Lei ad hominem

Duas reportagens sem relação entre si tratam do mesmo assunto: quais as consequências de longo prazo dos supostos abusos do judiciário ocorridos nos últimos dias?

A primeira é uma notinha na Coluna do Estadão, em que “advogados próximos a Lula” (leia-se Prerrogativas) estariam preocupados com o afastamento do governador do DF por Alexandre de Moraes, atropelando o STJ, que seria a instância adequada, no caso.

Na segunda, um estudioso condena o uso da palavra “terrorismo” por Alexandre de Moraes para qualificar os atos de 08/01. Segundo o especialista, a lei anti-terrorismo no Brasil não abriga atos com motivação “política-ideológica”, o que seria o caso.

Em ambos os casos, chama-se a atenção para a jurisprudência criada, que poderia se voltar contra outros atores do quadro político brasileiro, como o próprio Lula ou outros petistas e os movimentos sociais.

Ou seja, a questão não é o que está certo ou errado, mas qual a consequência para o meu grupo político. Se, de alguma forma, a lei abrigasse punição apenas para bolsonaristas, não haveria preocupação. Uma lei ad hominem poderia permitir que Alexandre de Moraes atropelasse o STJ ou classificasse os atos de 08/01 como terrorismo sem que isso significasse algum tipo de risco para grupos políticos associados à ”defesa da democracia e das causas sociais”. Quem sabe esse não seja o próximo passo.

Arbítrio do bem

Excelente matéria hoje, no Estadão, relembra o histórico e analisa as ações do STF, na pessoa do ministro Alexandre de Moraes, no combate aos chamados “atos contra o Estado Democrático de Direito”.

De todos os juristas entrevistados, o testemunho do desembargador aposentado, Wálter Maierovitch, é o mais simbólico de toda essa história. Maierovitch afirma que tudo o que Alexandre de Moraes está fazendo encontra-se à margem do sistema jurídico brasileiro, mas se justifica porque o “sistema de pesos e contrapesos” da democracia brasileira deixou de funcionar, com o Congresso não votando pelo impeachment do presidente.

Com esse cândido reconhecimento de que os fins justificam os meios, o ex-desembargador se junta à ministra Carmen Lúcia, que afirmou ser contra qualquer tipo de censura em uma decisão em que ela própria censurava um vídeo “pelo bem da democracia”. Maierovitch e Carmen Lúcia fazem parte daquele clube de juristas que acreditam que “a história deve ser empurrada para frente”, caso as instituições não cumpram o seu papel. No caso, trata-se do conceito, abordado na reportagem, de “democracia militante”, em que as instituições democráticas devem usr todos os meios para defender-se, mesmo aqueles fora do Estado Democrático de Direito. Trata-se de um bom debate.

A reportagem faz o paralelo com a operação Lava-Jato, que teria igualmente atropelado o devido processo legal para prender políticos corruptos. Esse paralelo é, obviamente, uma falácia. Basta três segundos de raciocínio para concluir que todas as decisões da Lava-Jato foram revisadas e referendadas por duas instâncias superiores da justiça. Por outro lado, a única instância revisora do inquérito do fim do mundo é o próprio colegiado do STF, que aprovou a sua continuidade com um acachapante 10 x 1. A partir daí, Alexandre de Moraes tem agido sozinho, sem revisão alguma de suas decisões, a não ser em casos muito particulares, como o da prisão do deputado Daniel Silveira. Não, não há termos de comparação entre o inquérito das fake news e a operação Lava-Jato.

A quebradeira em Brasília parece ter dado razão ao ministro e a todos os apoiadores de seus atos. Afinal, era disso que se tratava desde o início, evitar que os golpistas atentassem contra as instituições democráticas. Nesse sentido, no entanto, podemos dizer que Alexandre de Moraes falhou miseravelmente em sua missão, ao não evitar que as coisas chegassem a esse ponto. Cada caco de vidro no chão dos três poderes é testemunha de seu lamentável fracasso. Poder-se-ia pensar que o inquérito das fake news evitou algo ainda pior. Resta saber o que poderia ser pior. A reeleição de Bolsonaro?

A matéria começa afirmando que, quando um ministro do STF é tietado como Alexandre de Moraes o foi na diplomação de Lula, é sinal de que algo está fora de lugar nas instituições. Eu diria que, quando uma reportagem dessa natureza é editada na grande imprensa, é porque o desconforto com essa situação já começa a extrapolar os círculos bolsonaristas. O “arbítrio do bem” começa a ser questionado, e isso terá consequências.

Longa vida à democracia brasileira!

Jamais diria que a presença do presidente e do vice-presidente do TSE, o tribunal que conduziu as eleições no Brasil, na festa de celebração da diplomação do presidente eleito, é imoral.

Jamais afirmaria que ministros do STF frequentarem a casa de um advogado com interesses na Suprema Corte é um retrato acabado da república brasileira.

Jamais ousaria dizer que os ministros só fazem isso porque estão certos de que nada nem ninguém poderá condená-los. Afinal, sendo a encarnação do Estado Democrático de Direito, não podem fazer nada errado ou imoral.

Não afirmei nada do que vai acima, pois tenho consciência de que não posso e não devo atacar as sacrossantas instituições democráticas.

Longa vida à democracia brasileira!

O “pacificador”

Jabuti não sobe em árvore, se ele está lá é porque alguém colocou.

Esse ditado é útil quando precisamos explicar algo que parece estranho. No caso, uma reportagem sobre o papel “pacificador” do ministro Ricardo Lewandowski no TSE. São dessas reportagens que um leitor experimentado de jornal se pergunta: quem colocou esse jabuti na árvore do Estadão?

A matéria é fofoca de bastidor de poder, e interessa a quem quer passar a imagem de Lewandowski como um ministro imparcial, que segurará a onda do espalha-brasas Alexandre de Moraes. Como evidência de sua isenção, a reportagem cita o fato de que Lewandowski não teria ido presencialmente à leitura do manifesto pela democracia no Largo de São Francisco, para não parecer partidário. E, pasmem, seu exemplo teria sido “seguido” pelos outros ministros. Como se Lewandowski tivesse essa ascendência toda sobre o colegiado.

(Um parênteses antes de continuar. Ironicamente, a reportagem atesta o caráter partidário do tal manifesto, ao destacar a “isenção” do magistrado. Se fosse somente pela democracia, qual seria o problema da presença do ministro? Fecha parênteses)

Coincidentemente, na página anterior, temos a decisão do TSE de mandar suspender as peças publicitárias da campanha de Bolsonaro, citando reportagem da revista Veja com o depoimento de Marcos Valério ligando o PT ao PCC.

A peça entrou na categoria de “fake news”, quando apenas repercute uma matéria da chamada grande imprensa. Efetivamente Marcos Valério disse o que disse, e cabe à campanha de Lula desmenti-lo, não ao TSE. Nessa mesma linha, por exemplo, a campanha de Lula deveria ser proibida de usar a matéria do UOL sobre a compra de imóveis com dinheiro vivo por parte da família Bolsonaro. A rigor, as campanhas deveriam estar proibidas de usar qualquer reportagem que possa denegrir a imagem de algum candidato.

A relatora do caso havia decidido liminarmente pela manutenção da propaganda. Adivinha o ministro que abriu divergência? Sim, o mesmo que lutou com incansável denodo contra Joaquim Barbosa no caso do mensalão, o mesmo que rasgou a Constituição para manter os direitos políticos da presidente cassada Dilma Rousseff, o mesmo que votou contra a prisão em 2a instância para evitar a prisão de Lula, o mesmo que votou pela suspeição de Moro e devolveu os direitos políticos a Lula. Esse é o “pacificador” da cena política nacional, segundo uma matéria que surgiu do nada.

Não há saída fora das instituições. Portanto, o Brasil precisa funcionar com essa Suprema Corte que aí está. Mas, pelo menos, os ministros poderiam nos poupar de ler reportagens plantadas como essa.

Os limites da imunidade parlamentar

“Daniel Silveira usou o seu mandato como escudo protetivo. Ele usou o Parlamento como esconderijo”. Estas foram as palavras que Alexandre de Morais usou para afastar a hipótese da imunidade parlamentar na defesa do deputado.

De fato, a imunidade parlamentar não cobre a possibilidade de que o titular de mandato parlamentar cometa crime. Parece-me que esta premissa pode ser razoavelmente aceita por todos. Se um parlamentar, por exemplo, assassina um colega em plenário, trata-se de um crime. Portanto, o titular do mandato não está imune ao longo braço da lei neste caso.

O caso do deputado Daniel Silveira, portanto, deve ser analisado do ponto de vista do suposto crime cometido. Se crime houve, sua imunidade parlamentar não pode ser usada para protegê-lo de seus atos.

Uma segunda questão que se coloca é a seguinte: pode-se cometer crime através do uso da palavra? Com certeza. Há crimes tipificados no Código Penal que envolvem somente o uso da palavra: calúnia, difamação e ameaça de violência física. O próprio ato de falar, neste caso, constitui crime.

É neste ponto que as pontas do caso Daniel Silveira se unem: a atividade parlamentar se desenvolve principalmente pelo uso da palavra. Pode um parlamentar ser condenado pelo uso do que caracteriza o seu mandato, ou seja, o uso da palavra? Estariam aqueles crimes mencionados acima suspensos pela imunidade parlamentar? Pode um parlamentar caluniar, difamar ou ameaçar com violência física pelo simples fato de ser parlamentar?

O caput do artigo 53 da Constituição é claro como a luz do dia: “Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Os parágrafos deste artigo apenas estabelecem as condições nas quais os parlamentares podem ser julgados e condenados: fórum privilegiado, regras para a prisão em flagrante, licença da respectiva Casa Legislativa para o processo etc. Em nenhum dos parágrafos se diz que o uso da palavra pode ser fonte de processo criminal, hipótese afastada pelo caput.

O ministro Alexandre de Morais, na Petição 9456 DF, de abril/2021, deixava clara a sua interpretação deste artigo: “A jurisprudência da CORTE é pacífica no sentido de que a garantia constitucional da imunidade parlamentar material somente incide no caso de as manifestações guardarem conexão com o desempenho da função legislativa ou que sejam proferidas em razão desta, não sendo possível utilizá-la como verdadeiro escudo protetivo para a prática de atividades ilícitas”. Ou seja, já haveria jurisprudência no STF de condenações em virtude de manifestações no âmbito parlamentar. Realmente, não lembro de outro deputado que tenha sido condenado pelo fato de ter falado que cometeria um crime ou incitado a outros a cometerem crimes. Parece-me que foi estabelecida uma nova jurisprudência.

Óbvio, estou longe de ser especialista em interpretação de leis. Sou apenas uma pessoa letrada, que entende razoavelmente bem o que lê. E a Constituição é um conjunto de palavras inteligíveis, assim como o discurso do deputado Daniel Silveira. Se a frase “o povo entre dentro do STF, agarre o Alexandre de Moraes pelo colarinho dele e sacuda a cabeça de ovo dele e o jogue dentro de uma lixeira” significa claramente uma instigação à violência física contra membro de outro Poder (temos aqui ao menos dois crimes), a frase “os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos” significa claramente que quaisquer palavras, mesmo que configurem crime, como é o caso, não deveriam servir de base para a condenação civil ou penal do parlamentar.

O constituinte, quando elaborou este artigo, tinha em mente justamente a proteção das garantias democráticas fundamentais, entre as quais, a liberdade de discurso e de voto por parte do parlamentar. Não custa lembrar que o Congresso Nacional foi fechado em dezembro de 1968 justamente porque a Câmara dos Deputados recusou-se a permitir o processo do deputado Marcio Moreira Alves, que havia chamado o exército de “valhacouto de torturadores” e instigado os brasileiros a boicotarem os desfiles de 7 de setembro e às mulheres que se recusassem a se relacionar com militares. Diríamos que, guardadas as devidas proporções, Marcio Moreira Alves era o Daniel Silveira da época, instigando a subversão através de palavras. Claro, os dois casos não são simétricos e nem comparáveis, um estava defendendo valores democráticos, o outro defende o uso da força para impor suas ideias. A semelhança está apena na arma utilizada: a palavra.

Daniel Silveira usou palavras chulas, fez ameaças e instigou a violência contra os membros de outro Poder da República. São crimes, sem sombra de dúvida. O diabo é que o artigo 53 da Constituição não abre exceção à imunidade parlamentar. Se houvesse um parágrafo dizendo algo do tipo “a imunidade estabelecida no caput será suspensa caso as opiniões, palavras e votos atentem contra os artigos x, y e z desta Constituição”, então teríamos base legal para a sua condenação. Mas o constituinte não quis prever tal situação, justamente porque qualquer limitação à palavra do parlamentar cheira a arbítrio.

Por outro lado, e talvez seja este o ponto, legítimo por sinal, a que se apegam os que concordam com a decisão quase unânime do Supremo, o deputado Daniel Silveira usou da palavra que o regime democrático lhe garante para atacar um dos Poderes que constituem a base material do regime. Não estou aqui afirmando que o STF que temos seja um exemplo de valorização dos ideais democráticos, mas a ideia de uma Corte Suprema imune à influência dos outros poderes é central nos regimes democráticos. Há formas, dentro das regras democráticas, de garantir a isenção do STF. Por exemplo, através da cassação de juízes. Ao defender que o “povo” invada o STF e expulse os ministros na base da força, o deputado está dando razão aos que pensam estar defendendo a democracia ao prendê-lo. A ideia de atuar fora da lei para fazer prevalecer a lei não parece ser muito coerente. Apesar de o artigo 53 lhe garantir o direito de falar o que bem entender, parece ser contraditório usar este direito justamente contra o regime que lhe garante este direito.

Então, por um lado, a letra da lei garante o direito de manifestação do parlamentar. Por outro lado, este direito é garantido justamente pelo tipo de regime atacado pelo parlamentar. E qualquer regime atuará no sentido de defender os seus pilares, como foi o caso. Por isso, entendo quem ache um absurdo a decisão do STF, e entendo também quem concorde. Cada um olha a realidade de um determinado ponto de vista. E poucos admitem que sua opinião, muitas vezes, é influenciada e antecedida pelas suas opções políticas.

Dois pesos, duas medidas

Em 18 de março de 2016, o ministro Gilmar Mendes suspendeu a nomeação de Lula como ministro da Casa Civil. Seu argumento: indícios de desvio de finalidade.

Ontem, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal. Seu argumento: indícios de desvio de finalidade.

Ou bem ambos foram uma ingerência indevida de um poder abre o outro, ou foram um exemplo dos pesos e contrapesos que atuam em uma democracia saudável, em que o mandante de plantão não pode usar a máquina de poder para fins pessoais.