Tentei recortar um ou outro trecho da matéria acima, mas logo notei que se trata de uma peça única de rara beleza, desde o seu título, passando pela linha fina e pela legenda da foto, até o conteúdo todo.
Vamos começar por um detalhe pitoresco: Lula se reuniu durante 1-2-3-4 (quatro) horas com sua contraparte argentina. Quatro horas! Quando tenho reunião no trabalho, passou de uma hora a reunião começa a ficar terrivelmente improdutiva. Fico imaginando quatro horas de reunião. E, claro, Lula está com a agenda doméstica sussa, tem quatro horas do filé mignon do seu dia para gastar com o companheiro.
E foram quatro horas porque a visita foi só “de cortesia”, não foi oficial. Foi como se o vizinho aparecesse no meio da noite para pedir uma xícara de açúcar pra completar a receita do bolo. Quatro horas pra encontrar onde a empregada guarda esse diacho do açúcar. E não encontrou. Lula afirmou que Fernandez sai sem o açúcar, quer dizer, o dinheiro, mas “com muita disposição política”.
“Disposição política” deve ser o pito que Lula prometeu dar no FMI. “Tire a faca do pescoço do meu amigo!”, Lula dirá, assim que encontrar alguém do FMI. O FMI emprestou US$ 42 bilhões para os argentinos em condições elogiadas até por Joseph Stiglitz, um verdadeiro negócio de pai para filho. Hoje, esse dinheiro já sumiu, e os argentinos não estão pagando nada. A faca, na verdade, está com Fernández.
Não satisfeito de ter gasto 4 horas de seu dia para prometer “disposição política”, Lula enviará Haddad para Buenos Aires na semana que vem. Outro que também está sem nada para fazer aqui no Brasil, Haddad vai gastar o seu tempo pra tentar resolver o problema dos argentinos. Claro, como sabemos, trata-se de “linhas para exportação como a China faz”, então a coisa será travestida de ajuda aos exportadores. Mas, lembre-se sempre de perguntar: se os argentinos não arrumarem dólares para pagar, quem ficará com o mico?
No final, um sopro de esperança: Dilma pode dar uma mãozinha com linhas do banco dos BRICs. Dessa forma, repartiríamos o prejuízo em 4, com nossos companheiros dessa barca furada. Ao contrário do FMI, o banco dos BRICs não colocaria a faca no pescoço dos hermanos.
Enfim, de tudo isso, parece ficar cada vez mais claro que está difícil de achar o açúcar. O roto não consegue ajudar o esfarrapado, a não ser com um ombro companheiro, o que Lula chama de “disposição política”. Ele promete “todo e qualquer sacrifício”. Só não disse de quem.
Esse é o verdadeiro motivo da visita-relâmpago de Fernandez ao Brasil: juntar forças com Lula a fim de evitar que alguém do estilo de Bolsonaro vença as eleições de outubro. Lula o ajudará por motivos ideológicos, travestidos de razões comerciais.
Acabaram os dólares em poder do governo argentino, e isso os deixa em uma situação complicada, pois não conseguem fornecer dólares ao importadores para que esses possam importar bens.
Mas realmente faltam dólares na Argentina? Provavelmente, não. A classe média argentina deve possuir bilhões de dólares, nos colchões e em contas no exterior. Os argentinos formaram a segunda maior torcida na Copa do Mundo no Catar. E não se vai à Copa do Mundo sem dólares.
Por que, então, o governo argentino não consegue colocar as mãos nesses dólares? Por que os argentinos não vendem seus dólares ao governo em troca de pesos? Simples: falta de confiança. Ninguém confia que o governo fará a lição de casa para controlar a inflação. Portanto, ninguém quer pesos.
O governo argentino mantém um câmbio de faz-de-conta, enquanto o dólar no mercado paralelo tem ágio de quase 100%. Para estimular os exportadores de soja a liberarem seus dólares, o governo inventou o “câmbio-soja”, a 300 pesos por dólar. O câmbio oficial está em 230, o paralelo a quase 500. Óbvio, os exportadores não querem nem saber. A solução, claro, passa por parar de fazer de conta que o câmbio é 230, para o governo ter alguma chance de colocar as mãos nos dólares dos exportadores de soja. Mas e a inflação, que já está em mais de 100% ao ano? Seria necessário, então, dar um choque brutal de juros, derrubando a atividade econômica. Em ano de eleição? Nada feito. Mais fácil pedir dinheiro para o Lula.
Sim, tem o efeito da seca. Mas é aquela história: quem não se prepara para os tempos ruins (que sempre vêm), sempre lamenta o azar. Quando a maré é boa, todo governante é um gênio. É nos tempos de dificuldades que se distingue quem realmente fez a lição de casa. Como dizemos no mercado, é quando a água da piscina baixa que se vê quem estava nadando pelado.
A pergunta que não quer calar é: se os próprios argentinos não confiam no governo de seu país e mantém suas reservas em dólares, por que os brasileiros deveriam confiar?
A história é a seguinte: para o país A comprar coisas do país B, precisa usar a moeda do país B ou dólares, que é moeda coringa, aceita universalmente. Qualquer dessas duas moedas não podem ser impressas na Casa da Moeda do país A. O país A só consegue a moeda do país B ou dólares se vender coisas para o país B ou receber investimentos em dólares. Mas, para tanto, é preciso que os exportadores do país A (aqueles que vendem coisas para o país B e recebem dólares ou moedas do país B ) estejam dispostos a vender esses dólares para o governo do país A, em troca da moeda do país A. Quando esses exportadores não querem fazer isso, preferindo segurar os dólares ou mesmo se recusando a exportar, o governo do país A não tem os dólares para repassar aos importadores. O comércio, então, para.
Troque “país A” por Argentina e “país B” por Brasil. Os dólares acabaram na Argentina, simplesmente porque ninguém mais quer pesos em troca dos dólares. O peso virou um papel pintado inútil. Alberto Fernandez vem ao Brasil para tentar vender seus papéis pintados aqui. Como ele faria isso? Crédito.
A coisa funciona assim: a Argentina não tem reais, mas o Brasil tem. Então, o BNDES dá uma linha de crédito para o exportador brasileiro, que consegue os reais adiantados pela sua venda para a Argentina. O governo argentino promete de pés juntos que, no futuro, irá conseguir os dólares necessários para fornecer ao importador argentino, que, então, pagará a sua dívida com o exportador brasileiro que, por sua vez, pagará a sua dívida com o BNDES. Agora, preste atenção no truque: se o importador argentino não conseguir os dólares, o mico preto fica no ombro do BNDES, não do exportador brasileiro. Ninguém é louco de emprestar para a Argentina em moeda forte, só o FMI e o BNDES. Portanto, é o BNDES que passará a ser credor da Argentina.
Já vimos esse filme antes. A historinha que vão contar é que o financiamento será dado ao exportador, que com isso poderá vender para os argentinos, fazendo uma venda que movimentará a economia brasileira. Bullshit. O dinheiro não é da Argentina, que não colocará a mão no bolso (mesmo porque, o bolso está vazio). O dinheiro é do BNDES, que emprestará para o exportador brasileiro. MAS, o devedor final não será o exportador brasileiro, mas o importador argentino, com a garantia do governo argentino. São eles que precisarão arrumar os dólares para pagar o BNDES.
Para não se perder nesses esquemas, sempre pergunte: quem está correndo o risco de crédito? Quem sobrará com o mico se o devedor não pagar? No caso, certamente não será o exportador brasileiro. Portanto, será o BNDES. Para o exportador brasileiro e para Alberto Fernandez será um excelente negócio. Já para os brasileiros…
Há um ano, eu comentava aqui artigo do economista Joseph Stieglitz, elogiando o acordo do FMI com a Argentina. Segundo o Nobel, pela primeira vez o FMI estava agindo corretamente, fechando um acordo “flexível”, em que o país não seria submetido a um “arrocho” sem sentido.
Bem, como era previsível, a tal “flexibilidade” não foi suficiente. Fernández vai pedir o penico para o FMI e, para tanto, pediu a ajuda de Biden. Pessoas e governos, quando se trata de dívida, costumam agir da mesma forma: trabalham no limite das possibilidades. Mais “flexibilidade” significa limite maior. E, não tenha dúvida, esse limite será utilizado. Daí, quando acontece um “imprevisto” (no caso, a maior seca dos últimos 90 anos), não há espaço de manobra. Se tem algo previsível, é que sempre ocorrerão imprevistos, seja na vida das pessoas, seja na vida dos governos.
Ao FMI não restará outra alternativa, a não ser ”flexibilizar” ainda mais o maior acordo da história com algum país, no que será novamente aplaudido por Stieglitz e seus amigos. Até que outro ”imprevisto” ocorra, e outra “flexibilização” seja solicitada. Enquanto isso, a lição de casa da austeridade vai ficando para depois, pois sempre teremos Paris, quer dizer, Washington.
O aliado de Lula na Argentina entrou com um processo de impeachment contra os juízes da Suprema Corte. Não, não foi um discurso em um carro de som ou uma fala no cercadinho da Casa Rosada. Alberto Fernández encaminhou, para o Congresso, um pedido formal de impeachment de todos os juízes do Supremo.
Procurei, na matéria de página inteira, incluindo a reportagem e a análise, os termos “democracia”, “anti-democrático”, “separação de poderes”, “estado democrático de direito” ou “autoritário”. Saí de mãos vazias. Alberto Fernández, assim como Lula, é um verdadeiro democrata. Sua ação contra o Supremo argentino certamente é inspirada pelos mais altos ideais democráticos.
Mas, claro, estou aqui buscando falsas simetrias. Bolsonaro é muito diferente de Alberto Fernández. Um é autoritário por natureza, o outro é um democrata por natureza. As suas naturezas tornam bem diferentes atos semelhantes somente na superfície. Não é o que se faz, mas quem faz.
A favor de Lula, temos que o presidente nunca orquestrou qualquer movimento contra o Supremo, mesmo durante o processo do mensalão, que condenou vários próceres do partido. Não sabemos se por convicção ou falta de ocasião. Mas uma coisa é certa: se ocorresse, seria um movimento dentro dos cânones do Estado Democrático de Direito. Afinal, Lula é um democrata.
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, apela à “consciência” da comunidade internacional para fechar um acordo com o FMI. Seria cômico se não fosse trágico. Afinal, governos de esquerda costumam demonizar a instituição financeira multilateral, representante, segundo essa visão, dos interesses imperialistas. Mas sabe como é, na hora que falta pão, o pacto com o diabo parece barato.
Qual a dificuldade de um país como a Argentina fechar um acordo com o FMI? Apesar das histórias que se contam por aí, de que até o próprio FMI teria abandonado a tara pela austeridade fiscal, a realidade nua e crua é que, para soltar o dinheiro, o FMI exige do governo argentino um plano de… austeridade fiscal. Difícil, não é mesmo?
Lula se gaba de ter sido em seu governo que pagamos a dívida com o FMI e termos dispensado a sua ajuda de uma vez por todas. É verdade. Mas um pouco de história nos permitirá entender o que, de fato, aconteceu.
Em primeiro lugar, nos será útil entender para que serve o FMI. Não é difícil. Para tanto, basta entender que esse papel pintado que nós, brasileiros e argentinos, chamamos orgulhosamente de real e peso, nossas moedas nacionais, não passam de dinheiro de banco imobiliário para transações internacionais. Não são aceitos em lugar algum (quer dizer, o real é aceito na Argentina, o que é um indicativo do buraco em que los hermanos se meteram). Então, para pagar pela importação de produtos, é necessário ter um papel pintado aceito globalmente. Isso no oficial. No paralelo, os próprios cidadãos do país não confiam mais na própria moeda, e buscam abrigo em um dinheiro garantido por um governo sério. Então, o FMI serve para emprestar dólares, para que o país continue funcionando com alguma inserção internacional.
Agora que entendemos para que serve o FMI, vamos voltar um pouco no tempo. Mais especificamente, para a década de 90. No Brasil tivemos a eleição de FHC e, na Argentina, de Carlos Menem. Em comum, ambos foram políticos de esquerda que implementaram programas de governo “neoliberais”, incluindo privatizações e ajuste fiscal. Ambos os governos também usaram o mesmo instrumento para estabilizar a inflação: o controle do câmbio. Os argentinos, sempre mais sanguíneos, optaram por um sistema radical, o currency board, em que a paridade do austral (a então moeda argentina) com o dólar era garantida em lei pelo próprio governo. Aqui no Brasil optamos por algo mais flexível, mais de acordo com a nossa malemolência: o Banco Central mantinha uma certa paridade do real com o dólar, mas permitia uma desvalorização de cerca de 8% ao ano. Funcionava como uma espécie de currency board, mas sem regra escrita.
No início, as experiências argentina e brasileira funcionaram bem: a inflação caiu a níveis civilizados e a classe média estava contente, podendo viajar para a Disney todo ano com o dólar barato. Mas como não há artificialidade que sempre dure, distorções começaram a se acumular nas duas economias. Como ambos os governos não fizeram a lição de casa fiscal, a inflação acumulada começou a pressionar o esquema do câmbio fixo. Bastava uma fagulha para fazer explodir o barril de pólvora. Essa fagulha veio com as grandes desvalorizações cambiais dos países asiáticos em 1997 e a quebra da Rússia em 1998. Nesse dominó, Brasil e Argentina eram as próximas pedras a cair.
E é exatamente nesse ponto da história que os destinos de Brasil e Argentina se separam. No Brasil, FHC, já no início de seu segundo mandato, decide deixar o câmbio flutuar e implementa o que se convencionou chamar de “tripé macroeconômico”: câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários. Com isso, as distorções causadas pelo câmbio fixo desaparecem, e a inflação passa a ser combatida de maneira ortodoxa, com política fiscal (superávit primário) e política monetária (taxa de juros). Lula pega esse esquema já pronto e dá continuidade por alguns anos. Isso nos deu a oportunidade de cavalgar a ascensão da China com um câmbio competitivo, o que nos permitiu acumular as reservas cambiais que temos até hoje. Esse foi o contexto do “adeus ao FMI” de que tanto Lula se orgulha.
Já na Argentina, tanto Carlos Menem, como seu sucessor, Fernando de la Rua, insistem na continuidade do currency board, apesar das já evidentes distorções causadas pelo sistema. O resto da historia é conhecida: a saída do currency board é caótica, não menos do que a saída de De La Rua pelo teto da Casa Rosada. Dois presidentes caem em seguida, até que Nestor Kirchner é eleito em 2003. À diferença de Lula, Kirchner não tem uma “herança bendita” para administrar, o que lhe deixa livre para implementar a sua agenda “desenvolvimentista” desde o início, coisa que Lula só começará a fazer no segundo mandato e em bases muito mais sólidas, construídas em vários anos de ortodoxia. A Argentina, portanto, não teve condições de surfar a onda da China, e seus problemas em conseguir moeda forte se sucedem desde então.
Essa é a história. Alberto Fernández, legítimo sucessor de Menem, De La Rua, Kirchners e Macri, é mais um presidente argentino de joelhos diante do FMI porque se recusa a (ou não tem as condições políticas para) fazer a lição de casa ortodoxa. E antes que um sorriso superior se desenhe em sua boca, saiba que o Brasil caminha, a passos lentos mas seguros, para o mesmo destino, se continuarmos a fazer de conta que controlamos as contas públicas. A realidade sempre bate à porta. Sempre.
Os congelamentos de preços no final da década de 80 não deram certo porque os consumidores não podiam contar com modernas tecnologias.
Agora não mais! O governo da Argentina está disponibilizando um app para que os fiscais do Fernandez possam efetivamente acompanhar o cumprimento do congelamento. Agora sim, não tem como dar errado!
O “mercado” é um ente curioso. Reagiu bem ao “pacote” de medidas do novo governo da Argentina, pela simples razão de não ter sido um pacote que aumenta irresponsavelmente gastos públicos. Se o “pacote” vai resolver os problemas da Argentina, isso é outro detalhe.
Depois de sua posse, Alberto Fernandez afirmou que não vai mais “sacrificar” os que já estão sacrificados, e que a solução para os problemas econômicos da Argentina será a mais indolor possível. Este pacote é um exemplo disso. Só tem um detalhe: não vai resolver nada. A impressão que fica é que não sabem o que fazer. Exemplo disso é o prazo de 180 dias para estudar como não reajustar as tarifas energia. Estão tentando resolver a quadratura do círculo, e nem 180 anos seriam suficientes para encontrar uma solução.
Obviamente, a paciência do povo vai terminar muito antes disso, e o governo populista de Alberto Fernandez será levado a tomar medidas de acordo com sua natureza. Quando isso ocorrer, o “mercado” será tomado de “surpresa”. O “mercado” é um ente curioso.
O vigia noturno aqui da empresa disse que vai se inspirar no novo presidente da Argentina: só vai pagar sua dívida com o Bradesco quando tiver um aumento de salário.