era um problema.

Na posse do novo ministro da saúde, Nelson Teich, em 17/04/2020, nem sinal de máscaras, mesmo por parte do novo ministro. Não houve críticas a este fato nas reportagens da época.

Em 19/04/2020, nova manifestação com a participação do presidente. Existe menção à aglomeração e à tosse de Bolsonaro, mas ainda não à falta de máscaras.

Essa não-orientação pelo uso de máscaras não foi exclusividade brasileira. Pelo contrário. A própria OMS, no início, recomendava o uso de máscaras apenas em situações muito específicas. Era o que podíamos ler em seu site em 18/03/2020:

• Se você for saudável, só precisará usar máscara se estiver cuidando de uma pessoa com suspeita de infecção por nCoV 2019.

• Use uma máscara se estiver tossindo ou espirrando.

• As máscaras são eficazes apenas quando usadas em combinação com a limpeza frequente das mãos com produto à base de álcool ou sabão e água.

• Se você usar máscara, deve saber como usá-la e descartá-la de maneira adequada.

Foi apenas no início de abril que o C.D.C – Centers for Disease Control e Prevention, dos EUA, mudou a sua orientação e recomendou o uso de máscaras. Em sua página, as orientações começavam com a seguinte frase: “Quando você usa uma máscara, você protege outros assim como você mesmo. Máscaras funcionam melhor quando todo mundo usa uma”.

Mas esta reportagem do New York Times mostra uma Casa Branca dividida. No mesmo dia em Anthony Fauci, o todo poderoso diretor do U.S. National Institute of Allergy and Infectious Diseases e chefe do conselho médico de apoio à presidência, recomendou o uso de máscaras, o presidente Donald Trump veio a público dizer que aquela se tratava de uma orientação, não uma obrigação, e que ele mesmo não usaria. Talvez possamos estabelecer aqui o marco zero da politização do uso das máscaras.

De início, essa polêmica tinha, de fato, embasamento científico. Lembrando que a própria OMS não havia mudado a sua orientação (isso aconteceria somente em junho), a Dra. Deborah Birx, chefe da equipe médica da Casa Branca, afirmou, em uma coletiva de imprensa, que tinha receio que, se as pessoas usassem máscaras, poderiam se sentir à vontade para aglomerar, o que poderia ser ainda pior. Aliás, na foto desse coletiva de imprensa no início de abril, tanto ela quanto o Dr. Fauci não estão usando máscaras.

Trump justificou sua negativa em usar máscara pelo relacionamento que tinha com chefes de estado, o que mostra que as máscaras, naquela altura, ainda eram vistas com certa estranheza. A reportagem do NYT chama a atenção para este ponto: o cidadão ocidental não está acostumado a esconder o rosto, é algo estranho à sua cultura.

No Brasil, somente em 03/05/2020, em cobertura de nova manifestação em apoio ao presidente, há, pela primeira vez, alguma menção à ausência de máscaras na reportagem do Estadão.

Começava a batalha. Não a batalha da saúde, mas a batalha política.

Máscaras e política

Por que as máscaras são o símbolo maior dessa batalha política? Porque é visível. Ninguém vê se você pegou ou não pegou Covid, se você tomou ou não cloroquina, se você tomou ou não a vacina. Esses atos são, digamos, declaratórios. Máscaras, não. Máscaras são visíveis. Todo mundo vê se você está usando ou não.

As máscaras passaram a ser muito mais do que uma proteção. Para os que defendem a sua adoção, as máscaras se tornaram um sinal público de virtude. Quem usa máscara dá valor à vida, pensa no seu semelhante. Por outro lado, quem não a usa, é um egoísta que despreza a vida do seu semelhante.

Por outro lado, os que são contra o uso das máscaras encaram os que usam como covardes, que abrem mão de sua liberdade em nome de uma política inútil, imposta, em última análise, para manter a população sob controle. Trata-se, a exemplo do sinal externo de virtude citado antes, também de uma demonstração de superioridade moral. Ainda em março de 2020, publiquei em meu perfil no FB a seguinte imagem que, na época, não passava de uma piada, mas que depois foi ficando mais séria:

Está aí o símbolo de virilidade, o mesmo usado várias vezes pelo presidente, quando, por exemplo, chamou de “maricas” todos os que se protegiam de alguma forma da doença. Além disso, o uso de máscaras poderia causar mais mal do que bem à saúde, segundo algumas teorias que circularam por aí, como a do post abaixo.

Então, temos de um lado os que fazem da máscara um símbolo de virtude. E, do outro lado, os que fazem da falta da máscara também um símbolo de virtude. São virtudes diferentes, sem dúvida, mas ambas símbolo de superioridade moral. Quando chegamos neste ponto, a verdade, como em todas as guerras, é a primeira vítima.

Ciência

A ciência é sempre invocada como o árbitro imparcial das questões envolvendo a Covid-19. Como instância não engajada politicamente, a ciência teria o poder de trazer racionalidade à discussão sobre as máscaras (e, de resto, a todas as questões envolvendo a Covid-19). A má notícia é que a ciência não tem o conhecimento divino da realidade das coisas, aquele conhecimento definitivo, que apreende a realidade de uma só vez e de maneira definitiva. A ciência é uma construção humana, em sua constante luta por compreender a realidade à sua volta, com base em uma metodologia amplamente aceita, chamada de método científico. Se compreendida desta forma, a ciência é essa criação humana que nos tirou da idade da pedra para onde hoje estamos.

No entanto, quando a ciência é encarada como um oráculo infalível, assumindo o lugar da onisciência divina, passa a ser utilizada como instrumento político pelos dois lados da disputa. De um lado, a palavra definitiva sobre o que deve e o que não deve ser feito. De outro, a exploração da desmoralização de orientações antes tomadas como absolutas.

Por exemplo, recentemente se chegou à conclusão de que o vírus se transmite preponderantemente pelo ar, sendo muito remota a possibilidade de transmissão por tocar em superfícies (veja, por exemplo, esta reportagem da Economist). Pouco se falou sobre isso, mas este achado nos deixa em posição ligeiramente ridícula quando nos lembramos do “teatro da higiene” do início da pandemia, em que alguns de nós chegamos a lavar todas as compras de supermercado com álcool gel. A questão das máscaras é típica: a mudança de orientação é até hoje lembrada como uma “desmoralização da ciência”.

Além disso, os cientistas, assim como os economistas, também têm lado. As conclusões científicas a respeito da Covid-19, uma doença nova, são bem menos definitivas do que nos querem fazer crer cientistas que pontificam verdades absolutas. Sem querer, trabalham contra a causa que defendem, pois novas descobertas desmoralizam aquelas verdades que não eram mais do que provisórias.

Enfim, a ciência, como qualquer outra criação humana, trabalha a serviço da política, não o contrário. Não que não exista conhecimento científico e tudo seja não mais que narrativa. Longe disso. O problema é usar a ciência como narrativa, um vício que acaba se voltando contra a própria atividade científica.

O futuro das máscaras

No dia 13/05, o C.D.C. chocou o mundo ao recomendar que todos os que já tivessem tomado a vacina não precisariam mais utilizar máscaras. Depois de um ano e meio de terror, sair de casa sem máscara é quase como exibir-se somente com roupas de baixo. Houve contestações por vários epidemiologistas. Mas o C.D.C., em tese, se guia pela ciência, o que só demonstra a ambiguidade de toda essa situação.

O fato é que máscaras passaram a ser um símbolo político. Nos países do oriente, o uso de máscaras segue a lógica da doença: evitá-la e evitar passar para outros. No ocidente, no entanto, as máscaras serão a lembrança de uma batalha política que dividiu os cidadãos em dois campos irreconciliáveis.

Depois que tudo isso passar, seremos capazes de usar máscaras quando estivermos com uma gripe? Não fazíamos isto antes, faremos agora? Ou serão as máscaras a lembrança do pior pesadelo coletivo pelo qual passou a nossa geração, de modo que o seu uso será como que um tabu? E pior: o uso da máscara (ou o seu não uso, em caso de doença) não será considerado uma espécie de desafio ao campo político adversário?

São questões em aberto. Será interessante observar como se desenvolverá esse fenômeno sociológico.

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