A política do crime

Carlos Alberto Sardenberg, mais uma vez dando show em sua coluna nO Globo (A política do crime).

“Sigo na análise de algumas teses político-jurídicas supostamente articuladas para conter também supostos “excessos da Lava-Jato”.

Na semana passada, tratei de “criminalização da política” — a tese segundo a qual a Lava-Jato criminaliza toda a atividade política e todos os políticos. Argumentei: a força-tarefa não pega políticos, pega políticos ladrões. Outra tese criticada foi a da “criminalização da atividade empresarial”. Mesma lógica. A Lava-Jato não apanha empresários, apanha empresários envolvidos em corrupção.

Nesta coluna, examino outra tese — “ cerceamento do direito de defesa ”. Aqui aparecem, de novo, os garantistas. Argumentam que os métodos de investigação, acusação e julgamento da Lava-Jato impedem a ação efetiva dos advogados de defesa. Ou, de outro modo, não garantem o direito dos réus de um julgamento, digamos, justo.

Foi a defesa de Lula que começou com isso logo no primeiro processo do ex-presidente em Curitiba, referente ao tríplex do Guarujá — e a tese se generalizou na medida em que a operação apanhou membros de todos os partidos. O que era uma operação contra Lula tornou-se, nessa visão, uma operação contra os políticos.

Mas, tomando como exemplo o caso do tríplex, nenhuma prova solicitada pela defesa foi recusada pelo então juiz Sergio Moro. Ele também topou ouvir nada menos que 86 testemunhas, quando o normal seriam apenas oito.

Na verdade, neste caso como em outros, os garantistas (advogados, juízes e juristas) se incomodam com a celeridade dos processos em Curitiba.

O que leva a outra questão: onde há celeridade, os garantistas dizem haver um atropelo das normas e práticas do direito, ou um tipo de “ ofensa à ordem jurídica ” — outra tese muito utilizada.

Observem os fatos, porém. Em cinco anos, a Lava-Jato instaurou 2.476 procedimentos, tudo aí incluído: mandados de busca e apreensão, condução coercitiva, prisões preventivas, temporárias e em flagrante. Parece muito e é muito, se os números forem comparados com a lentidão conhecida da Justiça brasileira. Entretanto, apenas 438 pessoas foram acusadas, sendo 159 condenadas até o momento, em Curitiba.

Pode-se dizer que se trata de uma “sanha acusatória”? Na Itália, a operação Mãos Limpas levou à cadeia nada menos que 3.292 pessoas, incluindo políticos, governantes de alto nível, elite empresarial.

A reação dos ofendidos demorou para tomar força na Itália, mas acabou triunfando. Acabaram com a operação.

Aqui, a reação das elites apanhadas ou ameaçadas começou bem antes. E está em progresso.

O último movimento nessa direção foi a decisão da Segunda Turma do STF, que anulou a condenação de Aldemir Bendine alegando uma formalidade inédita.

A Turma entendeu que a defesa do réu Bendine deveria ser a última a ser ouvida, depois dos réus delatores. O juiz Moro havia decidido que a defesa de todos os réus tinha o mesmo prazo para as alegações finais. Argumentara que não havia nada na lei mandando separar os réus, delatores ou não.

Essa era a tese aceita até então. A decisão da Segunda Turma foi uma surpresa — e uma decisão que faz a festa dos chamados garantistas.

Digamos que a defesa dos réus delatores, perdendo a última palavra, também se dirija ao STF, alegando que está sendo prejudicada pois a defesa sempre fala por último.

Pronto, isso vai ao infinito, esquecem-se as provas, os testemunhos, anula-se o processo por uma disputa formal.

Elites políticas e jurídicas dizem que houve uma conspiração não republicana entre promotores e o juiz Moro, e mais os agentes da Polícia Federal, Receita Federal e Coaf, tudo isso cerceando a defesa e poluindo o processo.

Mas seria o senador Flávio Bolsonaro um “garantista” revoltado com a ação do velho Coaf, que compartilhava informações com Receita, Ministério Público e Polícia Federal sem autorização judicial expressa? Ou estaria incomodado com o fato específico de um assessor seu, o Queiroz, ter sido apanhado?

Seguidas decisões de juízes do STF dificultando investigações envolvendo políticos, empresários e agentes públicos seriam apenas uma opção doutrinária?

Mais parece a politização do crime.”

Generalização

Gilmar Mendes,: “O que se viu foi a generalização dessa prática”.

Que sentido tem essa frase? Será que a prisão após condenação em 2a instância havia sido permitida pelo STF como exceção, e Gilmar Mendes lamenta que tenha se tornado regra?

Cabe lembrar que Gilmar era um dos mais vocais defensores da prisão após a 2a instância. Virou garantista após a Lava-Jato.

É preciso mobilizar-se desde já

Esse troço vai voltar a ser discutido em abril. A mobilização precisa ser muito forte, porque a bandidagem não dorme no ponto.

Da página de Rafael Rosset


Nos EUA e Reino Unido, você pode ser preso após ser condenado por UM juiz.

Na França, Alemanha e Holanda, você pode ser preso após ser condenado por QUATRO juízes, um de primeira instância e mais três de uma corte de apelação. Na Holanda e na França se exige o trânsito em julgado, mas a Suprema Corte não atua como revisora criminal das instâncias inferiores, o que significa que o trânsito em julgado ocorre logo após a decisão do tribunal de apelação (segunda instância). Na Alemanha também se exige o trânsito em julgado, mas além de a Suprema Corte não ser revisora criminal, crimes graves, como os dolosos contra a vida, já começam a tramitar nos tribunais de apelação.

No Brasil, a prevalecer o entendimento de Marco Aurélio Mello, salvo os casos de prisão preventiva, qualquer criminoso só poderá ser preso após ser condenado por QUATORZE juízes: um de primeira instância, três de alguma corte de apelação, cinco de alguma das seis turmas do STJ e mais cinco de alguma das duas turmas do STF. Isso é o mínimo: um advogado habilidoso pode manejar recursos que forçarão uma manifestação dos órgãos especiais ou dos plenários de cada tribunal, como embargos infringentes e agravos internos e regimentais. O órgão especial do Tribunal de Justiça de São Paulo é composto por 25 desembargadores; o órgão especial do STJ é composto por 15 ministros, e o pleno do STF por 11, logo, no limite, alguém bem assessorado pode exigir que seu cliente só seja preso após os pareceres de CINQUENTA E CINCO magistrados.

Cerca de 18% das sentenças condenatórias proferidas por juízes de primeira instância são revertidas em absolvição nos tribunais de apelação (ou seja, menos de 1 em cada 5 réus condenados na primeira instância são absolvidos na segunda). Daí a importância do duplo grau de jurisdição. No STJ esse percentual cai pra 0,62%. Ou seja, uma sentença condenatória revisada por um tribunal de apelação estará certa em 99,38% dos casos. A se condicionar o encarceramento ao trânsito em julgado, o Estado terá permitido, em 99,38% dos casos, que um criminoso permaneça convivendo normalmente em sociedade, lado a lado com a sua família.

Em NENHUM país do mundo se espera que a Suprema Corte tenha a palavra final sobre a privação de liberdade de um criminoso condenado nos tribunais de apelação. A Suprema Corte dos EUA, por exemplo, é menor que a brasileira (são apenas 9 juízes), e se tivessem que ter a palavra final sobre o encarceramento de cada um dos 2,3 milhões de detentos daquele país, é altamente provável que quase nenhum criminoso viesse a sofrer pena, uma vez que seus processos demorariam anos até serem revisados por algum magistrado superior.

A única coisa que interessa aos partidários da prisão somente após o trânsito em julgado é a impunidade. Vão esconder isso atrás de termos técnicos e atraentes como “garantismo penal”, mas no fundo só o que essa gente deseja ardentemente é bandido na rua.

A necessária mobilização da cidadania

Não vamos esquecer: essa decisão monocrática de hoje é apenas a preliminar da discussão do plenário sobre prisão após condenação em 2a instância, que deverá ocorrer em abril.

Se a cidadania não se mobilizar até lá, a corja toda vai ser solta pelo plenário do STF.

O paraíso do crime

Cena 1: Bernard Madoff, ex-presidente da NASDAQ, era o gestor de um dos mais badalados fundos de investimento nos EUA, que produzia retornos bastante interessantes sem volatilidade alguma. Ou seja, uma espécie de mágica. Descobriu-se que era tudo falso, desde a contabilidade até os relatórios, e não se tratava de nada mais do que uma gigantesca pirâmide, no valor de 50 bilhões de dólares. O esquema foi descoberto, e no dia 11 de dezembro de 2008 Madoff foi preso em Nova York, tendo confessado o seu crime em 11 de março de 2009. Seu julgamento ocorreu em 28 de junho de 2009, e o fraudador foi condenado a 150 anos de prisão. Sem direito a recurso.

Cena 2: Pimenta Neves, à época jornalista do O Estado de São Paulo, assassina a também jornalista Sandra Gomide no dia 20 de agosto de 2000. Em 24 de agosto do mesmo ano, o jornalista confessa o crime. Depois de várias condenações e recursos, o STF condena Pimenta Neves no dia 23 de maio de 2011 a 15 anos de prisão.

A tabela abaixo resume tudo.

Recordei-me destes dois casos ontem, quando se discutia o indulto do presidente Temer. A justiça no Brasil é lenta e está cheia de fissuras bem aproveitadas por advogados regiamente pagos. Ano que vem a prisão em 2a instância será novamente discutida e mais uma fissura será aberta. E quando tudo o mais der errado, um indulto sempre pode resolver a questão.

O crescimento econômico não é apenas uma questão de políticas econômicas corretas. Os países que “dão certo” têm instituições que funcionam, sendo que a justiça para todos não é a menor delas. Se o crime compensa, por que respeitar as regras?

O Brasil é o paraíso dos criminosos que podem pagar bons advogados. A Lava-Jato foi apenas um breve interregno, em que sonhamos tornar o Brasil um país onde o crime não compensa. Moro é o ministro da Justiça, mas tem contra si todo um aparato formado por uma casta intocável. A luta é titânica para libertar o Brasil das corporações que o sequestraram. Não estou otimista hoje.

Mudaram por que?

Não só Dias Toffoli, mas também Gilmar Mendes “refletiram melhor” e agora defendem a execução penal após o julgamento do STJ (3a instância).

De todos os posicionamentos no STF, este é o mais cínico, pela conveniente mudança de posicionamento em um assunto que é, por si, arbitrário.

Celso de Mello, pelo menos, é fiel a um princípio: o trânsito em julgado. Saiu do trânsito em julgado, qualquer outro posicionamento é arbitrário. Por que 3a instância e não 2a? Por que 2a instância e não 1a? A prisão após a 2a instância é tão legítima quanto após a 1a ou a 3a. A diferença está somente no grau de convicção da justiça com relação àquele crime. Como ensina Tofolli, nas duas primeiras estabelecem-se os fatos, e nas duas outras averiguam-se questões de legalidade, se o processo em si não teve nenhuma ilegalidade. Ou seja, a culpa já está estabelecida após a 2a instância, o que o STJ faz é apenas julgar se aquela culpa foi provada de maneira legal. Se não tiver sido, o processo é anulado, mas o culpado não deixa de ter cometido o crime. Por isso, parece razoável colocar o início da execução da pena após condenação em 2a instância, posição desde sempre de Gilmar Mendes e Dias Tofolli.

Por que mudaram? Mudaram porque?