A Economia Brasileira na Era PT: Teaser da 2a Temporada

2a temporada: tente mais forte

“A história se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda, como farsa” (Karl Marx)

A julgar pelo recém-publicado Programa de Governo do PT, estamos caminhando para uma 2ª temporada sem muitas novidades em relação à primeira.

Comecemos com as menções à “reindustrialização” do país, que está citada nos itens 15 e 61-63.

Note como são as mesmas velhas promessas grandiosas de novos tempos para a indústria nacional, com base em incentivos governamentais dirigidos a setores e empresas escolhidas e com direito até à “redução do custo do crédito” (oi, BNDES, é você?). Já vimos, na 1ª temporada, como políticas desse tipo sugam recursos públicos sem efeitos tanto no crescimento econômico quanto na “reindustrialização” do país. Mas, quem sabe, se tentarmos mais forte…

Claro que, neste plano, não poderiam faltar os bancos públicos:

Já vimos onde vai dar a oferta de crédito para o fomento do desenvolvimento econômico… E, claro, não poderia faltar o uso dos bancos públicos para livrar os endividados de seus tormentos:

E por falar em “ajudar o povo”, não poderiam faltar as “bondades sociais”, como a valorização do salário mínimo, programas grandiosos de construção de casas e uma “nova Previdência”.

Este item 17 é muito importante, e como que simboliza um modo de pensar a economia. A sustentabilidade da previdência se dará pela inclusão de mais pessoas no sistema, o que permitiria sustentar aumentos reais dos benefícios vinculados ao salário mínimo (item 16) e a “superação da medidas regressivas”, o que, supõe-se, significa voltar aos antigos critérios de concessão de aposentadoria. Isso é o que chamo de “visão piramidal” da realidade. Segundo essa visão, é possível sustentar benefícios acima da capacidade do sistema colocando mais gente para dentro. Isso, na heróica hipótese de que a economia vai crescer muito com as empresas tendo que bancar o recolhimento do INSS de uma galera que precisa ser registrada para entrar no sistema.

O problema desse tipo de esquema é que, um dia, as pessoas acabam. Estamos envelhecendo, então, em um futuro não muito distante, mesmo com a economia bombando, serão menos pessoas entrando no sistema, para sustentar cada vez mais gente se aposentando. É quando a pirâmide desmorona. No caso da economia a lá PT, nem precisa esperar o futuro. A pirâmide desmorona antes, como vimos no governo Dilma.

Sigamos para o coração da proposta econômica do PT, as políticas fiscal e de combate à inflação. Comecemos pelo fiscal.

Já tive oportunidade de escrever, em outra ocasião, que o PT está certo neste ponto: o atual arcabouço fiscal perdeu sua credibilidade. O problema, no entanto, é o que colocar no lugar. A julgar pelo que vai escrito acima, há muitas boas intenções, mas pouca ideia do que fazer. A atual regra do teto, se implementada, já é anticíclica, uma vez que permite o crescimento das despesas (pela inflação) mesmo quando a economia entra em recessão. O que o governo do PT quer, na verdade, é ter espaço para gastar mesmo com o país crescendo. Por que já vimos que o “anticíclico” serve só quando a atividade econômica se desacelera, não o oposto.

Como nota cômica involuntária, temos a promessa de “acompanhamento da relação custo-benefício das políticas públicas”. Como se o PT, alguma vez em sua longa estadia no Palácio do Planalto, tivesse avaliado alguma política pública sequer. Todas foram muito certas e efetivas.

Mas é no combate à inflação que podemos observar o PT em plena forma:

De fato, considerando que a política monetária (juros determinados pelo BC) deixará de ter efeito com o desastre fiscal prometido pelo programa do PT, só restará a cartilha petista do “controle de preços”: manipulação de tarifas públicas através das estatais, estoques reguladores, intervenção no câmbio. A nossa vizinha ao sul implementa todas essas políticas, e acabou de ultrapassar 60% de inflação anual. Mas, quem sabe se tentarmos mais forte aqui, funcione.

E outra nota cômica involuntária: a promessa de “abrasileirar” os preços dos combustíveis (ou seja, praticar preços abaixo da paridade internacional) e, ao mesmo tempo, investir em refinarias. Com que dinheiro? Se os preços são “abrasileirados”, a capacidade de investimento da empresa fica limitada. A própria expressão “os ganhos do pré-sal não podem se esvair” é uma contradição em termos com o restante do programa, que propõe justamente rasgar o dinheiro produzido às duras penas pela exploração do pré-sal.

Por fim, como cereja do bolo, não podia faltar a defesa das estatais e do papel indutor do Estado:

Na 2ª temporada, veremos a Petrobras novamente sendo usada para construir refinarias inviáveis economicamente, subsidiando combustíveis e “induzindo” a “reindustrialização” brasileira. Sim, tentaremos mais forte.

Este teaser termina com um item que constava do rascunho do programa, mas que foi retirado da versão final.

Na verdade, a menção ao pré-sal continua no item 77 do documento final, que defende que “o fundo social do pré-sal deve estar, novamente, a serviço do futuro”. Gosto desse item da forma como estava no rascunho, pois traduz, como nenhum outro, a forma de pensar do PT.

Para o pensamento utópico dos economistas do partido, o pré-sal é uma espécie de loteria, em que o dinheiro vai jorrar para atender todas as necessidades sociais dos brasileiros e, de quebra, financiar o crescimento econômico e a transição energética. Essa espécie de pensamento mágico desconsidera a dificuldade inerente a qualquer atividade econômica. É preciso investir de maneira eficiente para explorar e comercializar o petróleo. Caso contrário, como vimos no episódio 5, ele permanecerá debaixo da terra. Passaram-se já 15 anos desde a descoberta dessas reservas, e continuamos mal e porcamente produzindo petróleo suficiente apenas para nossas necessidades de consumo domésticas. O saldo para exportar e formar o tal “fundo social”, ainda não existe. E, com a forma de administrar do PT, provavelmente nunca existirá.

Mas, ao que tudo indica, teremos a 2a temporada para comprovar a hipótese. Tentaremos mais forte.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A economia brasileira na era PT. Episódio 8: Uma alegoria da era PT.

Vimos, ao longo dos episódios anteriores, que o governo do PT provocou uma verdadeira destruição de riqueza com suas políticas sempre bem-intencionadas, mas erradas conceitualmente ou simplesmente terrivelmente mal executadas. É difícil resumir tudo, são muitas facetas diferentes. Mas, para escolher um episódio final, um que represente o conjunto da obra, lembrei-me de um post antigo, em que comento a saga do Teleférico do Alemão. O post teve como base reportagem do Estadão de abril de 2021. Este é, em minha opinião, o extrato concentrado do que significou o governo do PT para a economia brasileira. O post vai reproduzido abaixo.

Teleférico do Alemão: Uma alegoria do governo do PT

Existem símbolos que retratam uma era. Também existem símbolos que retratam as consequências de um certo tipo de mentalidade. Quando um símbolo representa as duas coisas, estamos diante de algo poderoso.

O teleférico do Alemão vai completar 11 anos em julho. Está fechado, no entanto, desde o fim das Olimpíadas do Rio. Há 6 anos, portanto.

A obra era a face social do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, um conjunto de investimentos públicos empacotado em uma campanha de marketing. O Brasil estava na crista da onda, o dinheiro abundava e gastávamos como se não houvesse amanhã. Dilma foi eleita em 2010 como a mãe do PAC.

Em seu discurso de inauguração, Dilma lembrou de seu padrinho e se emocionou. Disse que Lula pensou em tudo aquilo com muito amor e carinho. Era a época do Estado-Mãe, que não fica preso a planilhas de despesas, e investe o que for preciso para tornarem todos felizes.

Todos felizes. Inclusive os que usaram a obra para cobrar faturas de serviços prestados, como a Odebrecht, que foi, coincidentemente, a empreiteira contratada. Dos que aparecem na foto de dezembro de 2010, quando Lula visita a obra, somente o atual prefeito do Rio, Eduardo Paes, não foi preso.

Mas esse é o detalhe menos importante dessa história. O ponto relevante aqui é o gasto de recursos públicos em obras inviáveis economicamente. No caso, R$ 210 milhões em dinheiro de 2011. Inviável porque qualquer obra de infraestrutura necessita de manutenção. Não adianta só construir e inaugurar. É preciso prever a manutenção. Caso contrário, a deterioração vai levar inexoravelmente ao sucateamento. Essa é a realidade, por mais amor e carinho que se possa colocar em uma obra.

O financiamento da manutenção pode ocorrer basicamente de três formas: governo, usuários e patrocínio. O transporte público nas grandes cidades por exemplo, é financiado por um mix de governo (subsídios) e usuários. No caso do teleférico, o governo pagava tudo. Só que o dinheiro acabou.

Quer dizer, o dinheiro não acabou. Na verdade, o dinheiro nunca existiu. Sacamos adiantado o dinheiro do pré-sal e de um crescimento econômico que achávamos eterno. Contratamos gastos que se tornaram direitos perpétuos, como o aumento da folha do funcionalismo e suas respectivas aposentadorias. Quando o dinheiro que era para estar ali não estava, acabou sobrando para o teleférico. Este é o símbolo de uma era.

Mas o teleférico do Alemão é também o símbolo de uma mentalidade. A viagem era “de graça” para os moradores.

Papai Lula e Mamãe Dilma deram de presente o Teleférico para os seus filhos necessitados. No entanto, sabemos que não existe nada de graça. O projeto do teleférico deveria ter sido precedido de um estudo de viabilidade econômica: qual deveria ser o preço da passagem para viabilizar a sua manutenção? Pergunta básica, mas que certamente não foi feita na festa do PAC. Isso é coisa de quem não tem amor e carinho e se prende a planilhas.

Nada contra a que o Estado financie 100% da obra e da sua posterior manutenção. Desde que haja uma previsão orçamentária que impeça a descontinuidade do serviço. Imagine, por exemplo, parar o sistema de ônibus de uma cidade porque “acabou o dinheiro”. Quando isso acontece, se aumenta o preço da passagem de ônibus e ponto final.

A reportagem diz que a lotação que faz o mesmo percurso cobra R$3.

Será que, com esse preço, o teleférico é viável economicamente? Se não for, o governo poderia subsidiar o restante? Essas perguntas são básicas, mas faz 6 anos que o teleférico “de graça” está parado. Está tudo certo: os moradores não pagam e também não recebem o serviço.


Aqui terminava o post. Em março deste ano, reportagem do Globo informava que o teleférico será revitalizado. Serão dois anos de obras e R$ 170 milhões investidos. Lembrando que foram R$ 210 milhões investidos em 2011, o que significa mais ou menos R$ 420 milhões em dinheiro de hoje. Ou seja, serão investidos o equivalente a 40% do que foi gasto lá atrás para reconstruir o sistema. Depois perguntam em qual ralo se esvai o dinheiro público…


Termino esta série com um trecho da entrevista do ex-banqueiro central dos EUA, Paul Volcker, publicada alguns dias depois de termos recebido o grau de investimento por parte da S&P, em maio de 2008.

Sua fé nos brasileiros é comovente e exemplar. Uma pena que os anos seguintes tenham contrariado de maneira tão espetacular a sua expectativa. Catorze anos depois da entrevista de Paul Volcker, ainda estamos à procura de “pessoas inteligentes que sabem que precisam ser responsáveis”.  


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A economia brasileira na era PT. Episódio 7: Fact Checking

Neste episódio, examinaremos três políticas sociais do PT, aclamado por todos os bem-pensantes como “o partido que se preocupa com os pobres”. Nesse sentido, Lula não se cansa de dizer que vai recolocar o pobre no orçamento. Vejamos, então, quais foram os reais efeitos do FIES, do Minha Casa Minha Vida (MCMV) e da política de valorização real do salário-mínimo.

FIES

No final do ano passado, nada menos do que 50% dos estudantes que haviam contratado empréstimos pelo FIES estavam inadimplentes, o que significa mais de três meses em atraso com os pagamentos, acumulando uma dívida de R$ 6,7 bilhões. Como chegamos neste ponto?

As informações que serão expostas abaixo foram retiradas de uma auditoria do TCU, que pode ser lida na íntegra aqui, e dos dados do censo do ensino superior, aqui.

O FIES, um programa de financiamento estudantil, foi criado em 1999, no governo FHC. Mas foi em 2010, no apagar das luzes do governo Lula, que o programa sofreu as modificações que o levariam ao estado atual. Com a sua maneira pitoresca de ver a realidade, Lula assim descrevia a sua realização:

Difícil sabe de onde saiu este número de “4 milhões” em 12 anos. Entre 2003 e 2014, entraram 17,7 milhões de alunos no sistema privado de ensino superior, e o FIES concedeu, entre 2009 e 2015, 2,3 milhões de financiamentos. Como o número de financiamentos antes de 2009 é muito pequeno, não chegaremos aos 4 milhões. Muito menos aos 4 milhões “em todo o século 20”. Bem, este é o Lula mistificador que conhecemos. De qualquer forma, o efeito da mudança no Fies pode ser visto na tabela a seguir, retirado do relatório do TCU, e que mostra a evolução do número de financiamentos do FIES:

A questão é saber se funcionou. Será que valeu a pena gastar todo esse dinheiro? Vejamos.

No gráfico abaixo, mostramos o número de matrículas no sistema privado de ensino ao longo dos anos. Em azul o total de matrículas em cada ano (escala da direita) e, em laranja, a diferença de cada ano em relação ao ano anterior (escala da esquerda). Em destaque, os anos em que o governo do PT colocou o pé na tábua no programa.

Observe como o número de matrículas já vinha crescendo de maneira mais ou menos constante desde o final da década de 90, com uma pausa em 2009. Não há realmente nada de especial nos anos em que o FIES cresceu. Segundo os dados do TCU, em 2009 haviam sido concedidos 32,6 mil financiamentos, enquanto em 2014, no auge do programa, foram 732,6 mil financiamentos. Ou seja, exatos 700 mil financiamentos adicionais. Como podemos observar no gráfico acima, de fato, o número de matrículas em 2014 foi o maior da década, mas pode ser comparado a anos como 2001 e 2003, quando o FIES era bem mais tímido.

Colocando em um gráfico o total de matrículas com e sem financiamento, podemos ter uma ideia do que aconteceu:

Podemos observar que, a partir de 2011, o número de ingressantes sem financiamento permanece mais ou menos constante, até recuando em 2013 e 2014. Esse movimento não parece fazer sentido. O número de ingressantes cai em anos de recessão, e não tivemos recessão entre os anos de 2011 e 2013. Portanto, podemos inferir que houve uma espécie de “efeito substituição”: ingressantes que poderiam estar pagando do próprio bolso, optaram por tomar o financiamento. Esse efeito fica evidente entre os anos de 2014 e 2015: apesar de 2015 ter sido um ano de recessão profunda, o número de ingressantes sem financiamento aumenta em relação a 2014, o que não faz nenhum sentido.

De fato, temos relatos de que as próprias empresas educacionais induziram esse movimento. E o motivo é óbvio: melhor o aluno ficar inadimplente com o governo do que com a própria faculdade. O FIES foi uma espécie de transferência de risco de inadimplência da iniciativa privada para o governo. E a conta vamos nós todos pagar agora, com a anistia aos devedores do programa. Como sempre.

A lógica do FIES, em si, não está errada. Trata-se de conceder financiamento para jovens pobres que, uma vez formados e inseridos no mercado de trabalho, poderão pagar a dívida com o seu salário. Faculdades renomadas, como o Insper, usam a mesma lógica: concedem bolsas de estudos que serão, depois, pagas pelos alunos formados em alguns anos. Assim, trata-se de um ganha-ganha-ganha: ganha a faculdade, que consegue aumentar o número de alunos; ganha o aluno, que consegue cursar uma faculdade que, de outra maneira, estaria fora de seu alcance; e ganha o país, que consegue qualificar uma parcela da população mais pobre para a força de trabalho.

Qual, então, a diferença entre as bolsas do Insper e o FIES? O critério. O Insper implementa a sua política de bolsas com critério técnico, de modo a fazer com que o programa se torne perene. O FIES, por outro lado, foi um programa expandido com critérios populistas e eleitorais, com o objetivo de incluir o maior número de pessoas no menor espaço de tempo possível. O resultado foi o voo de galinha característico dos programas patrocinados pelos governos do PT. No final do processo, o TCU, em sua auditoria aponta o uso indiscriminado de “créditos extraordinários” para cobrir os custos do programa. Da mesma forma que vimos em outras frentes, o FIES, em sua fase final, foi sustentado por “pedaladas” orçamentárias. É o que acontece quando critérios populistas substituem critérios técnicos.

Minha Casa, Minha Vida (MCMV)

O MCMV, programa habitacional do governo do PT, a exemplo de outros programas do partido, foi lançado com pompa e circunstância, naquele conhecido estilo “nunca antes na história desse país”.

Ao lado da então ministra da Casa Civil, Dilma Rousseff, Lula anunciou, em 25/03/2009, o objetivo de construir 1 milhão de casas. Mas sem prazo definido.

O programa, em si, era meritório. Afinal, temos um grande déficit habitacional, e subsidiar as prestações da casa própria para os mais pobres parece ser uma forma adequada de distribuição de renda. O problema, como sempre, foi o gigantismo das pretensões, que fez colidir o desejo com a realidade.

Apesar de ter tido a prudência de não ter colocado uma meta, em dezembro de 2010 o ainda presidente Lula anunciou o cumprimento da promessa de fazer 1 milhão de casas. Na verdade, foram “contratadas” 1 milhão de casas no âmbito do programa, não construídas. Utilizando novamente a sua linguagem peculiar, Lula afirmou:

O problema é que “contratar” é diferente de “fazer”. Segundo auditoria do TCU, de setembro de 2016, o governo havia construído somente 732 mil unidades até 2015. Além disso, a CGU, em auditoria de fevereiro de 2018, apontou que 56% dos imóveis construídos apresentavam alguma falha de construção.

Isso não impediu que Lula, ainda hoje, estampe no seu site que foram entregues 2,1 milhão de casas somente na Faixa 1 do programa, cerca de 3 vezes mais que os números constatados pela auditoria do TCU.

Como todo programa grandioso do PT, o MCMV deixou um rastro de destruição de dinheiro por onde passou. Segundo reportagem do Valor de agosto de 2020, o programa vem sofrendo com inadimplência elevada, principalmente na faixa 1, aquela destinada à população de mais baixa renda:

Ou seja, nada menos do que 44% dos devedores estavam com prestações atrasadas há mais de 90 dias na época do levantamento. Isso, obviamente, acabará como custo para o Tesouro (além dos subsídios), a exemplo do que vimos com o FIES.

De qualquer forma, o grande objetivo do programa era diminuir o déficit habitacional brasileiro. Será que conseguiu? O gráfico a seguir mostra a evolução do déficit habitacional desde 2007, segundo a Fundação João Pinheiro, fonte mais confiável para este tipo de informação.

Podemos observar que, com exceção de 2010, o déficit habitacional fica entre 5,5 e 6,0 milhões de residências. O dado de 2010 difere dos demais pois foi calculado com base no censo daquele ano, ao passo que os dados dos outros anos se basearam na PNAD (Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios). Não é possível, portanto, determinar uma queda significativa no déficit. Se o número de 2,1 milhão de casas trombeteado por Lula fosse verdadeiro, deveria fazer alguma diferença visível neste gráfico.

Em resumo, o Minha Casa, Minha Vida, assim como vários outros programas dos governos do PT, serviram para fazer muita espuma, mas o resultado final, como sempre, foi um rastro de destruição das contas públicas sem resultados visíveis de melhoria da vida da população.

A política de valorização real do salário-mínimo

Uma narrativa que sempre vem à tona a respeito dos governos do PT é o crescimento do salário-mínimo. Segundo a narrativa, nunca houve, na história do Brasil, um governo que tivesse valorizado tanto o salário-mínimo do que os governos do PT. Será verdade? Vejamos.

Podemos observar que, de fato, o salário-mínimo cresceu, em termos reais, mais durante os governos do PT do que em outros governos. Foram 4,6% ao ano de crescimento real (acima da inflação), contra 3,8% ao ano durante os anos do governo FHC e zero nos governos Temer e Bolsonaro. O problema, no entanto, é o custo dessa política. Vejamos este outro gráfico:

Note que os gastos com Previdência aumentam 6,3% ao ano, em termos reais, nos governos do PT, contra 6,0% ao ano no 2º mandato de FHC e 2,4% ao ano nos governos Temer/Bolsonaro. Sabemos que grande parte das despesas com a Previdência estão atreladas ao valor do salário-mínimo. Aumentar o salário-mínimo significa aumentar automaticamente os gastos com Previdência, que são a maior rubrica de gastos públicos no país. Não à toa, os gastos com Previdência crescem de maneira proporcional ao aumento do salário-mínimo. A diferença de crescimento entre o salário-mínimo e o crescimento dos gastos com Previdência se deve, basicamente, a fatores demográficos (envelhecimento da população). O efeito da Reforma da Previdência, aprovada em 2017, é muito pequeno nos primeiros anos, e não deve ter influência relevante na queda da velocidade de aumento das despesas da Previdência no período analisado.

O governo Temer (assim como, depois, o governo Bolsonaro), foi obrigado a dar um basta nesses aumentos reais do salário-mínimo, simplesmente porque as contas públicas não aguentavam mais tanta generosidade. Aqui temos mais um caso em que bondades populistas têm efeito sobre o orçamento público, o que acaba espremendo o espaço para outros gastos igualmente ou até mais importantes. Poderíamos pensar, pelos menos, que essa política serviu para diminuir a desigualdade de renda no país. Será? Vejamos o seguinte gráfico:

O índice de Gini representa a desigualdade de renda em um país. Quanto mais próximo de 100, mais concentrada será a renda, quanto mais próximo de zero, mais bem distribuída é a renda. Apenas para termos uma noção, os países mais “iguais” do mundo têm índice de Gini entre 25 e 30, enquanto os países mais “desiguais” têm índice de Gini entre 55 e 60.

No gráfico acima, vemos que o índice de Gini do Brasil veio recuando desde o início do governo Lula, em 2003, quando valia 57,6, terminando o ano de 2016 valendo 53,3. Uma redução de 4,3 pontos no índice neste período. Incluo o ano de 2016 na análise porque, apesar de o governo Dilma ter terminado em abril, seus efeitos ainda seriam sentidos por algum tempo. A piora do índice de Gini em 2016 é o preço pago pelas políticas adotadas em anos anteriores.

Parece, então, que a política de valorização do salário-mínimo, e outras políticas sociais, como o Bolsa Família, de fato ajudaram a distribuir renda. No entanto, observemos o gráfico a seguir:

Neste gráfico, temos a queda do índice de Gini em países emergentes ao longo do mesmo período. Podemos observar que, com exceção de Indonésia e Turquia, houve uma melhora da distribuição de renda generalizada no mundo em desenvolvimento, sugerindo que houve um fator comum a todos esses países, que impulsionou este movimento. Ou seja, a não ser que todos esses países tenham implementado uma política de valorização do salário-mínimo e de distribuição de bolsa-família, deve ter havido algum fator macroeconômico que levou a este resultado tão generalizado. De qualquer forma, não parece ser um mérito exclusivo das políticas do PT.

O gráfico a seguir mostra a real:

A triste realidade é que o Brasil continuava a ser, em 2016, um dos países mais desiguais do mundo, mesmo com todas as “bondades” do PT. A propaganda não substitui a realidade.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A economia brasileira na era PT. Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

O setor elétrico era a “especialidade” da presidente Dilma Rousseff. Tendo sido secretária de energia no Rio Grande do Sul e ministra das Minas e Energia no começo do governo Lula, essa era, definitivamente, a sua praia. E, como veremos neste episódio, a presidente tinha ideias muito firmes, convictas e erradas sobre como reduzir as tarifas de energia elétrica.

O setor elétrico é muito complexo. Entender exatamente como são formadas as tarifas de energia elétrica é coisa para profissionais. Por isso, aqui vou procurar simplificar bastante a explicação, de modo que a maioria dos leitores possa entender o que aconteceu. Peço antecipadamente desculpas para aqueles que entendem do setor, caso encontrem alguma simplificação excessiva. Saibam que foi para o bem do entendimento da maior parte dos leitores. O que vai a seguir foi em grande parte baseado na tese de doutorado de Diogo Mac Cord de Faria, Regulação Econômica da Geração Hidrelétrica, de 2016, junto à Escola Politécnica da USP, além de notícias do jornal Valor Econômico. Logo no primeiro ano do governo Lula, em dezembro de 2003, uma Medida Provisória inspirada pela ministra Dilma Rousseff mostrou a que veio o governo do PT no setor. Segundo reportagem de 12/12/2003, a MP (que depois seria transformada na Lei 10.848/2004) trazia uma série de alterações no funcionamento do setor, que fortalecia o papel das estatais em relação à iniciativa privada.

Mas foi durante o governo Dilma que a intervenção estatal no bom funcionamento do setor se mostrou em todo o seu esplendor. É o que veremos a seguir.

O uso da Eletrobrás como indutor de preços mais baixos nos leilões de energia elétrica

Além de todos os usos, digamos, menos ortodoxos que as estatais propiciam, o PT gosta de estatais, entre outras coisas, porque permite ao governo operacionalizar políticas econômicas de seu interesse sem custos aparentes, pois estes são, em um primeiro momento, absorvidos no balanço das empresas. Com a Eletrobrás não foi diferente: a empresa foi extensivamente utilizada em várias frentes, de modo a viabilizar a política definida pelo seu acionista majoritário.

Um primeiro exemplo foram os leilões de linhas de transmissão. Para que os linhões sejam construídos, é preciso realizar leilões, em que as empresas oferecem lances que possam remunerar os seus investimentos. Ocorre que, por fatores que não vamos explorar aqui, os critérios determinados pela ANEEL tornavam esses leilões, em geral, pouco atrativos para empresas do setor privado. Ao invés de ajustar os critérios, o governo decidiu utilizar a Eletrobrás para viabilizar esses leilões, obviamente, com prejuízo para a empresa.

Entre 2008 e 2012, apenas 5% dos leilões não tiveram lances, dando a impressão de grande sucesso do modelo. A partir de 2013, no entanto, grande parte das subsidiárias da Eletrobrás foi impedida de participar dos leilões por conta de atrasos nas entregas dos empreendimentos decorrentes dos leilões vencidos anteriormente. A partir daquele ano, quase 50% dos leilões passaram em branco, ou seja, não houve lances de nenhuma empresa. Em outras palavras, sem a Eletrobrás para sustentar os leilões, estes passaram a fracassar com muito mais frequência.

Um outro exemplo foi o leilão para a construção da Usina de Belo Monte, realizado em abril de 2010. O governo estabeleceu um preço teto bem abaixo da viabilidade econômica, e usou a Eletrobrás para garantir o “sucesso” do leilão. Reportagem do Valor Econômico no dia seguinte ao leilão mostra como o lance vencedor do leilão foi construído dentro do próprio governo, sendo que os parceiros privados do consórcio vencedor não ficaram exatamente felizes com o resultado.

Mas, de longe, a principal barbeiragem do governo Dilma Rousseff no setor elétrico foi a Medida Provisória 579.

A Medida Provisória 579

Antes de abordarmos a MP 579, vamos ver como a tarifa de energia elétrica é formada. Grosso modo, a tarifa é formada por impostos, encargos e remuneração das empresas prestadoras do serviço. No gráfico abaixo, reproduzido no Estadão no dia da publicação da MP 579, podemos observar que, em média, os impostos e encargos representavam, na época, 50% do custo, sendo os outros 50% a remuneração das empresas prestadoras do serviço (geradora, transmissora e distribuidora). Os impostos são, principalmente, o ICMS, enquanto os encargos são todos os penduricalhos que foram sendo agregados ao longo do tempo, e que servem para pagar alguma política pública. Aqui temos o programa Luz Para Todos, a energia de Roraima (que não está interligada ao sistema) e os subsídios aos painéis solares, entre outros.

A MP 579 eliminou alguns desses encargos, passando-os para o Tesouro e, indiretamente, reduziu o ICMS, pois este é cobrado sobre o valor da tarifa, e se o valor da tarifa é menor, o imposto também será menor. A redução das tarifas com a eliminação desses encargos da conta de luz seria da ordem de 7%. Muito pouco. O governo queria uma redução da ordem de 20%. Para isso, o grande pulo do gato foi mexer na remuneração das empresas. Acompanhe.

Assim como todo investimento em infraestrutura, o setor elétrico tem como característica um grande investimento inicial (seja em hidroelétricas, seja em linhas de transmissão), que depois será pago através da cobrança de tarifas, em um mercado sem concorrentes. Por isso, para entrar neste mercado, é preciso que a empresa interessada vença uma concorrência para prover o serviço, na qual a tarifa e os reajustes são combinados em contrato. Essa tarifa e a regra dos reajustes devem pagar o investimento inicial para construir a infraestrutura e as despesas da operação em si ao longo dos anos (salários, manutenção etc). No jargão do mercado, o investimento inicial é chamado de CAPEX (Capital Expenditure), enquanto as despesas de operação são chamadas de OPEX (Operational Expenditure). Para tornar o texto mais simples, vamos usar estes dois termos daqui em diante.

Uma grande parte das empresas de geração e transmissão de energia operavam com base em contratos de 20 anos assinados entre os anos de 1995 e 1997, ainda no primeiro governo FHC. Portanto, haveria uma grande necessidade de renovação desses contratos entre os anos de 2015 e 2017, em que provavelmente novos leilões seriam realizados. Qual foi a ideia genial de Dilma Rousseff? Antecipar a renovação desses contratos para 2012 por mais 30 anos. Para isso, essas empresas deveriam ser indenizadas pelo CAPEX realizado no passado e que ainda não havia sido coberto pelas tarifas cobradas no período. Foi aí que se deu o grande “pulo do gato”.

O governo tirou da cartola uma metodologia de cálculo dessas indenizações que prejudicaria fortemente as empresas do setor. No dia seguinte ao anúncio das medidas, as ações do setor protagonizaram um banho de sangue na Bovespa.

Claro, sempre podemos considerar que os contratos foram malfeitos no passado, e que as empresas estão recebendo mais do que deveriam. O problema é que contratos são contratos, e devem ser cumpridos. O governo Dilma Rousseff tentou diminuir a remuneração devida às geradoras e transmissoras através de um cálculo malandro do CAPEX, usando subterfúgios contábeis que não vem ao caso aqui explicitar e que podem ser consultados em detalhe no trabalho de Diogo Mac Cord de Faria citado acima. Aliás, se pudéssemos caracterizar o governo Dilma com uma expressão, essa seria “o governo das malandragens contábeis”.

Não à toa, a única empresa não pertencente ao governo federal que aderiu ao “plano” foi a Transmissora Paulista, que até hoje, 10 anos depois, está aguardando na fila para receber a sua indenização. Coube à Eletrobrás carregar o piano da MP 579 nas costas, o que fez com que a empresa perdesse totalmente a sua capacidade de investimento nos anos seguintes. A Eletrobrás fez o papel da Petrobrás na tarefa de reduzir preços administrados, às custas de sua saúde financeira. Talvez este seja um dos motivos pelos quais o PT declare tanto amor a essas empresas.

E não foi por falta de aviso. O maior investidor privado da estatal à época, o fundo norueguês Skagen, usou termos duríssimos para se referir ao que o governo havia feito, em uma carta ao embaixador brasileiro na Noruega.

A própria Eletrobrás, em documento interno, descreve o cenário de pesadelo que seria (e acabou sendo) a aceitação das condições da MP 579. Vale a pena ler um trecho.

O resultado foi uma queda expressiva das cotações da empresa. No gráfico a seguir, podemos observar a evolução dos preços da Eletrobrás, da CESP e da Cemig, as três em relação ao Ibovespa.

Observe a diferença de comportamento entre a Eletrobrás e as concessionárias de SP e MG, que não aceitaram os termos da MP 579 e não renovaram as suas concessões, mesmo ao preço do custo político de não “ajudar” a derrubar os preços da energia elétrica.

No final, a vitória foi de Pirro. Assim como a Petrobrás, a Eletrobrás foi quebrada para que se conseguisse uma redução dos preços da energia elétrica que não se sustentou no tempo. É o que podemos acompanhar no gráfico a seguir:

Observe como houve uma redução de quase 20% nas tarifas de energia elétrica em 2013, conforme prometido pelo governo. No entanto, este ganho já foi quase todo perdido no ano seguinte, e 2015 foi marcado por um tarifaço para compensar uma série de encargos que estavam corroendo o Tesouro. Foi como se o governo cobrasse uma conta atrasada, que havia deixado de cobrar para fazer populismo. No final de 2015 a conta já estava 50% mais alta do que no final de 2012, antes da MP 579. No final de 2021, a conta de luz estava 2,2 vezes mais cara do que no final de 2012. Descontando-se o IPCA do período, a energia elétrica está 30% mais cara do que antes da MP 579.

O problema dos altos preços da energia elétrica é muito complexo e não há canetada que dê jeito. Aliás, como vimos, canetadas somente agravam o problema, ao postergá-lo para o futuro. Porque a conta sempre chega. Sempre.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A economia brasileira na era PT. Episódio 5: Manual para quebrar uma empresa

O papel da Petrobras na política econômica do PT merece um capítulo à parte. A empresa foi usada como o pilar fundamental do novo ciclo de desenvolvimento. Os investimentos realizados pela empresa, associados ao controle dos preços dos combustíveis, a oneraram de tal maneira que a estatal chegou a ostentar o título de empresa mais endividada do mundo.

Neste episódio, vamos acompanhar dois casos que ilustram o usa da Petrobras e dos fundos de pensão estatais para atingir objetivos do governo, em iniciativas sem racionalidade econômica e que resultaram em prejuízos bilionários: a construção das refinarias Abreu e Lima e Comperj. Em seguida, vamos entender o efeito do congelamento dos preços dos combustíveis no balanço da Petrobras. Por fim, vamos conferir as seguidas frustrações na produção de petróleo, o principal produto da companhia.

Veremos que estes três fatos (investimentos irracionais, congelamento de preços e frustração de produção) foram os responsáveis pela virtual quebra da empresa.

O investimento em refinarias

Que o país necessita de refinarias para não depender da capacidade de refino no exterior parece ser um consenso. O problema é a viabilidade econômica dessas refinarias, considerando todas as, digamos, condicionantes políticas que as envolvem, e que acabaram sendo suportadas pelo balanço da Petrobras. Além da pura e simples incompetência.

Veremos em mais detalhe os dois casos mais famosos de refinarias que se mostraram um desastre financeiro para a petroleira: Abreu Lima e Comperj. Antes disso, porém, vamos ver rapidamente dois casos ilustrativos desse triste capítulo da Petrobras.

O primeiro parece apenas um pequeno detalhe diante do oceano de incompetência e corrupção que veremos adiante, mas ilustra bem o modus operandi da empresa sob o governo do PT. Trata-se da recompra da participação da Repsol (empresa argentina) na refinaria Alberto Pasqualini em dezembro de 2010. Segundo analistas, a Petrobras pagou US$ 14,9 mil por barril, quando o preço médio pago em transações do mesmo tipo foi de US$ 4,7 mil. A justificativa do diretor da Petrobrás, o ainda pouco famoso Paulo Roberto Costa, é de que o petróleo seria “100% nosso”.

O segundo caso “menor” que abordaremos foi a compra da famosa “ruivinha”, a refinaria de Pasadena, no Texas. Vejamos a notícia que nos conta sobre a venda da refinaria, em maio de 2019, e que resume todo o imbróglio.

Fazendo a conta: a Petrobras pagou um total de US$ 1,249 bilhão pela refinaria, além de ter investido adicionalmente um total de US$ 685 milhões, e vendeu por US$ 467 milhões. Ou seja, um prejuízo, só aqui, de quase US$ 1,5 bilhão. O detalhe sórdido foi o fato de a mesma refinaria ter sido comprada pela Astra Oil (a empresa que vendeu a “ruivinha” para a Petrobras) por US$ 42,5 milhões apenas um ano antes de ter vendido o ativo para a Petrobras. Sem dúvida, um excelente negócio.

Mas estes dois casos são, como dizem, “troco de pinga”, se comparados com os dois grandes projetos da Petrobras na era PT: Abreu e Lima e Comperj.

A refinaria Abreu e Lima nasceu do compromisso do governo Lula de estabelecer uma parceria estratégica com o governo da Venezuela, então liderado pelo comandante Chávez. No dia 16/12/2005, a pedra fundamental da nova refinaria foi lançada com a presença dos dois presidentes. O discurso de Chávez fez menção ao seu apoio à reeleição de Lula nas eleições do ano seguinte:

Neste documento, o TCU resume o processo decisório que levou à construção da refinaria Abreu e Lima (RNEST). Segundo o relatório de auditoria do TCU, a decisão de construção da refinaria passou pelas 5 etapas do processo decisório da diretoria da Petrobras sem que houvesse condições para tal. Entre os problemas encontrados, podemos listar os seguintes:

  • Parceria com a PDVSA sem definição de responsabilidades.
  • A RNEST precisaria refinar petróleo brasileiro e venezuelano, este de baixa qualidade, o que importou em investimentos adicionais em relação ao custo estimado inicial;
  • Já na terceira fase do processo decisório, chegou-se à conclusão de que o projeto teria um VPL (Valor Presente Líquido) negativo de US$ 3 bilhões. Para fazer com que este VPL se tornasse positivo, a diretoria da Petrobras considerou, segundo levantamento do TCU, “elevação do fator de utilização da refinaria para níveis irreais”, “redução da taxa mínima de atratividade” que a Petrobras normalmente utilizava, “ampliação da vida útil do empreendimento de 25 anos para perpétua”, “incentivos fiscais que ainda dependeriam de aprovação legislativa” e “impacto de uma hipotética perda de mercado caso um terceiro construísse uma refinaria semelhante na mesma localização”. Fazendo essas adaptações, o VPL tornou-se positivo em apenas US$ 0,08 bilhões.
  • Em 2015, o VPL atingiu a astronômica cifra de US$ 20 bilhões negativos. Foi então que a empresa decidiu interromper a construção com 82% da obra já executada.

O relatório se encerra com o seguinte parágrafo: “O conjunto probatório reunido nos autos levou à conclusão de que, ao longo de sua concepção e implantação, o projeto de construção da Refinaria Abreu e Lima não tinha maturidade técnica adequada e era um investimento inviável economicamente.” Mas se encaixava na estratégia de usar a Petrobras como alavanca de desenvolvimento econômico e parceria com governos aliados.

Atualmente, a refinaria Abreu Lima pelo menos produz cerca de metade do combustível previsto no projeto original. Digo “pelo menos” porque a história da Comperj é ainda pior.

Tendo sido idealizada pelo Grupo Ultra como uma operação para a produção de petroquímicos ligados ao seu próprio negócio e com orçamento inicial de US$ 3 bilhões, as constantes ampliações do escopo do projeto da Comperj, em função da megalomania do PT e outros interesses menos republicanos, levou o projeto a se inviabilizar financeiramente e fizeram com que o grupo privado desistisse do empreendimento.

Em março do ano seguinte, Lula visitaria a obra em ritmo de campanha eleitoral, mas as obras não avançavam. Paulo Roberto Costa, então diretor de abastecimento da empresa e que ficaria “famoso” como o primeiro delator da Operação Lava-Jato, afirma na reportagem que o atraso se deu por conta de negociações de contratos por “preços melhores”.

Quatro anos depois, em abril de 2014, nova reportagem do Globo reflete a frustração com uma obra que não parecia ir a lugar algum.

Em 2015, com a Operação Lava-Jato e auditoria do TCU, a verdade sobre a refinaria começa a vir à tona. Vale a pena ler o trecho de uma extensa reportagem do jornal O Globo do dia 19/04/2015 destacado abaixo.

A Comperj hoje, rebatizada de GasLub, não produz nada, nem uma gota de combustível. Vale ler o que vai no site da Petrobras:

Note o gerúndio utilizado no texto. Em fevereiro deste ano foram realizados os primeiros testes da Unidade de Processamento de Gás Natural construído no complexo. E é isso. Para resumir o desastre, ser-nos-á útil lançar mão dos relatórios do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, que contém os investimentos realizados pela Petrobrás nessas refinarias. No gráfico a seguir, podemos observar a evolução dos custos ao longo do tempo.

Note que o gráfico mostra um período de 7 anos (as datas são de publicação dos balanços do PAC pelo próprio governo). Em termos de custos, o primeiro orçamento de Abreu e Lima foi de cerca de R$ 5 bilhões, terminando em R$ 37 bilhões 7 anos depois. No caso da Comperj, os custos iniciaram por volta de R$ 15 bilhões, terminando em R$ 27 bilhões no mesmo período. Lembrando que as obras não se encerraram em 2014, sendo este apenas o último dado que temos disponível nos balanços do PAC. Ou seja, os custos são ainda maiores do que estes. A Petrobras quebrou, entre outras coisas, por financiar projetos deste tipo, completamente inviáveis do ponto de vista financeiro, para servir a propósitos políticos e objetivos menos republicanos, além de servir à megalomania da fase Húbris do governo do PT.

O controle dos preços dos combustíveis

Além de investimentos em projetos sem a mínima viabilidade financeira, apenas para atender uma política econômica megalomaníaca e a arranjos políticos, a Petrobras foi também utilizada para controlar a inflação, através do virtual congelamento dos preços dos combustíveis.

Em um relatório de novembro de 2012, o Bank of America analisa a defasagem dos preços dos combustíveis, que já vinha se acumulando desde o início de 2011, conforme os gráficos abaixo:

A linha verde são os preços internacionais de gasolina e do diesel, respectivamente nos gráficos 1 e 2, enquanto a linha azul são os preços praticados localmente. Observe como a linha verde permanece sistematicamente acima da linha azul desde o início de 2011. Segundo os analistas do BofA, como a Petrobrás importava, na época, 160 mil barris/dia de diesel e 80 mil barris/dia de gasolina, pagando preços internacionais e vendendo a preços locais, isso significava algo como US$ 800-900 milhões de prejuízos ao ano.

Depois de dois anos sem reajustes, e pressionado pela empresa, o governo permitiu que a Petrobras reajustasse a gasolina e o diesel em 31/01/2013 e o diesel novamente em 06/03/2013. No entanto, mesmo após estes aumentos, a defasagem se mantinha em 6% para o diesel e 13% para a gasolina, segundo os analistas do Bank of America. O colunista Celso Ming, após o primeiro reajuste, mandou a real em sua coluna no Estadão:

Em outubro de 2013, na reunião com investidores em que a empresa apresentou seus resultados do 3º trimestre, a diretoria apresentou o seguinte gráfico, que mostra as perdas de resultado devidas à defasagem dos preços dos combustíveis:

Nessa mesma reunião, a empresa anunciou que iria propor ao governo uma nova metodologia de reajuste dos preços dos combustíveis. A partir de então, começou uma novela que duraria algumas semanas, até que, em 29/11/2013, a empresa soltou um Fato Relevante, em que anuncia o estabelecimento de uma política de reajuste de combustíveis. Só que não.

Observe que a “nova metodologia” é secreta! A única promessa é que os preços serão administrados de acordo com as metas de endividamento e alavancagem do balanço da empresa. No mesmo comunicado, a empresa anunciou reajuste de 4% para a gasolina e 8% para o diesel, longe de recuperar a defasagem acumulada.

A partir do final de 2014, com a queda dos preços do petróleo no mercado internacional, o diferencial de preços diminuiu naturalmente. De qualquer forma, as perdas dos anos 2011-2013 serviram para estressar o balanço da empresa e aumentar o endividamento.

Sobrecarregada com investimentos irracionais e pela defasagem de preços de seu principal produto, a Petrobras não conseguia fazer bem o seu core business, que é explorar petróleo. É o que veremos a seguir.

Muita promessa, pouca entrega

Espera-se que uma empresa de exploração de petróleo explore petróleo. Este é o básico. O advento da descoberta do pré-sal deu origem a uma verdadeira viagem psicodélica com respeito à capacidade da Petrobras de exploração de petróleo. No gráfico abaixo, tirado do relatório da administração publicado em dezembro de 2009, podemos observar a projeção de produção de petróleo para os 10 anos seguintes.

A projeção era dobrar a produção da empresa neste período. A realidade, no entanto, foi bem outra, como podemos ver no gráfico a seguir:

Observe como a produção permanece estagnada entre 2,0 e 2,2 milhões de barris/dia em todo esse período. E não foi por falta de investimentos, como podemos observar no próximo gráfico:

Podemos observar que, entre 2010 e 2015, a empresa investiu pouco mais de R$ 80 bilhões/ano em média, ou quase 1,5 vez a mais do que nos 5 anos anteriores.

Ou seja, a empresa conseguiu a proeza de investir quase R$ 500 bilhões em um período de 6 anos sem conseguir elevar em uma gota a produção de petróleo. Isto pode ser creditado a decisões ruins de investimentos, como pudemos ver no caso das refinarias, que também não produziram uma gota de gasolina ou diesel nesse período. Esse dinheiro desperdiçado poderia ter sido utilizado para fazer a manutenção dos poços existentes. A produção do pré-sal, de fato, aumentou no período, mas a produção em campos mais antigos se reduziu com a falta de investimentos, o que resultou em estagnação da produção. E se uma empresa não consegue aumentar a produção de seu principal produto, mesmo investindo toneladas de recursos, o resultado é a queima de caixa e o aumento do endividamento, que foi o que acabou ocorrendo, como veremos a seguir.

A empresa mais endividada do mundo

Alguns indicadores nos serão úteis para entender o impacto dessas decisões no balanço da empresa. Em primeiro lugar, vejamos a evolução do valor de mercado da empresa comparado com o seu valor patrimonial. O valor de mercado é dado pelo preço das ações da empresa na bolsa, ou seja, reflete as expectativas dos acionistas em relação à performance futura da empresa. Já o valor patrimonial reflete a valor contábil da empresa, aquele resultante dos lucros acumulados e dos investimentos (pelo seu valor contábil) ao longo dos anos.

Este gráfico é interessante sob muitos aspectos. Vejamos.

Em primeiro lugar, podemos observar que, até 2010, o valor de mercado da Petrobrás encontrava-se acima do seu valor patrimonial, contábil. Isso é o normal para empresas sadias, em que os investidores esperam (e antecipam) um aumento do valor patrimonial no futuro, através da geração de lucros. A partir de 2011, no entanto, as coisas se invertem: o valor de mercado passa a ficar abaixo do valor patrimonial. O mercado, na verdade, antecipou algo que iria acontecer a partir de 2014: a redução do valor patrimonial da empresa! Os prejuízos foram tão grandes, que afetaram negativamente o valor patrimonial da Petrobras, levando à sua primeira redução da história, no espetacular valor de R$ 100 bilhões!

Outro ponto interessante é observar o salto no valor patrimonial em 2010, de R$ 150 bilhões para R$ 300 bilhões, devido à megacapitalização naquele ano. Observe como, neste mesmo ano, o valor de mercado subiu em apenas R$ 40 bilhões, com os investidores já desconfiados de que aquela capitalização não iria se traduzir em mais lucros no futuro.

A partir de 2016, com a mudança na gestão da empresa, o valor de mercado novamente se aproxima do valor patrimonial, ultrapassando-o em 2018. Este movimento demonstra a retomada da confiança de que a empresa seria bem gerida novamente.

Um outro indicador é o nível de endividamento, como podemos observar no gráfico a seguir.

A Petrobrás chegou a deter o título de empresa mais endividada do mundo a partir de 2014, com mais de US$ 100 bilhões em dívidas, que somente começaram a ser equacionadas após a mudança da gestão, em 2016. O tamanho do endividamento não faz muito sentido em si, o que importa é a alavancagem da empresa, ou seja, o tamanho da dívida em relação ao seu fluxo de caixa. Em outras palavras, em quanto tempo aquela dívida conseguiria ser paga com o fluxo de caixa gerado. No gráfico abaixo, podemos observar a principal métrica de alavancagem utilizada pelo mercado, a dívida líquida dividida pelo EBITDA, que é o lucro da empresa antes de pagamento de juros e impostos e antes do desconto de amortizações e depreciações.  Ou seja, é o caixa gerado pelas operações da empresa.

Observe como, antes de 2011, a alavancagem da empresa estava em 1 ou até abaixo. Isso significa que a dívida da empresa poderia ser paga com toda a geração de caixa de um ano, um nível saudável. A partir de 2011, no entanto, a alavancagem começa a crescer de maneira acentuada, atingindo 4 vezes no início de 2014. Ou seja, seriam necessários 4 anos de operação para pagar a dívida, uma alavancagem extremamente alta. Entre 2014 e 2016, em função dos vários ajustes feitos no balanço da empresa (reconhecimentos de prejuízos), esta relação perde o sentido, pois o EBITDA fica distorcido. A partir de 2017, sob nova gestão, a empresa começa a se desfazer de ativos, diminuindo lentamente a dívida, até voltar a uma alavancagem de uma vez (dívida líquida/EBITDA = 1) em 2021. Essa trajetória virtuosa só foi interrompida pela pandemia, porque o EBITDA despencou no início de 2020, mas essa foi uma distorção que logo desapareceu.

Como quebrar uma empresa gigante e monopolista em três simples passos

1º passo: faça investimentos gigantescos sem nenhuma racionalidade econômica, para fomentar a indústria nacional e cultivar alianças com governos amigos;

2º passo: use a empresa para fazer “política monetária”, vendendo seus produtos por um preço menor do que foram comprados para mitigar a inflação;

3º passo: desperdice recursos de tal forma que a produção de seu principal produto não acompanhe os investimentos realizados.

No gráfico a seguir, podemos acompanhar o valor de mercado da Petrobrás, tanto em reais quanto em dólares:

Podemos observar três grandes movimentos dos preços das ações da empresa:

  • 2003 – 2008: O valor da empresa saiu de R$ 50 bilhões (US$ 15 bilhões) para o seu pico de R$ 450 bilhões (US$ 290 bilhões), quando o Brasil (e a empresa) receberam o Grau de Investimento. O sprint final, a partir de meados de 2007, se deu em função da descoberta do pré-sal.
  • 2008 – 2011: O valor da empresa fica oscilando em torno dos R$ 300 bilhões (US$ 175 bilhões) após a crise do subprime.
  • 2011 – 2016: O valor da empresa começa uma derrocada que vai terminar somente no início de 2016, quando o movimento do impeachment ganha corpo. Dilma Rousseff assume o governo com a empresa valendo R$ 400 bilhões (US$ 250 bilhões) e entrega a empresa valendo R$ 85 bilhões (US$ 20 bilhões). Ou seja, o governo Dilma conseguiu destruir R$ 315 bilhões (US$ 230 bilhões) em pouco mais de 5 anos. Uma verdadeira proeza. (Como nota cômica, vemos o valor da empresa recuperando-se com a perspectiva de vitória de Marina Silva nas eleições de 2014. Marina era vista, pelos investidores, como melhor que Dilma para a Petrobras! O que o desespero não faz).

Olhando em perspectiva, o governo do PT pegou a empresa valendo R$ 50 bilhões (US$ 15 bilhões) e, 13 anos depois, entregou valendo R$ 85 bilhões (US$ 20 bilhões). Este mesmo dinheiro, aplicado na Caderneta de Poupança no início de 2003, estaria valendo R$ 135 bilhões no início de 2016. Ou seja, comparado com a Poupança, o PT queimou R$ 50 bilhões em valor de mercado da Petrobrás.

Alguns dirão que o “valor de mercado” não passa de um fetiche de especuladores, preocupados apenas em lucrar às custas do patrimônio brasileiro. Ocorre que foram esses “especuladores” os chamados a financiar as atividades da petroleira, tanto por ocasião da abertura de seu capital, como na megacapitalização de 2010. Aliás, como vimos no Episódio 2, foram esses “especuladores” os únicos que compareceram com dinheiro de verdade em 2010, com o governo aportando a sua parte em “barris de petróleo a serem descobertos”. Além dos “especuladores”, outros otá… troux… financiadores se dispuseram a emprestar dinheiro para a empresa, até que esta se tornasse a empresa mais endividada do planeta.

De alguma maneira, o valor de mercado da Petrobras conta a história do governo do PT. A exemplo da economia, também aqui temos três fases: “a Grande Ilusão”, “a Húbris” e “Petrobras em Vertigem”. A diferença na datação desses três períodos em relação ao debacle da atividade econômica se dá porque os investidores costumam reagir antes às más notícias. Por isso, as ações da Petrobras começam a recuar já em 2011, enquanto a Grande Recessão só se inicia em 2014.

Se tivéssemos que escolher um símbolo para a era PT, talvez a Petrobras fosse o mais adequado. Tratou-se não somente do principal instrumento para a implementação das ideias econômicas do partido em todo o seu esplendor, como, além disso, é uma espécie de Brasil em miniatura, onde todas as mazelas que assolaram o país nesses anos se fizeram representar em escala menor.

Nota final: o leitor atento terá notado que não falamos de corrupção em momento algum. Afinal, quem precisa de corrupção para explicar a quebra de uma empresa, se sobram incompetência e cegueira ideológica?


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A economia brasileira na era PT. Episódio 4: Na base do anabolizante

No núcleo da política econômica do PT, chamada de Nova Matriz Econômica (NME), está a crença de que o Estado pode fomentar o crescimento econômico através da escolha de investimentos cirurgicamente escolhidos. Portanto, o crescimento econômico deveria ser o resultado de todas as políticas adotadas pelos governos Lula e Dilma. De fato, se olharmos somente o crescimento, o governo Lula se destaca, conforme podemos observar no gráfico abaixo:

A média do crescimento econômico nos governos Lula foi de 4% ao ano, contra 2,5% de FHC, menos de 0,5% nos governos Dilma, 1,5% no governo Temer e cerca de 1% no governo Bolsonaro (usando previsão de crescimento de 1,5% para 2022 do FMI). Então, é indisputável o fato de que o governo Lula entregou crescimento maior, mas também é inegável que Dilma foi a responsável pela pior performance da economia brasileira na história (estou considerando o ano completo de 2016 para este e os próximos cálculos. Apesar de Dilma ter deixado o cargo em abril de 2016, o PIB daquele ano foi obra de seu governo). Considerando todos os governos do PT (linha verde), temos uma média de crescimento semelhante ao que tivemos nos governos FHC, mas ainda maior do que tivemos posteriormente, com Temer e Bolsonaro.

Mas, na vida, tudo é relativo. Precisamos ver como se saíram nossos pares nestes mesmos períodos. Escolhi para comparação os seguintes países: Chile, Colômbia, Indonésia, Coréia, Malásia, México, Peru, Rússia, África do Sul e Turquia. Deixei de fora, propositalmente, China e Índia, que têm apresentado crescimentos muito superiores à média. O resultado pode ser visto no gráfico a seguir.

Em todos os períodos considerados, o nosso crescimento econômico ficou abaixo dessa amostra de países. A menor diferença (-0,5%) foi, de fato, no governo Lula, seguido por -1,0% (governo FHC), -0,9% governo Bolsonaro), -1,7% (governo Temer) e incríveis -3,3% no governo Dilma. Se, no entanto, considerarmos os governos do PT como um todo, veremos um quadro diferente: a diferença do PT passa a ser a maior (-1,8%), seguido de Temer (-1,7%), FHC (-1,0%) e Bolsonaro (-0,9%). Se considerarmos o governo Temer como de limpeza da casa, ainda carregando grande parte da “herança maldita” dos governos do PT, podemos dividir a história econômica brasileira desde o Plano Real em três partes:

  1. Governo FHC, em que nosso crescimento fica cerca de 1% ao ano abaixo da média dos emergentes ex-China.
  2. Governos PT, em que nosso crescimento fica em quase 2% ao ano abaixo da média dos emergentes ex-China.
  3. Governo Bolsonaro, em que nosso crescimento volta à natural mediocridade brasileira, ou seja, cerca de 1% ao ano abaixo da média dos emergentes ex-China.

A passagem do PT pelo governo, apesar de todos as promessas grandiloquentes de crescimento econômico, entregou-nos um crescimento ainda pior que a média já medíocre do crescimento brasileiro. Isso, apesar de termos políticas de desenvolvimento econômico como nunca antes na história deste país. É o que veremos a seguir.

PAC – Programa de Aceleração do Crescimento

Dilma foi eleita com o epíteto de “Mãe do PAC”. O que era o PAC – Programa de Aceleração do Crescimento? Além de ser o empacotamento mercadológico de todo e qualquer investimento público ou privado em infraestrutura, para passar a impressão de que o governo estava fazendo algo realmente grandioso, o PAC também contava com incentivos fiscais a alguns setores além do uso intensivo do funding de fundos de pensão públicos e o BNDES. O PAC foi lançado no início do 2º governo Lula, em janeiro de 2007, e renovado, sob o nome de “PAC 2”, por Dilma no início de seu primeiro mandato. O seu lançamento foi cercado da desconfiança do mercado em relação à sua capacidade de acelerar o crescimento de maneira permanente. E, claro, reservava a Dilma um lugar de destaque.

De fato, tivemos uma aceleração da Formação Bruta de Capital Fixo e do investimento público neste período, conforme podemos ver nos gráficos a seguir, que mostram a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), que é uma medida do investimento geral na economia, e o Investimento Público do Governo Central.

As médias se referem ao período pré-PAC (até 2006), ao período do auge do PAC (2007-2014) e ao período pós-PAC (2015 em diante). Podemos observar que, na média, a FBCF foi 3 pontos percentuais acima do período pré-PAC e 5 pontos percentuais acima do período pós-PAC. O mesmo ocorre com o investimento do governo, que pulou 1 ponto percentual do PIB em relação ao período pré-PAC, para cair o mesmo tanto no período pós-PAC.

Este é o problema de programas voluntaristas: não existe uma perenidade ao longo do tempo. Enquanto tem gás, o investimento é mantido em patamares artificialmente altos. Quando o gás termina, volta-se ao normal ou até abaixo, pois é necessário pagar as contas. O investimento ser mais alto durante um período curto não tem mérito algum, pois é preciso entender como este investimento afeta o nível do crescimento econômico como um todo. Como já vimos, o crescimento no período que compreende todo o governo do PT (o que considera o período pós-PAC) foi bem abaixo da média de países comparáveis.

Para encerrar esta primeira parte, vamos observar como a indústria se comportou durante este período. Como sabemos, a “reindustrialização” do país é um mantra de todo programa desenvolvimentista, e todo esse esforço certamente tinha este objetivo como um de seus principais. Funcionou? Vejamos no gráfico abaixo, em que plotamos a participação da indústria no PIB:

Podemos observar como a participação da indústria no PIB cai quase que linearmente durante todo o governo PT, tendo iniciado em 21,6% e terminado em 19,0%. Um verdadeiro fiasco, se considerarmos o objetivo declarado.

Até agora, vimos como o crescimento econômico da era PT dependeu de anabolizantes. Um dos principais foi o crédito, via empréstimos do BNDES.

O papel do BNDES

Apesar de ter lançado o PAC em 2007, a grande “mágica” do crescimento começa realmente a partir de 2009, quando o governo Lula inicia o aumento brutal do orçamento do BNDES. No gráfico abaixo, podemos observar o crescimento espetacular do BNDES, que saiu de quase zero em 2008 para 6% do PIB em 2010, crescendo até quase 9% nos anos seguintes. Em dinheiro de hoje, estamos falando em algo próximo a R$ 700 bilhões, uma insanidade, somente possível para aqueles que estão certos do seu sucesso. O aumento do orçamento do BNDES é uma das marcas características dos Anos de Húbris.

Em junho de 2015, com a credibilidade do Tesouro Nacional já na lona, foi aprovada a lei 13.132/2015. Esta lei emendava a lei 12.096/2009, a qual, por sua vez, autorizava o Tesouro a subsidiar os juros dos empréstimos do BNDES. A lei de 2015 seria apenas mais uma de uma série a autorizar o aumento do volume de subsídios, como havia acontecido anualmente desde a lei originária de 2009, a não ser por um pequeno detalhe: foi acrescentado um parágrafo que obrigava o Tesouro Nacional a explicitar o custo dos subsídios concedidos. Seria a primeira vez em que o custo fiscal desse programa seria tratado com transparência. Desde então, o Tesouro mantém um site com os relatórios bimestrais produzidos para atender a essa determinação legal.

primeiro relatório, referente ao último bimestre de 2015, descreve minuciosamente os mecanismos fiscais por trás dos subsídios ao chamado Programa de Sustentação do Investimento (PSI), nome dado aos aportes de recursos para que o BNDES irrigasse a economia com empréstimos subsidiados. Até 2015, o Tesouro tinha emprestado ao BNDES um total de R$ 524 bilhões, dos quais R$ 452 bilhões foram no âmbito do PSI, conforme podemos ver no gráfico a seguir, retirado do relatório:

De maneira bastante simplificada, podemos resumir o esquema na figura a seguir:

Vejamos:

1. O Tesouro se financia no mercado à taxa Selic vendendo títulos públicos para os “rentistas”. Esta é uma simplificação, pois o custo da dívida pública é normalmente maior que a taxa Selic, mas vamos assumir a taxa Selic para fins didáticos.

2. O Tesouro financia o BNDES através de contratos indexados, em grande parte, à TJLP – Taxa de Juros de Longo Prazo. Ou seja, o BNDES precisa devolver o dinheiro ao Tesouro pagando como taxa de juros a TJLP. Há aqui o que chamamos de subsídio implícito, ou seja, a diferença entre a taxa Selic e a TJLP. Este subsídio não entra em lugar nenhuma da contabilidade pública. Este gasto somente vai ser contabilizado na dívida pública quando o BNDES pagar o empréstimo, e este sempre pode ser rolado. Trata-se de um esqueleto escondido no armário do BNDES. No gráfico abaixo, podemos ver a diferença entre a taxa Selic e a TJLP no período em que o PSI existiu:

3. O BNDES financia o tomador do empréstimo a uma taxa subsidiada, menor que a TJLP. Essa diferença entre a TJLP e a taxa do empréstimo é chamado de subsídio explícito, para o qual o Tesouro tem autorização para devolver a diferença (chamada de “equalização”) para o BNDES. Este é um gasto primário, e deve ser previsto no orçamento público.

Este primeiro relatório produzido pelo Tesouro mostra o tamanho da conta. Entre 2008 e 2015, os subsídios explícitos somaram a bagatela de R$ 36,8 bilhões, ou R$ 4,5 bilhões/ano. Até aí não parece muita coisa. O problema é a previsão dos subsídios explícitos e implícitos APÓS 2015. Sim, porque os contratos com o BNDES vão até 2060! Até lá, trazendo a valor presente os subsídios, a conta soma nada menos do que R$ 200 bilhões!!! Este é o valor a ser gasto para emprestar R$ 450 bilhões a juros camaradas no âmbito do PSI.

Apenas como curiosidade, segue a lista das dez maiores empresas ou empreendimentos que receberam financiamentos do BNDES entre 2007 e 2015 (a fonte está aqui).

Podemos verificar que a Petrobrás obteve nada menos que 18% do total dos empréstimos neste período. Dedicaremos um episódio inteiro à empresa. Podemos notar a presença de várias “campeãs nacionais”, como Embraer, Vale, Odebrecht, Oi e JBS, em uma política de fomento que pretendia criar “multinacionais brasileiras”, com resultados muitas vezes duvidosos. E a Caixa Econômica aparece na lista como repassadora de recursos para o financiamento de projetos de mobilidade e de construção de estádios para a Copa do Mundo.

Qual foi o racional para estabelecer um programa desse tipo? A ideia é que, ao fomentar setores escolhidos, teríamos um boom de crescimento que faria aumentar a arrecadação, tornando bem tranquilo o pagamento desses subsídios ao longo dos anos.

O problema desse tipo de raciocínio está na figura da bicicleta: para manter a bicicleta em pé, é necessário estar sempre pedalando. Usando um pouco de teoria dos jogos, não se trata de um jogo de uma rodada só. O custo do dinheiro para as empresas não pode ser baixo somente na primeira rodada, é preciso que seja sempre, caso contrário vão parar de investir na segunda rodada pelo mesmo motivo que não investiriam na primeira rodada. Não à toa, como vimos no gráfico acima, os recursos para o PSI precisavam sempre crescer, ano após ano.

Só que essa máquina de imprimir dinheiro barato tem um limite, que é justamente o limite de quem financia a festa: o comprador do título público. Quando este nota que tem algo errado na dívida pública, começa a pedir taxas de juros mais altas, aumentando o subsídio implícito do esquema, o que vai piorando a situação, até o momento em que o Tesouro não consegue mais pedalar. Então, a bicicleta cai, como aconteceu em 2015.

E o que aconteceu com o crescimento que deveria ser o resultado deste esquema? Em um relatório de efetividade produzido pelo próprio BNDES em 2015, chega-se à conclusão de que as empresas investiram mais do que se não houvesse o PSI. Isso é o óbvio, só faltava terem investido menos. A questão é entender como estes empréstimos elevaram o crescimento potencial do país, o que está longe de estar provado. Aliás, a julgar pelo crescimento do país após 2016, não houve efeito algum. Descobriu-se que crescimento econômico não é só uma questão de dinheiro barato financiado com dívida pública. Este é só UM dos problemas a serem resolvidos, e não é concedendo-se subsídio que se resolve. É preciso ter segurança das regras, dos contratos, um bom sistema judicial, pouca burocracia, infraestrutura adequada e uma longa lista de etceteras. Não, o crescimento não é uma questão de vontade política, como o governo do PT descobriu.

Esta aventura nos custou R$ 200 bilhões. Aprendemos alguma coisa?

O Sonho Acabou

O que é uma recessão? Recessão é o crescimento econômico negativo. Para entender o que significa isso, precisamos entender o que é crescimento econômico.

Quando falamos de crescimento, estamos comparando o PIB de um ano contra o PIB do ano anterior. O PIB é a soma de todos os produtos e serviços feitos em um país em um determinado ano. O IBGE tem um exemplo bem didático, que ajuda a entender como é calculado o PIB.

Considere a fabricação do pão. De forma bem simplificada, para fabricar o pão é preciso plantar o trigo, fazer a farinha e, finalmente, fazer o pão. Digamos que o agricultor venda o seu trigo para o moinho por R$ 100, o moinho venda a farinha para o padeiro por R$ 200 e o padeiro consiga fabricar 100 pães e venda esses pães para as famílias por R$ 300 (R$ 3 por pão). Em cada etapa, o lucro foi de R$ 100: o agricultor ganhou R$ 100 (considerando, de maneira bem simplista, que ele tenha tido custo zero de produção), o moinho lucrou mais R$ 100 e, finalmente, o padeiro lucrou outros R$ 100. O PIB é a soma de todos esses lucros (ou “valores agregados”). No final, o PIB foi de R$ 300, que foi o preço pago pela família.

Em uma recessão, temos não a criação de valor, mas a destruição de valor. Digamos que, no ano seguinte, o padeiro tenha conseguido vender apenas 90 pães pelo mesmo preço, faturando R$ 270. O PIB, neste caso, teria caído 10%. Sempre que uma empresa produz e vende menos do que no período anterior, sua contribuição para o PIB é negativa. Assim como, se uma empresa “queima” dinheiro em empreendimentos que não produzem lucro, sua contribuição para o PIB é negativa. A grande recessão de 2014-2016, a maior em mais de um século, foi fruto de uma queima sem precedentes de recursos em projetos megalomaníacos por parte do governo, combinada com a queda de confiança da iniciativa privada frente à instabilidade econômica e política do 2º mandato de Dilma Rousseff. A interrupção de obras por todo o país em função dos efeitos da operação Lava-Jato pode ser debitada nesta conta. Para os que acham um exagero chamar a recessão da Nova Matriz Econômica como a maior em mais de um século, temos o gráfico a seguir, em que mostramos, em cada ano, o crescimento do PIB acumulado naquele ano e no ano anterior:

Observe como o PIB recua mais de 5% no biênio 2015-2016, queda maior do que a vivida pelo país durante a Grande Depressão do início da década de 30 do século passado.

Há uma narrativa de que o crescimento econômico começou a declinar fortemente por conta da paralisação que tomou conta do país em função da operação Lava-Jato. Trata-se de uma falsa correlação. Sim, claro, a paralisação de obras cobra o seu preço no PIB, sem dúvida. Mas está longe, muito longe, de explicar toda a profunda recessão que o Brasil enfrentou no biênio 2015-16. Primeiramente, vamos observar a evolução da confiança dos empresários. Como sabemos, se os empresários não estão confiantes, não investirão e o PIB tende a sofrer. No gráfico abaixo, números acima de 100 indicam que há mais empresários avaliando a situação como positiva do que empresários avaliando a situação como negativa, e vice-versa.

Note que a confiança dos empresários (da indústria, do comércio e dos serviços) começa uma lenta mas segura tendência de queda desde 2010. Ou seja, já desde o último ano do governo Lula e durante todo o primeiro mandato de Dilma, a confiança dos empresários começou a declinar, mas ainda permanecendo acima de 100. A partir de 2014, no entanto, o instinto animal dos empresários sente que algo não vai bem. A confiança despenca desde o início daquele ano, e continua em sua queda livre até o final de 2015, iniciando sua recuperação apenas depois do impeachment. Note que o início das denúncias da Lava-Jato ocorre no final de 2014 e as empreiteiras começam a paralisar obras somente a partir de meados de 2015, quando a confiança do empresariado, de maneira geral, já está na lona. Se tomarmos a confiança dos empresários como uma medida que nos dá uma ideia do PIB futuro, podemos concluir que a Lava-Jato pouco tem a ver com este fenômeno.

Vamos analisar de outra forma. O gráfico a seguir mostra o acréscimo ou a perda do PIB medido em reais (valores já deflacionados pela inflação do período).

Podemos observar que, no ponto pior da recessão, o PIB encolheu R$ 400 bilhões em um ano. Segundo reportagem do Estadão de junho de 2017, havia R$ 90 bilhões de obras paradas, que eram tocadas por empreiteiras envolvidas na Lava-Jato.

Uma obra parada não necessariamente subtrai do PIB. O PIB diminui quando o dinheiro já investido naquela obra parada é eliminado do balanço da empresa, como se a obra não valesse nada. Normalmente não é isso o que acontece. A obra é contabilizada por algum valor, até para que possa ser vendida. Ou seja, o valor é menor (há um prejuízo que subtrai do PIB), mas não é zero. Mas digamos que, por hipótese, todas essas obras tenham sido marcadas a zero, ou seja, todo o dinheiro investido tenha virado pó. Neste caso, a Lava-Jato teria subtraído R$ 90 bilhões do PIB. E os restantes R$ 310 bilhões? Pode haver um efeito multiplicador na economia (uma obra parada acaba tendo impacto negativo sobre outras atividades), mas é preciso muito efeito multiplicador para explicar R$ 400 bilhões.

Outra narrativa frequentemente usada para a grande recessão foi a chamada “virada fiscalista” liderada pelo ministro Joaquim Levy a partir de 2015. Esta virada teria consistido em um corte brutal de despesas, em uma política de austeridade que teria afundado a atividade econômica, a qual já vinha cambaleante desde 2014. Vejamos, então, no gráfico abaixo, se houve realmente este corte de despesas.

Podemos observar que não houve corte real (acima da inflação) de despesas até agosto, quando já estávamos afundados na recessão. Pode-se até argumentar que, em uma situação de queda de PIB, o governo teria que agir contra ciclicamente, aumentando as despesas. Esta falta de despesas públicas teria piorado uma situação que já era ruim. O problema desse roteiro está justamente em sua protagonista.

Se tivesse havido uma mudança de presidente da República, a ideia de um “arrocho fiscal” seria muito mais verossímil. O problema é que a mesma pessoa que havia dito que “despesa é vida”, de repente torna-se a campeã do contingenciamento de despesas. Para que esta virada de personalidade fosse verossímil, seria necessário que houvesse um acontecimento de grande impacto, que fizesse a personagem mudar a sua própria natureza. Um roteiro sem esse grande acontecimento seria ininteligível.

Este grande acontecimento foi justamente a queda das receitas causada pela recessão que já havia começado em 2014 e a constatação de que estávamos caminhando para uma grande dificuldade de rolagem da dívida. Ao convocar Joaquim “mãos-de-tesoura” Levy para comandar o ministério da Fazenda, Dilma Rousseff como que abandonou a sua personalidade anterior para assumir uma nova. E foi levada a isso por circunstâncias incontornáveis, acima de sua capacidade de inventar uma realidade paralela.

O problema desse roteiro é explicar por que as receitas vinham caindo, o que obrigou o governo a também cortar despesas. Vínhamos de um período (até 2014, como vimos anteriormente) de gigantescos investimentos alavancados pelo BNDES e pela Petrobrás. Por que raios a atividade começou a recuar? Por que a confiança dos empresários começou a declinar? Onde exatamente o modelo anterior falhou? A prova de que falhou é justamente o início da desaceleração da economia a partir de 2014, apesar de todos os estímulos dados nos anos anteriores. Esta desaceleração antecedeu a desaceleração das despesas patrocinada por Joaquim Levy, que assim agiu porque Dilma Rousseff viu que não havia outra maneira de manter um mínimo de sanidade das contas públicas.

Portanto, culpar a desaceleração das despesas pela grande recessão de 2015-16 é fazer o rabo abanar o cachorro. As despesas foram desaceleradas (nem cortadas foram, apenas se mantiveram estáveis) porque a política anterior causou uma desaceleração anterior das receitas. A pergunta correta a se fazer é: por que, afinal, a política anterior causou a desaceleração das receitas? Culpar o remédio por ter causado a doença não parece ter lógica.

Assim, a Grande Recessão precisa encontrar explicação além da Lava-Jato e do “arrocho” de Joaquim Levy. Pode até ser que estes dois eventos tenham piorado a situação, mas não foram a sua causa principal, até por uma questão, como vimos, de coerência temporal entre os acontecimentos. Se fosse o roteiro de um filme, seria um péssimo roteiro, daquele cheio de pontas soltas, e que tornam o filme ininteligível.

A recessão que se iniciou em 2014 deve ter seus efeitos buscados antes de 2014, não depois. Uma recessão pode ser causada basicamente por três motivos:

  1. Um aperto monetário (elevação das taxas de juros): neste caso, os consumidores postergam o seu consumo e os empresários postergam os seus investimentos;
  2. Um aperto fiscal (corte de despesas governamentais)
  3. Um choque negativo na economia, que faz com que os consumidores e os empresários se retraiam: pode ser uma guerra, uma pandemia ou algum choque de confiança.

Vimos que nada disso ocorreu, pelo menos não na magnitude que justificasse a maior recessão da história brasileira. A única explicação coerente e verossímil é mais simples: o efeito anabolizante terminou, e tivemos que pagar a conta.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A economia brasileira na era PT. Episódio 3: Faz de conta que acredito em suas boas intenções

Política monetária é aquela que se refere à administração da moeda no mercado doméstico, enquanto a política cambial trata da administração da moeda no mercado externo. A primeira procura manter a inflação controlada, enquanto a segunda procura manter o equilíbrio no balanço de pagamentos. Há vasos comunicantes entre as duas políticas, porque, afinal, trata-se sempre da mesma moeda.

O governo Lula herdou do governo FHC o tripé macroeconômico: metas de inflação, câmbio flutuante e superávits primários. As duas primeiras pernas desse tripé referem-se às políticas monetária e cambial, enquanto a terceira refere-se à política fiscal, abordada no episódio anterior.

As políticas monetária e cambial, por tratar-se do controle da moeda, são atribuição do Banco Central, enquanto a política fiscal é atribuição direta do governo. Nem sempre foi assim, mas essa independência operacional do BC ganhou força durante o governo FHC e, como veremos, foi respeitada durante a fase da Grande Ilusão, que coincidiu, em grande parte, com a liderança de Henrique Meirelles à frente do BC. A coisa começa a degringolar nos Anos da Húbris, com alguns sinais já no final do governo Lula, mas atingindo o apogeu da deterioração durante o governo Dilma e seu fiel escudeiro no BC, Alexandre Tombini.

A Política Monetária

Antes de começarmos, precisamos explicar brevemente como funciona o sistema de metas de inflação. Nesse sistema, a meta serve como uma âncora de longo prazo para os agentes econômicos. Na falta de qualquer outra informação, os agentes econômicos olham para o futuro e preveem que a inflação estará em torno da meta, se o Banco Central tiver credibilidade. Este “se” é de extrema importância. Se o Banco Central cria uma fama de “leniente” com a inflação, os agentes econômicos começam a duvidar que a meta será cumprida e, consequentemente, começam a prever uma inflação no futuro acima da meta. Isso tem importância no momento de precificar taxas de juros, por exemplo: os bancos procuram “prever” a inflação futura para estabelecer as taxas de juros do crédito. Além disso, outros agentes econômicos, como empresas e até pessoas físicas, começam a querer se proteger antecipadamente de uma inflação mais alta no futuro, o que leva a uma elevação da inflação já no presente. Por isso, nesse sistema, é de grande importância que o Banco Central tenha credibilidade, ou seja, que os agentes econômicos acreditem que a autoridade monetária irá perseguir a meta de inflação ao longo do tempo.

Para que o Banco Central cumpra a sua missão, é fundamental que reaja de maneira coerente às ameaças inflacionárias, aumentando ou diminuindo os juros quando necessário, e que se comunique de maneira coerente com o mercado de taxas de juros, de modo a coordenar as expectativas dos agentes econômicos. No sistema de metas de inflação, esse conjunto de atividades do Banco Central (determinação da taxa básica de juros e comunicação com o mercado) determina o seu sucesso ou fracasso em sua missão de controlar a inflação ao longo do tempo.

Nesse sentido, o governo Lula começou com o pé direito, indicando para o Banco Central um executivo com grande credibilidade junto ao mercado financeiro, o ex-presidente do Bank Boston, Henrique Meirelles. E Meirelles, consciente do seu desafio de construir credibilidade em um mar de desconfianças, começou seguindo a receita do governo FHC: juros altos para manter a inflação sob controle. Em várias ocasiões, o BC de Henrique Meirelles mostrou ser conservador, surpreendendo o mercado e enfurecendo o setor produtivo. Por exemplo, no COPOM de 18/junho/2003, depois de ter elevado a taxa Selic de 25% até 26,50% desde o início do ano, o BC decidiu cortar a taxa Selic em apenas 0,50%. A reação foi a seguinte:

No Copom seguinte, em 23/julho/2003, a Selic foi reduzida novamente, desta vez em 1,50%, mas a reação foi a mesma:

No Copom de 21/janeiro/2004, o BC surpreende novamente o mercado, que esperava novo corte de juros, decidindo pela sua manutenção:

Esta será uma constante em praticamente todo o mandato de Henrique Meirelles à frente do BC. Em 18/setembro/2005, o próprio Armínio Fraga, presidente do BC no 2º mandato de FHC e introdutor do sistema de metas de inflação no Brasil, reconheceu a austeridade do BC de Henrique Meirelles:

O resultado foi a redução da inflação para níveis compatíveis com a meta, conforme podemos observar no gráfico abaixo, que mostra a inflação (medida pelo IPCA, em azul), e a meta (em laranja). Observe como a inflação, depois de uma grande volatilidade no início do governo Lula (muito em função da desvalorização cambial causada pelo próprio receio do mercado com relação à sua eleição), convergiu para a meta, principalmente a partir de 2006.

No entanto, estávamos no fim da fase da Grande Ilusão também na política monetária. No final de seu mandato, até Meirelles se rendeu à lógica eleitoral, e interrompeu um ciclo de alta de juros que havia sido iniciado em abril de 2010. Após apenas 3 altas, o BC deu por encerrado o ciclo, mesmo com as expectativas de inflação ainda subindo, em meio a uma forte recuperação da atividade econômica naquele ano.

Os analistas estavam corretos. No primeiro Copom do governo Dilma, o novo presidente do BC, Alexandre Tombini, precisou retomar a alta dos juros. Foi a primeira vez, desde o início do sistema de metas de inflação, que um ciclo de alta precisou ser retomado após uma breve pausa. A segunda vez seria em 2014, quando o ciclo de alta foi interrompido em abril para ser retomado na semana seguinte do 2º turno das eleições. O fato de ser também um ano eleitoral não é mera coincidência.

O BC, então, recomeça o processo de elevação dos juros. No entanto, na reunião de agosto de 2011, Tombini começa a virada que marcará, daí em diante, a sua atuação frente ao Banco Central. Surpreendendo o mercado, e sem respaldo nas expectativas de inflação, que continuavam a subir, o BC decide dar um cavalo-de-pau e reduzir as taxas de juros:

Esta foi a primeira (e, até o momento, única) vez em que o BC iniciava um ciclo de queda de juros sem que o ciclo de alta anterior tivesse tempo para fazer o seu efeito. A justificativa foi uma virada no cenário externo (na época, a situação na Europa estava realmente se deteriorando), que provocaria uma recessão global e afetaria negativamente o crescimento brasileiro e, por tabela, reduziria a inflação. Além disso, apostava-se na “austeridade” do governo Dilma. Sem dúvida, uma aposta e tanto!

De fato, a inflação saiu de 7,23% no mês de agosto de 2011, até atingir 4,92% em junho de 2012, respondendo ao aperto monetário feito até junho de 2011. Em outubro de 2012, quando a taxa Selic atingiu a mínima histórica de 7,25%, a inflação já havia subido para 5,45%, e estava em processo firme de alta. Lembrando sempre que a meta era de 4,50%. Foi então que começou a se cristalizar no mercado a convicção de que o Banco Central estava, na realidade, trabalhando com uma espécie de “meta paralela” de inflação. A meta oficial era de 4,50%, mas o mercado começou a desconfiar que o BC estava perseguindo algo entre 5,50% e 6,50%, que era o topo da meta. A exemplo de outras áreas do governo Dilma, o BC estaria “jogando com as regras debaixo do braço”, trabalhando no limite de seu mandato e não para atingir a meta oficial.

Essa desconfiança tinha a sua razão de ser. Vejamos o gráfico a seguir:

Observe como, durante os 4 anos do primeiro mandato de Dilma Rousseff (quadro pontilhado vermelho), a inflação nunca ficou abaixo da meta de 4,5%, mas ficou sempre orbitando em torno de 5,5%, o que, com o tempo, foi minando a confiança do mercado.

Mas essa falta de credibilidade do BC foi um trabalho a quatro mãos. Não somente a postura ambígua do BC começou a chamar a atenção do mercado, mas o próprio discurso intervencionista do governo contribuiu para aumentar a desconfiança. A esse respeito, é precisa a descrição da jornalista Claudia Safatle, do Valor Econômico, ao comentar a decisão do Copom de 06/03/2013, em que a diretoria do BC sinaliza que deverá iniciar um ciclo de alta dos juros na reunião seguinte, apenas 6 meses após ter encerrado o ciclo de baixa anterior:

O resultado, como vimos, foi uma inflação constantemente mais alta do que a meta ao longo do tempo, com um estouro da boiada em 2015, pós-eleição, quando os preços administrados foram liberados. Aliás, controle de preços de combustíveis e energia elétrica faziam parte da “maquiagem” da inflação. Era como usar a Petrobras e a Eletrobras para fazer política monetária. Com o fim dessa política, a inflação rapidamente chegou a 10% no final de 2015.

Alguns poderão dizer que estamos novamente com uma inflação de dois dígitos, então este BC é tão leniente quanto o da época do PT. No entanto, é preciso contextualizar e, para isso, ser-nos-á útil comparar a inflação brasileira com a inflação global. É o que fazemos no próximo gráfico:

Note como, a partir de 2011, primeiro de maneira lenta, e depois mais rapidamente, a inflação brasileira vai se descolando da inflação global, até atingir uma diferença de quase 8 pontos percentuais em 2015 (barras verdes). Agora em 2021, com o mesmo nível de inflação de 2015, a diferença para a inflação global é menor que 4 pontos percentuais. Ou seja, hoje, a inflação brasileira tem um componente global muito maior do que em 2015, quando a inflação foi essencialmente fruto da barbeiragem local.

Para finalizar, uma palavra sobre a postura intervencionista do governo Dilma nas taxas de juros, que, de resto, foi a sua marca registrada em praticamente todas as áreas da economia. O ponto alto, sem dúvida, foi o discurso da presidente por ocasião do Dia do Trabalho de 2012:

O governo Dilma já vinha usando o Banco do Brasil e a Caixa Econômica para “reduzir” as taxas de juros, mais ou menos a mesma coisa que vinha fazendo com a Petrobras para “reduzir” os preços dos combustíveis e como faria, no final deste mesmo ano, com a Eletrobras para “reduzir” os preços da energia elétrica. Ficou até famosa a campanha publicitária do Banco do Brasil, “Bom Pra Todos”, em que anunciava os juros mais baixos:

O problema, como sempre, foi a realidade. O gráfico a seguir mostra os spreads de crédito do sistema financeiro, já contando com Banco do Brasil e Caixa, para pessoas físicas e jurídicas:

Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.

Em maio de 2012, quando Dilma fez o seu incendiário discurso demonizando os bancos, o spread de crédito (quanto os bancos cobram acima da taxa básica de juros) para as pessoas físicas e jurídicas era de 26,0% e 9,6% respectivamente. A partir de então, os spreads até recuaram um pouco, mas em abril de 2016, quatro anos depois e no mês de seu impeachment, esses mesmos spreads estavam em 36,2% e 9,6% respectivamente. Ou seja, os spreads para a pessoa física haviam aumentado em 10 pontos percentuais, enquanto para a pessoa jurídica estavam no mesmo lugar, não haviam recuado.

Aprendemos (aprendemos?) que não são discursos contundentes ou o uso de bancos estatais que resolvem o problema dos juros altos. Aliás, este tipo de intervencionismo normalmente tem o efeito justo inverso: aumenta o risco percebido pelo sistema, que coloca prêmios de risco maiores nas taxas de juros para se protegerem de eventuais intervenções ou mudanças de regras de jogo no futuro.

A Política Cambial

Lula iniciou seu governo em uma situação realmente delicada, em parte criada pela própria expectativa de sua eleição, o que piorou algo que já não era bom. No gráfico abaixo, podemos observar o valor do dólar, ajustado pelo diferencial de inflação entre Brasil e EUA. Ou seja, o nível real do dólar, já descontado o efeito da inflação, o que nos dá o real poder de compra da moeda brasileira em relação ao dólar ao longo do tempo.

Observemos que Lula iniciou seu governo com o dólar próximo de R$ 7,00 a valores de hoje. Logo nos primeiros meses de seu governo, a moeda voltou para o nível de R$ 5,50, mesmo nível da segunda metade do governo FHC e, a partir de meados de 2004, engatou um processo de valorização que iria se reverter apenas brevemente durante a crise financeira de 2008 e encerrar-se em meados de 2011, com o dólar batendo R$ 2,50 em dinheiro de hoje.

Mas este foi um período de grande desvalorização do dólar globalmente. No gráfico a seguir, podemos verificar que o Real não se valorizou sozinho. Escolhemos o período que se inicia em 30/04/2003 para expurgar o overshooting pré-eleição, até o ponto de mínimo, em 31/07/2011.

Observemos que o Real foi a moeda que mais se valorizou, mas não foi a única. De modo que uma parte desta valorização foi, de fato, mérito do governo Lula, mas outra parte foi devido a um movimento global que favoreceu as moedas de países exportadores de commodities e até moedas de países mais desenvolvidos, como Franco Suíço e Iene.

Esta grande valorização do real foi firmemente combatida pelo ministro Guido Mantega, que até cunhou uma expressão para se referir a este movimento: “guerra cambial”. O jornal britânico Financial Times, nesta reportagem, foi o primeiro a chamar a atenção para este termo:

Segundo o ministro brasileiro, após a crise financeira de 2008, os países desenvolvidos, liderados pelos EUA, estariam depreciando propositalmente as suas moedas, através de estímulos monetários gigantescos. Estes estímulos monetários (que significam taxas de juros menores), acabaram, segundo Mantega, por afastar investidores destes países, que passaram a procurar rendimentos maiores em países como o Brasil, que precisam praticar taxas de juros maiores para controlar a inflação. Mantega, no melhor estilo desenvolvimentista, passou a demonizar o real apreciado, colocando nele a culpa da nossa “falta de competitividade”.

Veremos que Mantega tinha razão no diagnóstico, ainda que sua narrativa de um complô dos países desenvolvidos careça de racionalidade. De fato, como veremos mais adiante quando abordarmos a formação das reservas internacionais, uma boa parte do fluxo de dólares foi de investimentos financeiros. O problema é que os países desenvolvidos estavam procurando combater uma grande recessão, e o único instrumento monetário disponível era trazer a taxa de juros para zero. A depreciação de suas moedas é apenas um efeito colateral, não o seu objetivo maior. Mas, a narrativa desenvolvimentista sempre envolve manipulação do câmbio, e com Mantega não é diferente.

É irônico que a expressão “Guerra Cambial” tenha ganhado destaque apenas dois dias antes da megacapitalização da Petrobrás, que atraiu nada menos que R$ 21 bilhões de investidores estrangeiros.

Ou seja, ao mesmo tempo que o governo, com uma mão, amaldiçoa o fluxo de recursos do exterior, com a outra procura avidamente estes mesmos recursos para financiar as suas atividades. É um pouco como, por um lado, demonizar os credores da dívida pública, e por outro, fazer déficits que aumentam essa mesma dívida. Mas, sigamos.

Será que Mantega tinha razão? Será que fomos vítimas de uma armação dos EUA para minar a competitividade da nossa indústria via câmbio?

Bem, se você perguntar para qualquer desenvolvimentista, o câmbio sempre estará pelo menos 20% mais apreciado do que deveria estar para “impulsionar” a indústria, qualquer que seja o nível da moeda. E se, por obra e graça da providência, o câmbio estiver no “lugar certo”, faltará a garantia de que ficará ali para sempre, o que, em um regime de câmbio flutuante, é obviamente impossível de se garantir. O câmbio é o preço de nossa moeda, e qualquer tentativa de se controlar preços é inócua, e pode até ser perigosa. Em nossa história econômica já vivemos muitas crises de balanço de pagamentos, justamente porque o câmbio foi “tabelado”, o que sempre acaba por redundar em escassez de moeda forte. O câmbio flutuante é uma benção, e desde a sua adoção, em 1999, não sabemos mais o que é crise de balanço de pagamentos. Ao contrário, por exemplo, de nossos vizinhos ao sul.

A reação do governo Lula foi a de tentar conter o fluxo de capital estrangeiro através de taxação e outras medidas que puniam o ingresso de recursos. A estreia dessa estratégia ocorreu em 20/10/2009, quando o governo estabeleceu uma alíquota de IOF de 2% sobre o investimento estrangeiro em renda fixa e bolsa.

Essa foi apenas a primeira de uma série de medidas que se sucederiam alucinadamente nos 4 anos seguintes, como podemos observar no gráfico a seguir (em vermelho temos as intervenções para fazer o dólar subir, enquanto em verde são as intervenções para fazer o dólar cair):

Estas intervenções são tão deletérias para o bom funcionamento do mercado cambial, que uma das principais exigências para a adesão à OCDE é justamente a eliminação de cobrança do IOF em operações neste mercado. O governo do PT, em linha com sua visão de mundo, usou e abusou desses instrumentos, com resultados pífios do ponto de vista da cotação da moeda que, como vimos, segue leis macroeconômicas próprias. É um pouco como a criança que pretende segurar as ondas do mar com suas mãozinhas.

Para terminar este episódio, vamos entender de onde vieram as reservas internacionais acumuladas durante o governo do PT, uma das grandes conquistas alardeadas pelo partido.

A construção das reservas internacionais

O acúmulo de reservas internacionais é um dos grandes legados do governo Lula. Este fato é cantado em verso e prosa toda vez que se acusa o governo do PT de ter sido um mal para a economia brasileira. De fato, trata-se de um seguro que nos dá o conforto de afastarmos a ameaça de uma crise de balanço de pagamentos, tão comum ao longo da história econômica brasileira. A falta de dólares sempre foi um fator de desestabilização. A manutenção de um sistema de câmbio quase fixo durante o primeiro mandato de FHC quase nos quebrou, exaurindo as poucas reservas que tínhamos. Tivemos que fazer um acordo com o FMI, acordo este que foi encerrado durante o primeiro governo Lula, fato que o ex-metalúrgico faz questão de lembrar com justificável orgulho.

No gráfico a seguir, podemos observar a evolução de nossas reservas (a parte hachurada cobre todo o período dos governos do PT):

Observe como as reservas começam a decolar em 2006 e principalmente em 2007, fazem uma pausa em 2008 e atingem o nível atual em 2012, já no governo Dilma. Portanto, o grosso das reservas atuais são construídas em 5 anos, entre 2007 e 2011, em grande parte na fase que chamo de Anos da Húbris.

Vamos entrar no detalhe de como essas reservas foram construídas. Para tanto, precisamos entender como os dólares são obtidos pelo governo brasileiro.

Como imprimimos reais e não dólares, é preciso que estrangeiros estejam dispostos a comprar os nossos reais com os seus dólares. Isso acontece, basicamente, através de dois canais: receitas correntes e investimentos financeiros.

As receitas correntes de um país (chamada de “conta corrente”) são formadas por três componentes: 1) a balança comercial (o comércio de mercadorias com outros países), 2) a balança de serviços (os serviços que consumimos e fornecemos para outros países) e 3) o pagamento de juros e dividendos.

Já o investimento financeiro é constituído de dois componentes: 1) o Investimento Estrangeiro Direto (chamaremos de IED daqui em diante) e 2) os investimentos em títulos (ações e renda fixa). Em primeiro lugar, vamos ver de onde vieram as reservas observando o comportamento da conta corrente e dos investimentos financeiros no gráfico a seguir:

Observe como os anos de 2007 a 2014 são caracterizados por um grande fluxo de investimentos financeiros (barras laranjas). O fluxo foi tão grande que mais que compensou o déficit em conta corrente até 2012 (barras azuis), fazendo com que sobrasse recursos. Esses recursos (bolinhas brancas) são as reservas. Portanto, o que permitiu construir as reservas foi o fluxo financeiro para o país, principalmente a partir de 2009.

Antes de continuarmos, vamos explorar esta distinção entre conta corrente e investimento financeiro. É importante entender essa diferença, porque nos diz sobre a permanência desses recursos no Brasil. No caso da conta corrente, o dinheiro que entra é nosso. Como foi fruto do comércio, vendemos mercadorias e o dinheiro passa a ser nosso, não precisamos devolvê-lo no futuro. Já o fluxo financeiro não é nosso. Trata-se de um dinheiro “emprestado”. No caso do IED, trata-se de um empréstimo de longo prazo, que será cobrado na forma de juros e dividendos ao longo dos anos, quando não pela venda do empreendimento e repatriação do dinheiro. Veremos adiante que a conta dos juros e dividendos não é pequena. Já o investimento em títulos (ações e renda fixa) pode ser resgatado a qualquer momento. Por isso, é preciso ter muito cuidado ao dizer que podemos usar as reservas para isso ou para aquilo. Na verdade, as reservas são nossas somente se a conta corrente é positiva. Como a nossa conta corrente é negativa, usamos uma parte do fluxo financeiro para pagar esses gastos. Portanto, estamos na verdade em débito. Se, de uma hora para outra, todos os investimentos estrangeiros resolvessem sair do país, não teríamos dólares para pagar a todos, pois usamos uma parte do dinheiro que entrou para pagar o nosso déficit em conta corrente. Por isso, é bom tratar bem os investidores estrangeiros. Vejamos, no gráfico abaixo, o detalhamento desse fluxo financeiro:

Podemos observar que grande parte desses recursos foram Investimentos Estrangeiros Diretos (barras laranjas), ou seja, recursos, em tese, de mais longo prazo para investimentos no país. Digo em tese, porque uma parcela desses recursos entrou como empréstimos intercompanhias, o que poderia ser interpretado como um simples fluxo financeiro. Também tivemos um grande fluxo para a compra de ações (barras amarelas), principalmente em 2007, 2009 e 2010, ano da megacapitalização da Petrobrás.

Por outro lado, a conta corrente brasileira foi negativa em grande parte desse período. Vejamos no gráfico a seguir:

Observe como a conta corrente torna-se positiva somente durante um breve período (de 2003 a 2006), passando a ficar novamente negativa a partir de 2008. O aumento do saldo da balança comercial (barra laranja) é o grande responsável pelo equilíbrio da conta corrente até 2007. A partir de 2010, a conta corrente torna-se bem mais negativa, principalmente porque a balança de serviços (“pobre viajando de avião”) e o pagamento de juros e dividendos começam a cobrar o seu preço. Em outras palavras, o crescimento da renda da população, que começa a demandar serviços do exterior, e o pagamento dos investimentos estrangeiros feitos no passado fazem com que a conta corrente torne-se bastante negativa. No entanto, ainda teríamos um bom fluxo de investimentos estrangeiros para cobrir essa conta, e as reservas permaneceram intactas.

Há, neste ponto, portanto, um grande equívoco, ao relacionar a ascensão da China como potência global, puxando o consumo de commodities, e a constituição das reservas. Sim, há um aumento do saldo positivo da balança comercial neste período. Mas vimos que o grande responsável pela constituição das reservas foi o fluxo financeiro (mais especificamente, o Investimento Estrangeiro Direto). Além disso, como podemos ver no gráfico abaixo, a China vai ganhar importância na balança comercial muitos anos depois da constituição das reservas.

Note que a participação das exportações para a China, de fato, sobe de praticamente zero até o ano 2000, para 5% em 2003, ficando neste patamar até 2007. Ou seja, neste período em que as exportações se elevam, a única região que ganha importância relativa é o Mercosul, que havia perdido muito nos anos anteriores. Na realidade, de maneira geral, as participações das diversas regiões se mantêm mais ou menos constantes durante todo esse período. A China vai ganhar relevância somente a partir do ano de 2009. Mas, como vimos, o saldo da balança comercial está longe de ser brilhante neste período.

Pode-se argumentar que, enquanto é verdade que a China cresce de maneira relevante como parceiro comercial somente após 2009, não é menos verdade que as nossas exportações alcançaram um novo patamar após a ascensão do PT ao poder. Este novo patamar pode ser visto no gráfico abaixo, que divide a balança comercial entre exportações e importações:

De fato, as exportações crescem de algo como US$ 50 bilhões até 2002 para quase US$ 200 bilhões em 2008, atingindo US$ 250 bilhões a partir de 2011. Esse salto permitiu aumentar igualmente as importações, o que significa uma maior abertura da economia brasileira ao mundo, o que costuma ser benéfico para o aumento da renda e da produtividade. É o que chamamos de corrente de comércio, a soma das exportações e importações.

Mas vamos analisar em detalhe a corrente de comércio brasileira no gráfico a seguir:

Quando medimos a corrente de comércio em percentual do PIB, como é a norma para a comparação da abertura comercial entre países, podemos observar que a nossa corrente de comércio cresce de 13% para 21% do PIB ainda no segundo mandato de FHC, e fica oscilando entre este patamar e 24% do PIB até a Grande Crise Financeira, quando cai para baixo de 20% do PIB, oscilando entre 17% e 20% do PIB até o fim do governo PT. Não há realmente nada de excepcional aqui. O aumento da corrente de comércio em dólar reflete o aumento do PIB em dólar, tanto pela valorização do real como pelo próprio crescimento do país neste período.

Portanto, não devemos buscar na soja ou no minério de ferro a explicação do grande montante de reservas internacionais acumulados nesse período. A reservas foram constituídas porque o governo Lula se mostrou confiável durante os anos da Grande Ilusão, a ponto de atrair investimentos estrangeiros, então abundantes no mundo. Tratava-se de um governo de esquerda com políticas macroeconômicas razoáveis, fazendo uma combinação irresistível para este investidor. Realmente uma pena que tenha sido somente uma Grande Ilusão.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A economia brasileira na era PT. Episódio 2: Pedala, Dilma!

Um governo ortodoxo é caracterizado, basicamente, por manter os fundamentos que permitem a estabilidade da moeda ao longo do tempo. Estes fundamentos são a disciplina fiscal e o controle da inflação. Ou, em economês, a política fiscal e a política monetária. Neste episódio, exploraremos a política fiscal e, no próximo, a política monetária dos governos do PT.

Sem balançar o barco

A responsabilidade fiscal do primeiro mandato de Lula é comumente citada como prova de que o ex-presidente é confiável do ponto de vista de equilíbrio macroeconômico. De fato, tendo herdado uma média de superávit primário do governo FHC de 2,5% ao ano, o governo Lula produziu uma média de superávit primário muito próxima, de 2,3% ao ano, até 2008, conforme podemos ver no gráfico a seguir.

No entanto, a Grande Crise Financeira internacional, em 2008, fez com que o governo do PT tivesse o álibi perfeito para abrir os cofres e diminuir o superávit primário para uma média de 1,7% ao ano nos anos seguintes, até 2013. Este álibi consistiu na necessidade de investimentos públicos para manter a economia brasileira em crescimento, mesmo com uma desaceleração brutal da economia global. Ficou famosa a frase de Lula, de que a crise global seria apenas uma “marolinha” nas praias brasileiras. A crise financeira internacional se transformou em uma leve recessão em 2009, muito menor do que no mundo desenvolvido.

Para entender o que aconteceu neste período, ser-nos-á útil acompanhar o crescimento das despesas e das receitas no gráfico a seguir:

Este gráfico mostra o crescimento real de despesas e receitas do governo federal, ou seja, o crescimento acima da inflação. Nos “Anos da Grande Ilusão” (2003 – 2008), as despesas cresceram 6,6% ao ano em termos reais, mas este crescimento foi suportado pelo crescimento de 7,0% ao ano das receitas neste período. Já nos “Anos da Húbris”, as despesas cresceram mais ou menos no mesmo ritmo do período anterior. O problema foi que as receitas cresceram muito menos, cerca de 5,4% ao ano, explicando, então, a diminuição do superávit primário neste período e preparando a cena para o desastre do período seguinte. Na parte final, os “Anos da Economia em Vertigem”, as despesas até que foram contidas, crescendo apenas 2,4% ao ano, mas as receitas despencaram, reduzindo-se em quase 4% ao ano. Foi este gap que produziu os déficits primários deste período.

Os petistas costumam dizer que o problema do desequilíbrio fiscal não foi causado por um descontrole das despesas, mas por uma queda abrupta das receitas. Não deixam de ter razão, uma vez que as despesas foram desaceleradas de maneira bastante forte no período final, mas, mesmo assim, não foram capazes de evitar o aumento do déficit, devido à desaceleração ainda maior das receitas.

O problema é que esta narrativa, como dizia Roberto Campos, é como biquini: mostra tudo, mas esconde o essencial. Para entender o essencial, precisamos nos colocar onde tudo começou.

Os atores assumem seus lugares no palco

Os grandes acontecimentos da história normalmente começam de maneira discreta, sem que se note. No caso da grande recessão brasileira, podemos datar o início da sua pré-história em 21 de junho de 2005, por ocasião da nomeação de Dilma Rousseff como ministra da Casa Civil, substituindo José Dirceu, alvejado pelo Mensalão.

Com isso, Lula decide-se por colocar na Casa Civil uma pessoa com perfil técnico, diferente do seu antecessor, que atuava na articulação política. E é este perfil que definirá os próximos passos da política econômica do governo Lula.

Em 09 de novembro de 2005, pouco mais de 4 meses depois de ser nomeada, Dilma mostra a que veio, desautorizando estudos do ministério do Planejamento, ainda sob o comando de Paulo Bernardo, que previa um aumento estrutural do superávit primário de modo a reduzir a dívida pública ao longo dos próximos anos e, assim, levar a uma queda estrutural das taxas de juros nos 10 anos seguintes.

Vale a leitura atenta do trecho da entrevista concedida pela ministra ao Estadão, na qual Dilma, em sua linguagem peculiar, define a sua visão de mundo a respeito do tratamento das contas públicas:

A ministra começa por reconhecer que, para crescer, é necessário diminuir a dívida pública. Mas, então, por alguma manobra mental difícil de alcançar, troca a ordem dos fatores: segundo a ministra, a dívida pública só não vai crescer se os juros forem baixos. Isso é um truísmo matemático, mas de pouca serventia para resolver o problema dos juros altos. Ocorre que os juros só caem se a dívida pública for reduzida. Dilma fala como se as taxas de juros estivessem sob domínio do governo, e não fossem um preço determinado pelo mercado. “Uma política de juros consistente”, nas palavras da ministra, significa algum controle mágico em que o governo reduz os juros na marra. Veremos essa política em todo o seu esplendor quando a ministra se tornar presidente da República.

A seguir, Dilma coloca corretamente a dificuldade política de um ajuste fiscal. Afinal, sempre há gastos a serem feitos. Mas o plano do ministério do Planejamento é justamente aproveitar o momento favorável para as contas públicas (o superávit, naquele ano, estava caminhando para 6% do PIB) para aumentar a meta sem abrir mão dos gastos correntes. Afinal, é justamente este o mantra de quem defende um orçamento “contracíclico”: gastar mais (em relação ao PIB) quando a economia está crescendo pouco, e gastar menos quando a economia está acelerando. O plano era gastar menos, aproveitando o bom momento da economia brasileira, fruto dos ajustes realizados nos anos anteriores e da aceleração do crescimento chinês, que puxava todos os produtores de commodities. Mas Dilma não pensa assim. É nesta entrevista que a ministra solta a frase que irá eternizá-la: despesa é vida.

A arrogância de quem sabe tudo transparece em cada frase da ministra, mesmo quando solta platitudes do tipo “sempre teremos despesas correntes”. Esta arrogância irá lhe custar a governabilidade alguns anos depois. Mas, continuemos a nossa história.

Em 27 de março de 2006, o então presidente do BNDES, Guido Mantega, sucede no ministério da Fazenda a Antônio Palocci, alvejado pelo escândalo do caseiro.

Lula poderia ter substituído Palocci por outro ministro de linha ortodoxa, mas escolhe alguém que juntar-se-á a Dilma para implementar a política econômica que levaria o país ao céu antes de lançá-lo no inferno.

Com a mudança dos ventos, o time de profissionais ortodoxos que fez parte do primeiro time de Palocci começa a abandonar o barco. O primeiro foi Marcos Lisboa, já em abril de 2005, seguido por Joaquim Levy em março de 2006 (no mesmo dia da saída de Palocci). Para o lugar de Levy, na estratégica secretaria do Tesouro, Mantega inicialmente nomeou o também ortodoxo Carlos Kawall, profissional com experiência no mercado financeiro. Mas esta nomeação não durou muito. Em dezembro de 2006 Kawall também abandona o barco, sendo substituído por um secretário interino até a nomeação, em junho de 2007, de Arno Augustin, o mago da “contabilidade criativa”, que acompanharia Dilma e Mantega até o fim do 1º mandato da presidente, em dezembro de 2014. Augustin foi o mais longevo secretário do Tesouro desde a criação do cargo, em 1986, o que diz muito sobre o Brasil desses tempos.

Portanto, a questão da queda brutal das receitas a partir de 2014 é apenas uma parte da história, e que exploraremos com mais detalhe no Episódio 4, sobre o crescimento econômico. As despesas cresceram de maneira relevante durante os governos do PT por uma questão ideológica. “Despesa é vida”, e não se pode cortar a “vida” sem conversar com os 180 milhões de russos, quer dizer, brasileiros. Tivesse Palocci tido sucesso em seu plano de ajuste fiscal, as contas brasileiras estariam em estado muito melhor para enfrentar os momentos mais difíceis que viriam depois.

O efeito de superávits primários insuficientes foi a queda insuficiente da dívida pública. Talvez não exista gráfico mais ilustrativo das três fases dos governos do PT do que o da dívida pública:

Este gráfico mostra a evolução da dívida bruta do governo geral ao longo dos governos do PT. A dívida bruta é o total devido pelo governo, representado pela soma de todos os títulos públicos detidos pelos investidores. Se, em algum momento, os compradores dos títulos públicos resolvessem resgatá-los e pedir o dinheiro de volta, este seria o montante devido. A dívida líquida, por outro lado, subtrai da dívida bruta os ativos do governo, principalmente as reservas internacionais e os empréstimos para os bancos públicos, principalmente o BNDES. Portanto, as reservas internacionais e o dinheiro emprestado para o BNDES fazem aumentar a dívida bruta (é preciso emitir títulos para ter este dinheiro), mas não a dívida líquida.

No esquema a seguir, ilustramos a relação entre dívida líquida e dívida bruta:

Sendo assim, para emprestar dinheiro para o BNDES, o governo precisa emitir dívida. Mas é a dívida bruta que aumenta, a dívida líquida permanece igual, porque, de um lado, o governo é devedor dos detentores de títulos públicos, mas do outro lado, é credor do BNDES. Ocorre que nem todos os ativos do BNDES vão ser recebidos, haja vista empréstimos duvidosos, como para o metrô de Caracas ou para construir estádios para a Copa do Mundo. Se estes empréstimos não são recebidos, no final é o governo que sofre o prejuízo, porque o BNDES não tem condições de devolver o dinheiro emprestado para o governo. É neste ponto que a dívida líquida se transforma em dívida bruta.

No gráfico a seguir, podemos comparar o comportamento das dívidas bruta e líquida do governo neste período.

Como vimos anteriormente, a dívida bruta praticamente para de cair a partir de 2009, mas a dívida líquida continua recuando até 2014, quando também começa a aumentar em função dos déficits fiscais. Esta diferença de comportamento ocorre basicamente por causa do aumento do orçamento do BNDES, que afeta a dívida bruta mas não a líquida. Ou seja, o esforço fiscal, a partir de 2009, foi usado para aumentar o orçamento do BNDES. Veremos isso com mais detalhe no Episódio 4, sobre crescimento econômico.

Durante muitos anos, os analistas financeiros prestaram mais atenção para a dívida líquida, esquecendo-se que, no final do dia, é a dívida bruta que precisa ser paga, e o dinheiro do BNDES pode não estar disponível quando se fizer necessário. Veremos este conceito voltar à frente, no Episódio 5, quando falarmos da capitalização da Petrobrás.

Observe, no gráfico anterior, os momentos em que a S&P, uma das principais agências de avaliação de risco, concede e retira o chamado Grau de Investimento. O Brasil fez parte dessa elite de países mais confiáveis durante pouco mais de sete anos. Lula estufava o peito, apontando o reconhecimento das agências internacionais como uma espécie de medalha a confirmar a qualidade da gestão econômica do PT. De fato, chegamos no Grau de Investimento ao final dos anos da Grande Ilusão, mas os Anos da Húbris semearam a sua perda durante os Anos da Economia em Vertigem.

A preocupação de Palocci com o tamanho da dívida era legítima. Se compararmos a dívida pública brasileira com a média da dívida de outros países emergentes, veremos que a nossa é muito superior:

Uma dívida pública muito grande deixa menos margem de manobra para absorver choques externos e para fazer política monetária, pois uma taxa de juros que incide sobre uma dívida mais alta gera maior pagamento de juros. Isso é o que nos leva a um déficit nominal (déficit primário mais o pagamento de juros) maior, conforme podemos ver no gráfico a seguir:

Observe como as barras laranjas vão diminuindo ao longo dos anos a partir de 2003 para aumentarem abruptamente em 2015, quando a dívida explode em conjunto com o aumento das taxas de juros. Voltamos ao mesmo ponto de 2003 (pouco mais de 8% do PIB em pagamento de juros), mas sem ter o mesmo superávit primário que compensava este pagamento. O resultado foi um déficit nominal brutal em 2015, de mais de 10% do PIB, o que piora ainda mais a situação das contas públicas, pois esse déficit precisa ser rolado, aumentando a dívida.

Um novo capitão para salvar o barco

A deterioração das contas públicas a partir de 2013 e, com mais velocidade, a partir de 2014, faz com que Dilma dê um cavalo de pau em sua política fiscal, anunciando, 20 dias depois de reeleita, Joaquim Levy, ex-secretário do Tesouro no primeiro governo Lula, para o ministério da Fazenda.

Mas note que, como sempre, a virada ortodoxa se faz acompanhar de um molho heterodoxo. Nelson Barbosa é um economista ligado ao PT, com ideias ortodoxas até a página 2. Estará ali, como Guido Mantega esteve quando Palocci era ministro da Fazenda, na reserva para quando a sua presença se fizer necessária ou oportuna. No caso de Guido Mantega, a sua promoção para o ministério da Fazenda em 2006 se deu após Lula se sentir suficientemente confiante em adotar a agenda econômica do PT, capitaneada por Mantega e Dilma Rousseff.

No caso de Barbosa, a sua entrada em cena no lugar de Joaquim Levy se dará para apagar as luzes do governo Dilma, já em dezembro de 2015. Mas esta foi uma troca apenas protocolar: na prática, Levy já havia deixado de ser ministro da Fazenda desde agosto, quando foi vencido na proposta de orçamento para 2016 prevendo déficit primário, o que não acontecia desde o longínquo ano de 1998. Não sem antes o governo tentar a volta da CPMF sem sucesso.

O final do governo Dilma foi melancólico sob vários pontos de vista, mas talvez o aspecto fiscal seja o mais saliente, pois foi aqui que tivemos o motivo técnico para o impeachment: as chamadas “pedaladas fiscais”.

Da contabilidade criativa às pedaladas fiscais

É difícil identificar a origem do termo “pedaladas fiscais”. Trata-se de um tema árido, que envolve os meandros da contabilidade pública, e é de difícil tradução para o público leigo. Não à toa, muitos dos que criticaram o processo de impeachment utilizaram justamente esta dificuldade de entendimento para alegar que Dilma foi derrubada por conta de “filigranas técnicas”. Que são técnicas, não tem dúvida. Mas não foram, de maneira alguma, apenas “filigranas”. As pedaladas envolveram bilhões de reais ao longo de anos, afetando o entendimento do real estado das contas públicas.

As pedaladas fiscais foram o ápice do que se convencionou chamar de “contabilidade criativa”. Arno Augustin, secretário do Tesouro desde junho de 2007, foi o autor intelectual de várias manobras contábeis que permitiram “turbinar” as contas públicas sem que fosse preciso economizar dinheiro de verdade. Dois exemplos vão ilustrar a prática. Assim como estes, há vários outros casos.

Em agosto de 2010, o Tesouro “vendeu” ao BNDES o direito de receber os dividendos da Eletrobrás nos anos seguintes.

O dinheiro recebido à vista (R$ 1,4 bilhão) engordou o superávit primário. A questão é que este dinheiro saiu do cofre do próprio Tesouro, foi para o BNDES como “empréstimo” (o que, como vimos, não afeta o superávit primário) e voltou na forma de um “pagamento” do BNDES, o que afeta positivamente o saldo primário do governo. Então, o Tesouro mandou R$ 1,4 bilhão para o BNDES, o BNDES devolveu esse dinheiro para o Tesouro, e por causa do critério contábil adotado, essa operação fez o superávit primário crescer em R$ 1,4 bilhão. Ou seja, sem arrecadar um tostão a mais, o superávit do governo engordou. Claro que essa operação teve um custo: o BNDES adiantou um dinheiro para o Tesouro, e cobrou juros sobre isso. Além disso, subtraiu recursos que poderiam entrar no caixa do Tesouro no futuro e que fariam falta para fechar as contas.

Várias outras operações dessa natureza foram realizadas, normalmente envolvendo a capitalização de um banco público (BNDES e Caixa) em contrapartida de pagamento adiantado de dividendos por parte desse banco. A capitalização não afetava a dívida líquida do Tesouro (por ter uma contrapartida do outro lado) e os dividendos engordavam o superávit primário. Foram tantas operações dessa natureza, que os técnicos do Tesouro se viram obrigados a alertar o então secretário Arno Augustin sobre a perda de credibilidade fiscal, em tensa reunião de novembro de 2013, revelada pelo Estadão no início de dezembro e depois descrita em mais detalhe por esta reportagem do jornal Valor Econômico de 11 de dezembro de 2015, em função de operações que faziam aumentar o superávit fiscal de maneira fictícia. A principal recomendação é a que vai a seguir, sugerindo a interrupção de operações desse tipo:

O segundo exemplo foi bem mais famoso: a megacapitalização da Petrobras. Em 2010, o governo promoveu uma chamada de capital dos acionistas para investir na exploração do pré-sal e em outros investimentos da empresa. Ocorre que o Tesouro, obviamente, não tinha como acompanhar essa capitalização, dado que não tinha dinheiro em caixa. Para não perder o controle sobre a empresa, o governo “vendeu” para a Petrobras barris de petróleo a serem explorados, dado que o petróleo pertence à União e é somente explorado pela Petrobras. Com o dinheiro da venda desses barris antes mesmo de terem sido explorados, a União pagou a sua parte na capitalização. Claro, o preço do barril foi completamente arbitrário e decidido pelo governo à revelia dos acionistas minoritários. Mas este é um problema que exploraremos no Episódio 5, dedicado à Petrobras.

A coisa não parou por aí. O governo não só não precisou desembolsar dinheiro para manter a sua participação na empresa, como produziu receita adicional que reforçou o superávit primário! Para entender a mágica, preste atenção ao esquema abaixo.

Passo 1: os troux… aos otár… os acionistas minoritários capitalizam a empresa com dinheiro vivo (R$ 42 bilhões) e recebem ações em troca.

Passo 2: aqui ocorre a mágica. O Tesouro deveria entrar com um grande montante de dinheiro (cerca de R$ 75 bilhões) para manter a sua participação no capital da Petrobrás, montante obviamente não disponível no seu caixa. Mas isto não era problema para o mago da contabilidade criativa, Arno Augustin. O Tesouro fez basicamente duas manobras para não só manter sua participação na empresa, como também aumentar o superávit primário daquele ano! Acompanhe:

2a) O Tesouro “vende” para a Petrobrás 5 bilhões de barris a serem explorados no pré-sal ao custo de R$ 75 bilhões. Claro que este valor foi arbitrário e não fruto de um certame competitivo. Como saber se este valor foi o justo? Essa foi uma das principais críticas ao processo todo, pois o governo, como parte interessada e acionista majoritário, estabeleceu discricionariamente um preço que definiu a sua participação na capitalização da empresa. A Petrobrás pagou o Tesouro com ações no valor de R$ 43 bilhões e mais R$ 32 bilhões em dinheiro. Este montante entrou no caixa do Tesouro, aumentando o superávit primário daquele ano. Arno Augustin rebateu as críticas do mercado, dizendo que o governo FHC havia feito a mesma coisa com as concessões de telefonia:

O secretário do Tesouro “esqueceu-se” de um pequeno detalhe: os recursos da privatização da telefonia foram obtidos em um leilão aberto e competitivo, que atraiu investimento de verdade. No caso da capitalização da Petrobras, o dinheiro foi obtido pela venda antecipada de um petróleo cuja viabilidade ainda era uma incógnita por um preço arbitrado pelo próprio governo e pago por uma empresa do próprio governo. Na prática, o governo mudou o dinheiro de bolso, da Petrobras para o Tesouro.

2b) O montante de ações emitidas pela Petrobras no passo acima não era suficiente para manter a participação do governo na empresa. Então, vem a segunda parte da mágica: o Tesouro empresta dinheiro para o BNDES e para o Fundo Soberano no valor de R$ 35 bilhões. Estes empréstimos não afetam as medidas de endividamento líquido, somente a dívida bruta, pois ao mesmo tempo que o Tesouro concede o empréstimo, contabiliza um crédito junto a essas entidades. Este dinheiro servirá para que essas entidades entrem como acionistas na capitalização.

(Apenas um parêntese antes de continuarmos: não falaremos do Fundo Soberano aqui, uma excrecência inventada pelo governo do PT justamente para viabilizar este tipo de manobra. Fundos Soberanos existem em países com grandes superávits em conta corrente e que guardam esses superávits como uma poupança para o futuro. O Brasil tem grandes déficits em conta corrente, não tem o que guardar. A ideia era ter um instrumento para guardar a grande receita que viria com a exploração do pré-sal. Uma insanidade típica desses Anos da Húbris. Fecha parênteses).

Passo 3: BNDES e Fundo Soberano entram com R$ 35 bilhões, recebendo ações em troca. Completa-se a mágica.

No final do processo, sem aumentar em um real a sua dívida líquida e aumentando o superávit primário em R$ 32 bilhões, o Tesouro (em conjunto com BNDES e Fundo Soberano) aumentou sua participação de 40% para 48% do total do capital da Petrobras. Um truque de mestre!

Até aqui temos o time jogando com as regras debaixo do braço. A partir de um determinado momento, o jogo passou a ser em desacordo com as regras.

As chamadas “pedaladas fiscais” significam atrasar despesas devidas, utilizando a força do governo junto a órgãos do Estado. Os balanços dos bancos estatais e principalmente do BNDES foram utilizados para “esconder” despesas do governo. O mecanismo é relativamente simples: digamos que o governo esteja devendo R$ 100 para o BNDES. Se o governo não pagar o que está devendo, este dinheiro não aparece como despesa, inflando o superávit do governo naquele ano. Foi assim que os superávits foram produzidos, principalmente de 2013 em diante.

O primeiro sinal de que alguma coisa estava fora do lugar veio de uma despretensiosa notícia no Estadão, em 11 de julho de 2014, sobre uma misteriosa “conta paralela” em um banco privado, que permitiu um superávit primário R$ 4 bilhões maior do que aquele calculado pelo Banco Central.

Na mesma reportagem do Valor Econômico citada acima, um técnico do Tesouro afirma que este evento foi importantíssimo, pois mudou a dinâmica dos debates internos sobre as “pedaladas”, que ganharam maior urgência. Este sinal indicava que além dos bancos públicos, bancos privados também estavam sendo usados pelo Tesouro para atrasar pagamentos. Não à toa, a mesma reportagem no Estadão diz que as despesas do INSS vinham apresentando “dinâmica incomum”. E, como sabemos, as aposentadorias são pagas, em grande parte, pelos bancos privados.

Foi-se descobrindo, aos poucos, outras “contas negativas” no sistema financeiro, que estavam servindo para encobrir o rombo das contas públicas. Por exemplo, em dezembro de 2013, o BC pediu explicações para a Caixa Econômica Federal sobre um saldo negativo de R$ 3,1 bilhões em suas contas de pagamento do Bolsa Família.

A coisa toda foi completamente desmascarada em investigação do TCU. Vale aqui reproduzir um trecho da ata da assembleia do TCU que apreciou o recurso apresentado pela União, em dezembro de 2015, à condenação das pedaladas pelo tribunal (grifos meus):

Ainda que a utilização de recursos próprios da CEF para o pagamento de despesas de responsabilidade da União esteja prevista em cláusula de contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes […], isso não significa que o adiantamento não possua a natureza de operação de crédito. Por óbvio, não é possível considerar dívidas bilionárias e prolongadas no tempo como mero fluxo de caixa, ainda mais quando se sabe que a insuficiência dos repasses não decorreu de imprecisão de cálculo do valor dos benefícios que seriam pagos, mas de ação deliberada e consciente de se valer de recursos próprios da instituição financeira, seja por insuficiência de caixa do Tesouro, seja para maquiar o resultado primário do governo, seja porque o governo preferiu destinar aqueles recursos que deveriam ser repassados para as instituições financeiras para dar suporte a despesas outras que deveriam ter sido contingenciadas, mas não o foram, com a finalidade de obter dividendos eleitorais de forma ilícita.”

Portanto, segundo o TCU, houve operação de crédito entre um banco público e seu controlador, o que é expressamente vedado pela Lei de Responsabilidade Fiscal. Esta foi a motivação técnica para o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, e está longe de ser uma “filigrana contábil”. Foram bilhões de reais “emprestados” pela Caixa, BB e BNDES para o Tesouro ao longo de, pelo menos, três anos.

Quando uma família vive acima de suas possibilidades, exibe para o público externo uma imagem que não corresponde à realidade. Sua casa, seus carros, suas roupas, suas viagens sinalizam uma riqueza que não existe. Pode demorar, mas a realidade acaba batendo à porta, e aquela mentira é desmascarada pelos fatos. Assim foi o Brasil governado pelo PT: uma grande mentira, na base do crédito e de manobras contábeis, que acabou sendo desmascarada pela maior recessão da história brasileira.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A economia brasileira na era PT. Episódio 1: Brilha Uma Estrela

“Um povo que não conhece sua História está fadado a repeti-la.” (Edmund Burke)

Em 27/10/2002, 22 anos, 8 meses e 17 dias depois de sua fundação, o PT chegava ao posto máximo da República. O ex-torneiro mecânico e ex-sindicalista Luís Inácio Lula da Silva conseguia finalmente realizar o sonho da esquerda brasileira. O PT governou o país durante exatos 4.880 dias. Ou 13 anos, 4 meses e 11 dias. Foi o período mais longevo em que um único partido dirigiu os destinos do país desde o fim do Estado Novo, em 29/10/1945, quando Getúlio Vargas deixou o comando do país depois de 5.474 dias no poder.

Vamos acompanhar, ao longo de 8 episódios, o governo do PT do ponto de vista da economia. Veremos que se trata de um todo, e não uma sucessão de períodos sem conexão entre si. Na campanha eleitoral desse ano, alguns esperarão que Lula, em um terceiro mandato, seja o mesmo de seus primeiros anos. Outros esperam que faça o mesmo governo de seu segundo mandato. E todos, que não repita os erros cometidos pela sua sucessora, Dilma Rousseff. No entanto, veremos ao longo destes episódios, que cada fase já estava contida, em germe, na anterior. Não existe uma solução de continuidade, mas apenas o desabrochar de uma flor, cuja semente foi plantada no período anterior.

Grosso modo, podemos dividir o governo do PT, do ponto de vista da economia, em 3 partes:

1) O período que vai de 2003 até a Grande Crise Financeira, em 2008, que chamo de “Anos da Grande Ilusão”. Recebe este nome porque todos se iludiram neste primeiro momento, em que o governo Lula adota políticas macroeconômicas em linha com seu antecessor, fazendo-nos crer que o Brasil havia, finalmente, chegado a um grau de maturidade institucional que nos permitiria dar o grande salto para frente.

2) O período que vai da Grande Crise Financeira até as manifestações de 2013, que chamo de “Anos da Húbris”. O termo “húbris” vem do grego, e serve para designar o excesso de soberba e autoconfiança. Na tradição do teatro grego, significa o desafio aos deuses levado pelo excesso de arrogância e presunção. Daí vem o aforismo: “Aquele a quem os deuses querem destruir, primeiro deixam-no louco”. Naquela reportagem daquela famosa capa da Economist, de novembro de 2009, a revista detecta justamente este risco:

3) O período que vai das manifestações de junho de 2013 até o impeachment, que chamo de “Anos da Economia em Vertigem”. O título desse período é autoexplicativo. O país cai vítima justamente dos excessos cometidos no período anterior. A húbris cobra a sua fatura. A mesma Economist detecta essa queda em mais uma capa famosa, de setembro de 2013.

A datação dessas três fases pode variar um pouco, a depender do aspecto da política econômica que estaremos analisando. Mas, de qualquer modo, nos será útil para entender o mindset que determinou o curso das ações tomadas.

Neste primeiro episódio, vamos abordar a pré-história do governo PT, através da análise da Carta ao Povo Brasileiro. Em seguida, veremos a montagem da equipe econômica que tocaria os 3 primeiros anos do governo PT, que fariam possíveis os Anos da Grande Ilusão.

A pré-história: Carta ao Povo Brasileiro

A chamada “Carta ao Povo Brasileiro” é geralmente considerada o ponto de partida do 1º governo Lula do ponto de vista econômico, a prova de que estávamos tratando com um político pragmático, que obedeceria aos cânones ortodoxos da economia. Publicada em 22/06/2002, quando Lula já abria uma vantagem considerável sobre o seu adversário José Serra nas pesquisas (40% contra 21%, segundo pesquisa Datafolha), tinha como intenção acalmar os mercados. Não foi à toa: o dólar atingiu o recorde de R$ 2,85 naquele mês, o que, ajustado pela inflação, corresponderia a R$ 6,00 nos dias de hoje.

A íntegra da carta está aqui. A ideia era mostrar que Lula havia deixado para trás o seu discurso mais raivoso, e iria governar com prudência e sabedoria. Os seguintes parágrafos ilustram o ponto (os grifos são meus):

O caminho das reformas estruturais que de fato democratizem e modernizem o país, tornando-o mais justo, eficiente e, ao mesmo tempo, mais competitivo no mercado internacional. O caminho da reforma tributária, que desonere a produção […] Da reforma previdenciária, da reforma trabalhista

Será necessária uma lúcida e criteriosa transição entre o que temos hoje e aquilo que a sociedade reivindica. O que se desfez ou se deixou de fazer em oito anos não será compensado em oito dias. O novo modelo não poderá ser produto de decisões unilaterais do governo, tal como ocorre hoje, nem será implementado por decreto, de modo voluntarista. […] Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país.

Ninguém precisa me ensinar a importância do controle da inflação. Iniciei minha vida sindical indignado com o processo de corrosão do poder de comprar dos salários dos trabalhadores.

Vamos preservar o superávit primário o quanto for necessário para impedir que a dívida interna aumente e destrua a confiança na capacidade do governo de honrar os seus compromissos.”

A estabilidade, o controle das contas públicas e da inflação são hoje um patrimônio de todos os brasileiros. Não são um bem exclusivo do atual governo, pois foram obtidos com uma grande carga de sacrifícios, especialmente dos mais necessitados.”

Estas palavras deveriam soar como música aos ouvidos do mercado. No entanto, ninguém estava disposto a pagar antes de receber a mercadoria. O dólar ainda bateria R$ 3,95 (mais de R$ 8,00 em dinheiro de hoje) em outubro, para somente a partir daí engatar um lento caminho de desvalorização, que se encerraria somente em 2011.

Antes de continuarmos, gostaria de chamar a atenção para dois pequenos trechos da Carta aos Brasileiros, que acabaram por se perder no meio das juras de amor à estabilidade. Em ambas, vemos as concessões de Lula ao pensamento de sempre do PT: o crescimento econômico como remédio para a dívida pública, crescimento este alcançado com câmbio depreciado e política industrial.

A volta do crescimento é o único remédio para impedir que se perpetue um círculo vicioso entre metas de inflação baixas, juro alto, oscilação cambial brusca e aumento da dívida pública.”

Com a política de sobrevalorização artificial de nossa moeda no primeiro mandato e com a ausência de políticas industriais de estímulo à capacidade produtiva, o governo não trabalhou como podia para aumentar a competitividade da economia.”

Não são, de maneira nenhuma, afirmações incorretas no seu fim. O crescimento econômico, de fato, é remédio para todos os males. O problema é como se chega ao crescimento econômico. Essas frases deixam entrever uma preferência por fortes políticas anabolizantes, que têm no Estado o grande coordenador econômico do país, e que veremos ganhar corpo ao longo do seu segundo mandato. No programa do PT, vemos com mais nitidez algumas dessas ideias. Por exemplo (os grifos são meus):

Nosso governo estará chamado a incentivar uma profunda mudança estrutural nos sistemas produtivos, especialmente aqueles intensivos em alta tecnologia. Por isso, dará especial atenção aos setores que tenham possibilidade de disputar mercados e investimentos internacionais e de vencer a forte concorrência existente. Isso significa que as políticas governamentais deverão também intervir seletivamente na reestruturação dos setores de ponta, a começar do complexo eletroeletrônico, do setor de bens de capital e da indústria química.

Apesar da crescente desnacionalização e privatização do setor financeiro brasileiro, há ainda elementos neste sistema que podem e devem ser recuperados na construção de um novo modelo de financiamento capaz de alavancar o crescimento interno e reduzir a dependência de recursos externos. O primeiro deles se refere às instituições especiais de crédito, tais como o BNDES, a Caixa Econômica Federal, o Banco do Brasil, o Banco do Nordeste (BNB) e o Banco da Amazônia (BASA).

De qualquer forma, Lula foi muito prudente logo no início de seu mandato. O menos que ele precisava era uma crise de balanço de pagamentos e o descontrole da inflação.

A Equipe Econômica dos primeiros 3 anos

Lula estreou fazendo exatamente aquilo que prometera na Carta aos Brasileiros. Em primeiro lugar, escolheu uma equipe econômica de perfil ortodoxo. Para o ministério da Fazenda, escalou o então prefeito de Ribeirão Preto, Antônio Palocci, que havia feito um trabalho exemplar de saneamento das contas do município. Palocci, por sua vez, escolheu Joaquim Levy para a secretaria do Tesouro, e Marcos Lisboa para a secretaria de Política Econômica. Assim, as duas principais secretarias do ministério estariam sendo comandadas por ortodoxos de quatro costados. Para o BC, Lula escolheu o ex-presidente do BankBoston e deputado eleito pelo PSDB, Henrique Meirelles, que manteve a diretoria de Armínio Fraga. Na última reunião do COPOM do governo FHC, o BC elevou os juros de 22% para 25% para combater um duro processo inflacionário que o país enfrentava naquele momento. Sob os aplausos de Palocci.

No front político, após semanas de negociações, Lula, em uma decisão que teria repercussões alguns anos depois, deixa o PMDB de fora do seu governo, o que vai dificultar a governabilidade. Seria um ministério com a presença maciça de membros do PT.

Entre estes membros, em outra decisão que teria repercussões futuras, nomeia a então secretária de energia do RS, Dilma Rousseff, para o ministério das Minas e Energia, e o economista do PT, Guido Mantega, para o Ministério do Planejamento, e que depois assumiria o comando do BNDES. Também no ministério da Fazenda, Arno Augustin, que terá papel de destaque na fase seguinte do governo, foi nomeado secretário-adjunto.

Assim como na Carta aos Brasileiros o domínio de ideias ortodoxas fez passar quase despercebido o flerte com o desenvolvimentismo, o ministério econômico de Lula, dominado pelos ortodoxos, ofuscou a presença de elementos-chave que estariam prontos para tomar o poder quando chegasse o momento. Fosse um governo inequivocamente ortodoxo, esses elementos sequer chegariam perto de postos governamentais. Mas Lula precisa balancear a sua necessidade de estabilizar os mercados com o seu desejo de implementar uma política desenvolvimentista, que está no DNA do PT. Essa mescla vai lhe permitir dar o salto quando chegar a oportunidade.

A reforma da previdência do governo Lula

Além dos fundamentos macroeconômicos, esta primeira fase do governo do PT se notabilizou também por algum ímpeto reformista. Logo em seu primeiro ano, o governo Lula emplacou uma reforma da previdência dos funcionários públicos.

Foi em 11/dez/2003, após uma tramitação de sete meses pelo Congresso. Lula seguiu a cartilha segundo a qual reformas impopulares devem ser aprovadas no primeiro ano do mandato. Com esta reforma, os servidores aposentados passaram a recolher 11% de seus rendimentos para a previdência, além de extinguir a integralidade dos funcionários públicos admitidos dali em diante, ou seja, o pagamento de aposentadoria igual ao último salário recebido na ativa.

Tratava-se de uma reforma dura com o funcionalismo, somente possível de ser feita em um governo do PT. Foi aprovada com votos do PSDB e PFL, a oposição da época, e com votos contra do PT, incluindo o de Heloísa Helena, que seria expulsa do partido por conta deste episódio e formaria o PSOL. Esta seria a primeira e única reforma de grande porte do governo do PT em seus longos 13 anos no poder.


Leia todos os episódios da série A Economia Brasileira na Era PT:

Episódio 1: Brilha Uma Estrela

Episódio 2: Pedala, Dilma!

Episódio 3: Faz de Conta que Acredito em Suas Boas Intenções

Episódio 4: Na Base do Anabolizante

Episódio 5: Manual Para Quebrar uma Empresa

Episódio 6: Cuidado! Alta Tensão!

Episódio 7: Fact Checking

Episódio 8: Uma Alegoria da Era PT

Extra: Teaser da 2a Temporada

A economia brasileira na era PT. Teaser.

Um partido político organizado para levar a economia do país a outro patamar.

Um político pragmático e que, como ninguém, sabe como iludir o público, mistificando a realidade.

Uma neófita teimosa, com ideias muito firmes sobre o funcionamento da economia.

Esta mistura explosiva testará os limites do sistema econômico brasileiro.

Não perca, a nova série do Gutflix:

A 1ª temporada estará na sua timeline de três em três dias. Confira!

08/06: 1º Episódio – Brilha uma estrela

O PT chega ao poder e demonstra as melhores das boas intenções. Será que podemos confiar?

11/06: 2º Episódio – Pedala, Dilma!

Depois de gastar como se não houvesse amanhã, o governo do PT se vê sem saída, a não ser varrer o problema para debaixo do tapete.

14/06: 3º Episódio – Faz de conta que eu acredito nas suas boas intenções

A inflação come solta, mas o Banco Central faz cara de paisagem enquanto o governo segura os preços como pode.

17/06: 4º Episódio – Na base do anabolizante

Durante algum tempo, tivemos a ilusão de que cresceríamos em ritmo chinês. Foi só ilusão.

20/06: 5º Episódio – Manual para quebrar uma empresa

A triste história da maior empresa brasileira durante a era PT.

23/06: 6º Episódio – Cuidado: alta tensão!

Normalmente, se não tomamos cuidado, é o sistema elétrico que nos dá um choque. Na era do PT, foi o governo que deu um choque no setor elétrico!

26/06: 7º Episódio – Fact Checking

O PT se diz o campeão das políticas sociais. Será mesmo?

29/06: 8º Episódio – A melhor alegoria da era PT

No último episódio desta temporada, uma única história sintetiza tudo o que representou a era PT para a economia brasileira.

30/06: Extra: Teaser da 2a temporada

Depois dessa primeira temporada, vamos ver se os brasileiros se animam a pedir uma segunda temporada nas eleições deste ano.