Porque caímos em golpes

Há alguns anos, ficaram famosos os estereogramas, figuras aparentemente sem sentido que escondiam um desenho tridimensional. Para ver o desenho, é preciso desfocar os olhos. Não é fácil, mesmo sabendo que existe o desenho.

Lembrei dos estereogramas pensando um pouco nesse caso da Americanas. Há, de maneira geral, uma grande perplexidade a respeito. Afinal, como um “pequeno” erro de R$ 20 bilhões passou despercebido durante anos por profissionais experimentados do mercado e por auditorias internacionais. A resposta é simples: o cérebro humano não está feito para detectar coisas que estão fora de nossa experiência. Não é um problema de incompetência individual, mas de incompetência da nossa espécie. Por isso, pessoas mais experientes levam vantagem sobre pessoas menos experientes.

Os golpes funcionam dessa maneira. Estamos focados nas coisas que conhecemos, e nem notamos as que desconhecemos. Não achamos estranho que alguém do banco nos ligue, desde que ele nos forneça elementos suficientes de credibilidade, de acordo com a nossa própria experiência. Somente desconfiamos de um golpe se já passamos pela mesma situação antes ou se alguém muito próximo já passou pela mesma situação. Atire a primeira pedra quem nunca caiu em algum golpe.

No caso da Americanas (se foi golpe ou não, as investigações dirão), as manobras contábeis estavam escondidas como a figura do estereograma. Se alguém não diz que ali existe uma figura, ninguém diria que há algo. Os analistas e auditores procuraram o que estavam acostumados a procurar. Existe uma infinidade de coisas fora de nossa experiência, a grande maioria sem importância. O nosso algoritmo não está programado para focar nessas coisas fora da nossa experiência. Mesmo porque, são em muito maior número do que as coisas que conhecemos. Seria humanamente impossível varrer todas as possibilidades.

Quando uma fraude vem à tona, tudo fica claro como a luz do dia. É como um romance policial de Ágatha Christie: depois de desvendado o mistério, as pistas ficam óbvias. Mas, até então, não prestamos atenção, pois, de fato, não tinham importância. O golpista, assim como o mágico, nos faz olhar para longe do truque, usando coisas de nossa própria experiência.

De tudo isso, podemos dizer que golpes sempre existirão. Quem cai, não necessariamente é otário. Estava simplesmente olhando para onde a sua própria experiência indicava, enquanto o truque se dava no outro lado. Aliás, que figura está escondida no estereograma abaixo?

A narrativa e a realidade

Há alguns anos, tive a oportunidade de assistir a uma palestra de Aswath Damodaran. Para quem não é do meio, Damodaran é uma especie de “papa do valuation”, que é a arte de estimar o valor de uma empresa. Damodaran é professor da Universidade de Nova York e autor de vários livros na área, usados por cursos de administração no mundo inteiro.

Naquela palestra, Damodaran fez um exercício de valuation do Uber. Para tanto, desenhou vários cenários possíveis, que nós poderíamos chamar de “narrativas”. Cada uma daquelas narrativas levava a um valor da empresa completamente diferente. Não lembro exatamente dos números, mas a dispersão dos resultados era da ordem de dezenas de bilhões de dólares. Então, a depender da fé do analista em uma ou outra narrativa, a empresa podia valer quase nada ou uma fortuna.

Antes de continuar, é bom deixar claro que o valor de uma empresa, no final do dia, depende da sua geração de lucros ao longo do tempo. A narrativa faz o papel de convencer os investidores de que haverá lucros no futuro em tal e tal montante.

Aqui entra o papel da publicação de balanços das empresas. Na época, o Uber não tinha capital aberto e, portanto, não publicava balanços trimestrais. Para empresas listadas em bolsa, os balanços trimestrais servem como uma espécie de “check point” para que os analistas comparem os resultados reais com a sua própria narrativa. Claro, quanto mais no futuro estiver a promessa de retornos, mais paciência os analistas terão com resultados ruins de curto prazo. Por outro lado, quanto mais madura for uma empresa, mais importância ganha o balanço.

Depois deste longo preâmbulo, chegamos ao caso da Americanas, que chocou o mercado financeiro nesta semana. Não vou aqui entrar nas tecnicalidades ou de quem seria a culpa. O ponto é que, ao que parece, o balanço da empresa, nos últimos anos, não refletia a sua real lucratividade. Portanto, não servia como um “check point” adequado para conferir a narrativa.

Todos os grandes escândalos financeiros sempre foram encobertos por algum tempo com base em contabilidade, de alguma maneira, fraudada ou inconsistente. Estou agora assistindo à mini-série sobre Bernie Madoff, que aplicou um golpe de dezenas de bilhões de dólares contra investidores. Madoff forjou, durante anos, toda a contabilidade de seus investimentos. A bolha do subprime, de alguma forma, foi ignorada, durante um certo tempo, pela dificuldade de contabilização dos imóveis, dos contratos imobiliários e de seus derivativos. A ”contabilidade criativa” do governo Dilma nada mais foi do que usar truques contábeis para varrer o déficit primário para debaixo do tapete.

Uma velha anedota conta de um empresário que estava selecionando um contador. Para testar os candidatos, perguntava quanto era 2 + 2. Todos os candidatos que respondiam “4” eram eliminados. O primeiro que respondeu “quanto o senhor quer que dê?” foi contratado. A contabilidade tem essa aura do “jeitinho”, pois são inúmeros os critérios possíveis de contabilização, cada um deles chegando a resultados diferentes. Por isso, uma das grandes missões dos xerifes do mercado é uniformizar regras de contabilização, de modo que a contabilidade reflita a realidade econômica da empresa.

O caso da Americanas, ao que parece, é um daqueles em que a contabilidade não refletia a realidade econômica. De repente, como um choque, a realidade econômica chegou e se impôs. Sempre acontece. Não é uma questão de ”se”, mas de “quando”. Isso ocorre nos mais variados âmbitos, desde situações familiares, passando pelas empresas até chegar na economia dos países. A narrativa pode ser muito bonita, a contabilidade pode não ser transparente o suficiente para indicar problemas, mas a realidade econômica, mais cedo ou mais tarde, vai bater à porta. É o momento ”o rei está nu”, em que famílias, empresas e países são confrontados com a sua própria inviabilidade, e precisam reestruturar-se, por bem ou por mal.

PS.: a contabilidade das finanças públicas no Brasil melhorou muito nas últimas décadas, de modo que sabemos, com razoável precisão, o estado em que nos encontramos. Mas isso, ao que parece, não tem sido o suficiente para desmentir narrativas pouco aderentes à realidade econômica. No final, adivinha o que irá prevalecer.