O verdadeiro lastro da moeda

Em seu artigo de hoje, Bolivar Lamounier parece encantado com a ideia de que o endividamento do governo e a estabilidade da moeda dependem não de variáveis macroeconômicas, como a relação dívida/PIB, mas da “confiança” no Estado organizado, tese proposta por André Lara Resende. Como cientista político, Lamounier viu o debate encaminhar-se para a sua zona de conforto, ao invés de ter que explorar assuntos áridos, como política monetária ou fiscal. Para que tudo se resolva, basta que exista um “Estado organizado” que goze da confiança de seus cidadãos.

Há aqui uma confusão dos diabos.

É claro que a existência de um Estado minimamente organizado é condição necessária para que tenhamos uma moeda fiduciária de curso forçado. Todos, no Brasil, são obrigados, por lei, a aceitarem o real como moeda de troca. O Estado brasileiro tem o monopólio da força no território nacional, de modo a legislar e impor o curso forçado da moeda.

No entanto, se a existência de um Estado organizado é condição necessária para a existência da moeda, está longe de ser condição suficiente para a estabilidade de seu poder de compra. O fato de ser “fiduciária” e, portanto, não contar com o ouro como lastro, não significa que a moeda não tenha lastro algum, ou que o lastro seja a pura confiança no Estado. Sim, o Estado pode forçar o uso da moeda (até certo ponto, como veremos no caso da Argentina), mas não tem o poder de determinar o VALOR da moeda. O lastro da moeda fiduciária é a PRODUÇÃO do país.

A moeda será estável se a base monetária crescer junto com o PIB. O montante de numerário não deve aumentar em relação ao conjunto dos produtos e serviços produzidos no país. Se o montante de moeda aumentar mais rapidamente, teremos mais moeda perseguindo menos produtos e serviços, causando inflação.

Quando o governo se endivida, está captando moeda do setor privado para os seus próprios gastos. O setor privado poupa, o governo gasta, em um jogo que pode ter resultado positivo, neutro ou negativo, a depender da natureza dos gastos do governo. O setor privado confia que, lá na frente, o Estado terá condições de arrecadar impostos para pagar a sua dívida, captando moeda do setor privado para pagar a sua dívida com o setor privado. Os problemas começam quando a relação dívida/PIB tem trajetória crescente. Isso significa que o governo está gastando a uma taxa acima do ritmo de produção de bens e serviços do país e, portanto, está precisando se endividar acima do crescimento do PIB.

Esse processo tem um limite. Em algum momento, por mais que o Estado seja organizado, a sociedade simplesmente não topa pagar mais impostos para financiar os gastos crescentes do governo. No limite, os cidadãos, inclusive, deixam de usar a moeda de curso forçado. É o caso, por exemplo, da Argentina. Difícil defender que nosso vizinho tenha um Estado menos organizado que o brasileiro. A Argentina é uma democracia com uma sociedade esclarecida e politizada. O poder coercitivo do Estado argentino é o mesmo do brasileiro e, no entanto, os argentinos há muito abandonaram a moeda fiduciária patrocinada pelo Estado. Ocorre que um Estado organizado capaz de recolher impostos é condição necessária, mas não suficiente, para a estabilidade da moeda. Em algum momento, os cidadãos deixam de pagar impostos na mesma velocidade de aumento da dívida, a relação dívida/ PIB sai do controle, e a única saída é a monetização da dívida. Em português, rodar a maquininha de impressão de dinheiro. A ideia de que basta um Estado organizado, capaz de arrecadar impostos, para que não exista limite para o seu endividamento, é tosca, ainda mais em países periféricos, como Brasil e Argentina, em que seus cidadãos têm à mão moedas mais estáveis, como o dólar.

No Brasil estamos exatamente em meio a esse debate. O tal do arcabouço fiscal traduz justamente a discussão sobre se queremos, como sociedade, mais impostos para financiar mais gastos do governo, de modo que a relação dívida/PIB não cresça. Se a sociedade não quiser, restará ao governo cortar gastos ou aumentar a relação dívida/PIB, até que, em determinado momento, a sociedade passe a duvidar da capacidade de o governo pagar a sua dívida sem rodar a maquininha.

Para desgosto de Lara Resende e Bolivar Lamounier, a estabilidade da moeda, por definição, passa pela discussão sobre o nível da relação dívida/ PIB, por mais fiduciária que seja a moeda. Afinal, a ”fidúcia” não dispensa um lastro, que é a realidade do PIB do país. Que o digam los hermanos.

Carteirada

Existe uma certa (e natural) reverência pelo “curriculum” das pessoas. Afinal, se a pessoa conquistou um título, é porque deve ser muito merecido. A partir daí, o que a pessoa fala transforma-se em uma espécie de “lei”. O píncaro da glória ocorre quando a pessoa é tratada como “especialista” pela imprensa. Neste ponto, não há o que se discutir, falou, tá falado.

Esta breve introdução vem a respeito de dois personagens que participaram anteontem do seminário do BNDES, que era sobre política fiscal, mas acabou sendo sobre política monetária: Joseph Stiglitz e André Lara Resende. Stiglitz é Prêmio Nobel, enquanto Lara Resende é um dos “pais do Real”. Os perfis de esquerda estão que nem pinto no lixo, repercutindo o “pensamento” dos dois como se fossem as tábuas trazidas por Moisés do Monte Sinai. E ai de você se tentar argumentar com “um Prêmio Nobel” ou com “um dos pais” do plano que simplesmente debelou a hiperinflação no Brasil? Não tem nem por onde começar.

Trata-se de uma falácia, claro. Joseph Stiglitz ganhou o seu Nobel por um trabalho de assimetria informacional, nada a ver com macroeconomia. Além disso, para cada Nobel que defende o que Stiglitz defende, há 10 que defendem o oposto. “Pensamento econômico mainstream” recebe este nome não é à toa.

O mesmo para Lara Resende. Os outros pais do Plano Real (Persio Arida, Edmar Bacha, Gustavo Franco, Pedro Malan) certamente não concordam com as sandices que Lara Resende vem defendendo. E são igualmente “pais do Plano Real”. Aliás, estão em maioria, como sempre.

A autoridade concedida por um título muitas vezes serve de manto para preferências meramente ideológicas. Economistas (aliás, como qualquer cientista) têm suas próprias preferências, e você encontrará opinião para todos os gostos, sempre com um “carimbo de credibilidade”, dado por um título pomposo.

Como distinguir o certo do errado? Ou, pelo menos, aquilo que mais se aproxima da realidade? O chamado “mainstream”, que é o conjunto das hipóteses mais amplamente aceitas, dão uma boa pista. Nunca se trata de preto no branco, ainda mais quando se trata de uma ciência humana, como a economia. Mas indica mais ou menos a fonte de onde é mais seguro beber.

Além disso, faz sentido observar onde foi aplicado o receituário do “iluminado” que está pontificando, e quais foram os resultados. Depois do que aconteceu aqui mesmo no Brasil entre os anos de 2013-2016, não deveria haver muita dúvida a respeito.

Títulos, sem dúvida, são importantes e indicam que a pessoa, ao menos, tem preparo. Mas está longe de garantir que esteja certa 100% do tempo a respeito de tudo. O argumento de autoridade, desacompanhado de um racional minimamente embasado na realidade, não passa de uma carteirada.

O astrólogo da economia

André Lara Resende tem o péssimo hábito de pegar uma informação isolada para chegar às conclusões que lhe interessam. Foi assim em seu artigo passado, em que pegou o superávit primário do ano passado para afirmar, sem corar, que a situação fiscal do Brasil está ok. Claro, sem combinar com o ministro da Fazenda, que afirma que recebeu uma herança maldita.

Em artigo publicado ontem no Valor (íntegra no final do post), Lara Resende repete a estratégia. Para afirmar que é o BC que determina a curva de juros, usa um gráfico de um relatório publicado pelo Tesouro Nacional, que mostra o custo de emissão de dívida do Tesouro comparado com a taxa Selic (usaremos este mesmo relatório para desmentir o economista). Quando a taxa Selic cai, o custo de emissão da dívida cai. Quando a Selic sobe, o custo de emissão da dívida sobe. Portanto, é o BC que determina o nível geral das taxas de juros no Brasil, e não somente a taxa Selic. Para chegar a essa conclusão (que, aliás, valeria para qualquer BC do mundo), Lara Resende não lança mão de qualquer instrumento econométrico, como um teste de causalidade de Granger. Segundo o economista, dá para ver a causalidade “a olho nu”. Lara Resende despreza instrumentos matemáticos no trato da ciência econômica, como faz questão de deixar claro em seu texto.

Mas vamos deixar de lado as picuinhas, e vamos nos concentrar no conceito. Como tudo em economia, nada é preto no branco. Banco Central e mercado estão em uma eterna dança, em que um influencia o outro. A curva de juros é fruto das forças de mercado. Mas é claro que os agentes olham para o Banco Central para tomarem as suas decisões sobre as taxas de juros futuras. Como trabalham com distribuições de probabilidades e não com certezas, os agentes ponderam os movimentos do BC (presentes e futuros) com possíveis cenários econômicos derivados desses movimentos do BC. Assim, formam suas convicções e definem as taxas de juros de prazos mais longos. Lara Resende, ao afirmar que os ortodoxos afirmam que a curva de juros não é influenciada pelo BC, está criando um espantalho para desmenti-lo. A tática é velha.

Aliás, o custo da dívida nem é o melhor instrumento para chegar à conclusão que Lara Resende chegou. Como a nossa dívida é formada por uma parcela relevante de títulos atrelados à Selic (cerca de 40% – tabela 2.3 do relatório), é claro que, quando a Selic cai, o custo de emissão da dívida também cai. Além disso, a parcela prefixada tem, em geral, vencimentos curtos (tabela 3.4). E, quanto mais curto for um título prefixado, mais próxima estará a sua taxa da provável trajetória da taxa Selic no curto prazo. Se a taxa Selic estiver caindo, a taxa prefixada de curto prazo será menor, e vice-versa.

Lara Resende se aproveita dessa característica para mostrar meia-verdade. No gráfico 4.3 logo em seguida ao gráfico usado pelo economista, temos a evolução das taxas das NTN-Fs, que são os títulos prefixados mais longos. Podemos observar que sua evolução segue bem menos a taxa Selic do que o custo total da dívida, que tem influência das LFTs e das LTNs (prefixados mais curtos).

Mas o ponto fundamental da discussão é por que Lara Resende fez questão de estressar este ponto. Ora, simples: a sugestão é de que o BC pode, com tranquilidade, reduzir as taxas de juros quanto queira, porque a curva de juros acompanhará a queda, tornando o carregamento da dívida muito mais barato. Para que isso seja crível, no entanto, o economista precisa desvincular o nível de taxa de juros do controle da inflação. E é isso que faz nesse artigo, ao afirmar que não há evidências de que o nível de juros controla a inflação, desmontando, em poucas linhas, todo o arcabouço monetário construído nas últimas três décadas, e que é usado pelos principais bancos centrais do mundo. Claro que Lara Resende não sugere nada para o lugar do sistema de metas de inflação. A inflação seria controlada de algum modo misterioso, que o economista não divide com seus leitores.

Com o BC controlando direta ou indiretamente toda a curva de juros da economia, e com a inflação sendo controlada pelo divino Espírito Santo, nada impediria o BC de reduzir a taxa básica de juros quanto quisesse, diminuindo em muito as despesas com juros, e fomentando o crescimento econômico. Resta saber por que o BC do Alexandre Tombini, que tentou um movimento de redução artificial dos juros durante o governo Dilma, não perseverou no seu intento, voltando a elevar a taxa Selic até 14,25% (!)

É claro que a taxa Selic está muito alta, e isso causa não poucos problemas à economia. A discussão é como o BC pode baixar essa taxa de juros sem perder o controle da inflação. Este é um debate legítimo, em que vários economistas têm visões diversas. No entanto, Lara Resende, por tudo o que já escreveu, não é um debatedor legítimo nessa discussão. Ao afirmar que o BC pode, sem custos, determinar a taxa de juros no patamar que quiser, se desqualifica para o debate. Quando se discute astronomia, não há lugar para astrólogos.


Alguém errou. E não foi o mercado

O economista Luís Eduardo Assis coloca o problema da dívida pública como uma simetria de duas visões falsas: de um lado estaria o governo, que acreditaria que mais gastos geram mais crescimento e, portanto, a dívida seria autossustentável; de outro, o mercado, que pensaria no governo como uma empresa, podendo, portanto, ficar insolvente. Lamento informar, mas o economista está errado com relação ao mercado. Vejamos.

Quando analisamos uma empresa, uma métrica sempre utilizada é a dívida líquida dividida pelo EBITDA (lucro operacional antes de juros e impostos). Seria mais ou menos uma medida de quantos anos a empresa levaria para pagar suas dívidas, se usasse todo a sua geração de caixa para isso. Não existe um número mágico que signifique que a empresa vai quebrar, depende muito do setor e da dinâmica da economia, mas índices acima de 3 já começam a chamar a atenção dos financiadores, principalmente com juros altos.

No caso do Brasil, a dívida líquida (dívida total menos reservas internacionais) é de aproximadamente R$ 4,3 trilhões (estou considerando o total das reservas, mas sabemos que, em uma crise de dívida, as reservas evaporam rapidamente).

E com ralação ao EBITDA do Brasil? Quando medimos o EBITDA de uma empresa, estamos interessados em saber quanto sobra de caixa depois de a empresa pagar funcionários e matérias-primas. Ou seja, o lucro que a operação da empresa está gerando depois de pagar todas as suas obrigações não financeiras. No caso de um país, isso seria equivalente ao superávit primário. Que, no Brasil, hoje, é um déficit primário estrutural, apesar do superávit conjuntural do ano passado. Ou seja, no estado atual, não teria como o Brasil pagar a sua dívida, se fosse uma empresa.

Mas digamos que o mercado tenha boas expectativas, e esteja projetando um superávit primário de 2% do PIB em algum momento no futuro (o que hoje parece um sonho em uma noite de verão). Isso significaria algo como R$ 150 bilhões. Com esse superávit, a relação dívida líquida/EBITDA seria de aproximadamente 40 vezes. Não, você não leu errado: com 2% de superávit primário, o Brasil levaria cerca de 40 anos para pagar sua dívida.

Se os financiadores estivessem fazendo um paralelo com uma empresa, já teriam deixado de financiar o País há muito tempo. Mas os financiadores, ao contrário do que diz Assis, sabem que um país não quebra. Por isso, apesar desses números horrorosos, continuam a financiar a dívida pública com as taxas mais baixas do mercado brasileiro. O que os financiadores sabem é que o “calote” vem em forma de inflação. Por isso, a taxa de juros para prazos longos carrega uma incerteza grande quanto ao nível da inflação no futuro.

Assis cai no mesmo erro de sua fonte, André Lara Resende, a respeito das motivações do mercado. Lara Resende defende a tese de que os juros são altos porque os financiadores da dívida têm a visão errada de que o governo pode quebrar, e pedem um prêmio pela insolvência. Não. O prêmio pedido é para a inflação crescente no futuro, que virá com certeza se “ideias” como as de Lara Resende prosperarem.

MMT: O Benjamin Button da macroeconomia

O filme “O curioso caso de Benjamin Button” fantasia em torno de um tema, como diz o título, curioso: o protagonista, Benjamin Button, nasce velho e vai rejuvenescendo ao longo do filme, morrendo na forma de um bebê. Não pude deixar de lembrar desse filme ao ler com mais cuidado sobre o MMT – Modern Money Theory. Além de virar de cabeça para baixo a noção que temos do dinheiro e das finanças públicas, o MMT lembrou-me o filme por outro detalhe: assim como Brad Pitt vive um tórrido romance com Cate Blanchett no único momento em que poderiam fazê-lo (no meio da vida dos dois), o MMT se encontra e se enrosca com o pensamento econômico dominante (que chamaremos de “mainstream”), fazendo-nos pensar porque, afinal, toda essa ginástica para chegar nas mesmas conclusões. Mas estou colocando o carro adiante dos bois. Vamos por partes.

Por que o MMT? Por que agora?

O MMT seria mais uma teoria maluca, dessas que aparecem de vez em quando na periferia do mainstream, não fosse por um pequeno detalhe: seu embaixador no Brasil é ninguém menos que André Lara Resende, banqueiro e um dos pais, junto com Pérsio Arida, de nada menos que o Plano Real. Foram também pais do Plano Cruzado, mas filho feio ninguém quer, não é mesmo? Lara Resende e Arida foram responsáveis pela parte heterodoxa do Plano Real, aquela que chamou a atenção pela sua mágica: o estabelecimento de uma moeda hiperindexada, a URV, que permitiu uma transição suave entre a moeda antiga e a nova, sem os congelamentos e tablitas que serviram de maldição para os outros planos. Lara Resende pariu o Real, mas quem realmente criou a moeda foram Gustavo Franco, Pedro Malan e outros heróis anônimos da equipe econômica de FHC, que enfrentaram a bucha de manter o Real como uma moeda confiável ao longo dos anos.

Como dizíamos, André Lara Resende vem fazendo propaganda do MMT, o que também não deveria chamar a atenção, dado que o economista, há muito tempo, está longe dos centros do poder. No entanto, Lara Resende foi chamado para a equipe de transição do governo Lula e, recentemente, vem se colocando como uma alternativa para o Banco Central. Dado que, para quem tem conhecimento do MMT de ouvir falar, a teoria casa perfeitamente com o zeitgeist do novo governo, achei por bem estudar melhor o assunto, para entender o que nos aguarda.

Fontes

Fui atrás de artigos acadêmicos que pudessem iluminar o meu caminho. Cheguei a ler alguns (não parecem ser muitos), e são todos muito repetitivos, você leu um, leu todos. Não há evidências empíricas (digo, estudos econométricos) que sirvam de base para suas conclusões. Trata-se apenas de uma forma de ver o processo de criação de dinheiro, que leva a conclusões curiosas. Conclusões estas, repito, que carecem de comprovação empírica. Existe a reivindicação de que fenômenos como a inflação baixa no Japão são plenamente explicáveis pelo MMT, sem, no entanto, a preocupação de explicar a ligação de uma coisa com a outra.

Mas este não é um artigo acadêmico. A pretensão é muito mais simples: entender o que propõe o MMT e tentar antecipar o que seria a sua aplicação ao caso brasileiro. Para tanto, nada melhor do que ir até o pai da matéria, André Lara Resende. O economista escreveu um excelente artigo, bastante didático, que nos serviu de fonte principal para este post: Consenso e contrassenso: déficit, dívida e previdência, publicado na revista do Centro Brasileiro de Relações Internacionais em 2019. Até onde pude encontrar, é o único artigo de fôlego do economista sobre o assunto, o resto são artigos de jornal. Portanto, este post será uma análise deste artigo.

Uma dívida “sem custo”

André Lara Resende começa seu artigo questionando o que ele chama de “custo fiscal da dívida pública”. Ou, em outras palavras, as dúvidas em relação à sustentabilidade da dívida pública. O economista, para defender seu ponto, expõe um truísmo matemático: se a taxa de juros real for menor do que a taxa de crescimento real da economia, na ausência de déficits primários a dívida pública será decrescente em relação ao PIB, qualquer que seja o seu tamanho. Não precisa grande elaboração para se chegar a essa conclusão. A fórmula, de verdade, é bem simples:

Quer dizer, atualizamos a dívida de ontem pelos juros, o PIB de ontem pelo seu crescimento e somamos o déficit primário para se chegar à relação dívida/PIB de hoje. Um exemplo numérico nos será útil para entender o conceito. Para tanto, vamos reescrever a fórmula acima da seguinte maneira:

A dívida brasileira, hoje, representa 78% do PIB. Vamos assumir que o crescimento econômico, neste ano de 2023, seja de 1%, os juros reais que incidem sobre a dívida sejam de 8% e o déficit primário seja de 1,5%. A relação dívida/PIB no final de 2023 chegaria a:

Ou seja, se essas premissas estiverem corretas, chegaremos ao final de 2023 com uma dívida de aproximadamente 85% do PIB. Claro, se houver uma surpresa inflacionária, os juros reais serão menores e a dívida (em relação ao PIB) será menor, mas isso é papo para outro artigo.

Por enquanto, temos apenas um truísmo matemático, não se trata de discussão econômica. André Lara faz uso desse truísmo para falar o óbvio com ares de grande descoberta: a dívida pública não teria custo fiscal (seria sustentável), SE a taxa de juros fosse menor que a taxa de crescimento do PIB e SE o déficit primário fosse igual a zero. Por exemplo, no caso acima, o déficit zerado e a taxa de juros em zero (menor que o crescimento de 1%), teríamos:

Bem, de fato, sob essas condições, a nossa relação dívida/PIB diminuiria. Mas a coisa funciona como seu eu afirmasse que, se minha mãe tivesse bigode, seria o meu pai. Uma boa parte do raciocínio posterior partirá da premissa de que o tamanho da dívida pública pouco importa, como se estes dois grandes “SEs” pudessem ser cumpridos a priori. Lara Resende dirá que a tarefa do BC é manter a taxa de juros abaixo da taxa de crescimento da economia, colocando um bigode na minha mãe. Mas não vamos colocar o carro adiante dos bois.

Na verdade, Lara Resende concede que os financiadores da dívida podem, de uma hora para outra, perder a confiança na sustentabilidade da dívida. Esse seria o único grande “problema”, uma espécie de profecia autorrealizável, em que uma dívida perfeitamente sustentável passa a não o ser porque os financiadores “ficam com medo” de que não seja. Pois eu GARANTO para Lara Resende que, se o BC puder praticar taxas de juros menores que o crescimento econômico sem gerar inflação, e o déficit público for zerado, os financiadores estarão ávidos por comprar a nossa dívida. Essa “desconfiança” surge justamente porque essas premissas não se cumprem na maior parte do tempo.

Vale aqui reproduzir um trecho do artigo, que demonstra a construção de toda uma teoria no ar: “A possibilidade de que, no futuro, o juro possa ser superior ao crescimento, é a principal razão para cautela em relação ao aumento da dívida. Mas se o juro for fixado pelo banco central e puder ser sempre inferior à taxa de crescimento, a dívida efetivamente nunca terá custo fiscal. A tese é surpreendente, pois contradiz frontalmente o consenso entre os formuladores de políticas e a teoria macroeconômica estabelecida”. A “tese” não contradiz nada, é um puro truísmo matemático. SE o BC puder fixar a taxa de juros onde quiser, então estará tudo resolvido. Lara Resende passará o restante do artigo tentando provar que o BC pode colocar a taxa de juros onde quiser, e este é o ponto que interessa para entender um potencial futuro presidente do Banco Central. Vejamos.

A MMT

Lara Resende dedica a segunda parte do seu artigo a descrever em detalhes a Modern Money Theory. Foi nessa parte que me senti vingado! A tese foi originalmente formulada por um sujeito chamado Warren Mosler, um financista como eu, não um economista! Portanto, se foi um financista, um practioner, como dizem com certo desdém os acadêmicos, que formulou os princípios da MMT, estou muito à vontade para desmontá-los. Talvez por isso a academia não tenha se dedicado tanto ao assunto. Imagine se euzinho tivesse tido a pretensão de elaborar uma nova teoria sobre o dinheiro! Nada feito. Mas, por algum estranho motivo, alguns professores da Universidade de Missouri-Kansas se interessaram e começaram a escrever sobre o assunto, chamando a atenção de, adivinhem, Bernie Sanders. Daí, foi um pulinho para chegar ao Brasil pelas mãos de Lara Resende.

Bem, depois do preâmbulo da vingança, vamos à teoria.

Para entender a base da MMT, é preciso revisitar duas das três funções clássicas da moeda: ser meio de troca e unidade de conta. Acostumamo-nos a pensar na moeda, em primeiro lugar, como meio de troca para facilitar o comércio, minimizando a necessidade de fazer escambo. No início, mercadorias dos mais diversos tipos foram usadas, a depender da comunidade onde se dava o comércio. Com o passar do tempo, os metais preciosos assumiram esse papel, por serem facilmente divisíveis e relativamente raros. Mais um pouco de tempo, casas bancárias especializadas se apresentaram como fiéis depositárias das reservas em ouro, em troca das quais emitiam recibos que eram aceitos como meio de troca. Nascia o papel-moeda. Passa o tempo, e os Estados modernos assumem o monopólio da emissão do dinheiro, mas ainda com lastro no ouro. Por fim, tão recentemente quanto 1971, o padrão-ouro é definitivamente abandonado, e as moedas nacionais passam a ser puramente fiduciárias, ou seja, dependem da confiança nos governos que as emitem.

Essa brevíssima história do dinheiro é virada de ponta-cabeça pelos proponentes do MMT. Para estes, o dinheiro é uma simples unidade de conta criada pelo Estado. Funcionaria como uma espécie de “conta corrente” entre o Estado e os cidadãos, onde créditos e débitos são feitos de acordo com os gastos do Estado (crédito para os cidadãos / débito do Estado) e os impostos são pagos (débito dos cidadãos / crédito do Estado). O dinheiro seria apenas uma convenção útil para essas trocas entre Estado e cidadãos.

A função de “unidade de conta” do dinheiro é a forma como expressamos os preços das coisas. Em uma economia funcional, a unidade de conta coincide com o meio de troca. Já em uma economia disfuncional, inflacionária, a função de unidade de conta da moeda nacional se perde. Os preços são denominados em dólares, por exemplo. A liquidação das operações pode até se dar na moeda nacional (meio de troca), mas o preço é em alguma moeda estável. No Brasil da hiperinflação, nos acostumamos a denominar preços em forma de índices. Assim, por exemplo, os impostos eram denominados em UFIRs, ainda que liquidados em cruzeiros. A URV, que serviu como antecessora do real, era uma “moeda” que servia somente como unidade de conta, para expressar preços, mas não como meio de troca. Passou a servir como meio de troca quando se transformou em real.

Afirmar que a moeda nasceu antes como “unidade de conta” é muito difícil de imaginar. Seria como se o mundo tivesse vivido a experiência da URV antes de emitir moedas, e as moedas seriam apenas a materialização desse “ente” chamado URV. É um pouco como se o pensamento que temos da realidade antecedesse a própria realidade, como se a realidade fosse uma criatura do nosso pensamento.

Na prática, não é necessário entender essa distinção entre “meio de troca” e “unidade de valor” para entender a proposta do MMT. A coisa é relativamente mais simples do que isso: ao invés de a moeda ser uma criatura das necessidades trazidas pelo comércio, trata-se de uma criação do Estado para o pagamento de impostos. Na medida em que há um poder soberano, este poder tem a prerrogativa de criar uma dívida para os cidadãos ou súditos, e estes cidadãos ou súditos somente podem pagar essa dívida (impostos) com a moeda emitida por este poder soberano. A moeda torna-se de aceitação universal justamente porque todos precisam pagar impostos, e todos sabem que aquela moeda será aceita pelo Estado para o pagamento desses impostos.

Fico imaginando o que acontece em países como a Argentina ou a Venezuela, onde a moeda emitida pelo Estado é preterida por outras mais estáveis. Onde estaria a “aceitação universal da moeda para pagar impostos”?

Voltando. Se a moeda é uma simples “unidade de conta” na qual são expressos os impostos que os cidadãos precisam pagar, e o Estado emite a moeda com a qual esses impostos serão liquidados, segue-se que o Estado não precisa arrecadar impostos para gastar, mas, ao contrário, gasta para arrecadar impostos. Não confunda: não estamos aqui na macroeconomia desenvolvimentista, em que se espera que os gastos do Estado fomentem a atividade econômica para, daí, aumentar a arrecadação de impostos. A coisa é completamente diferente, e muito mais estranha: o Estado não precisa de impostos! O Estado pode emitir moeda à vontade para financiar os seus gastos, não precisa arrecadar. Na verdade, os próprios gastos do governo geram o dinheiro, não faz sentido a palavra “financiar” nesse contexto. O governo, ao gastar, credita a conta corrente dos cidadãos “out of thin air”, criando dinheiro do nada.

Novamente, pra você que está esfregando os olhos e acha que não leu direito: segundo o MMT, o Estado não tem restrição financeira alguma, pode gastar emitindo moeda à vontade, pois todos vão aceitar a única moeda que serve para pagar os impostos que todos devem ao Estado. A relação de causalidade é invertida: o Estado não precisa arrecadar antes para gastar depois, o Estado gasta quanto quer, e depois o dinheiro volta via os impostos! Nas palavras de Lara Resende, “é o gasto do governo que cria moeda, e não a disponibilidade de moeda que viabiliza o gasto do governo”. Note o verbo “criar” utilizado.

Claro que o arguto leitor já deve estar incomodado com a contradição: se, afinal, o Estado não precisa de impostos para gastar, por que, afinal, existem impostos? Por dois motivos: 1) os impostos servem como uma espécie de “regulador” do mercado. Se o governo gastasse e não “enxugasse” a demanda via impostos, “talvez” esse dinheiro pressionasse a demanda, o que causaria a sua desvalorização com o tempo; e 2) se não houvesse cobrança de impostos, como se daria a “aceitação universal” da moeda emitida pelo Estado? Se não houvesse essa obrigação, ruiria todo o sistema. Então, os impostos servem para garantir que haja aceitação do dinheiro que o próprio Estado usa para fazer os seus gastos. Trata-se de uma espécie de dominação totalitária: o dinheiro deixa de ser a expressão da vontade livre dos homens em suas trocas comerciais, para ser a expressão de um Estado que domina toda a realidade econômica, gastando tanto quanto é necessário segundo seus próprios critérios, e obrigando a todos que aceitem essa moeda por meio da imposição de impostos. Esse tipo de construção mental é típico de quem vê o Estado como o alfa e o ômega da sociedade.

Essa tese dos impostos como fator de aceitação da moeda de um país é facilmente refutável. Em primeiro lugar, o recolhimento de impostos é função de alguns poucos agentes econômicos (empresas e uma fração dos trabalhadores), de modo que, quem não recolhe impostos, segundo essa teoria, não teria porque aceitar a moeda. Além disso, apenas uma parte da renda dos agentes é dedicada ao pagamento de impostos. Por que os agentes aceitariam toda a base monetária, se somente uma parte dela é usada para pagar impostos? No limite, os agentes reservariam a moeda nacional suficiente para pagar os impostos e trocariam o restante por moedas não expostas à corrosão inflacionária. Aliás, é isso o que acontece em países como Argentina ou Venezuela, desafios à tese de que a moeda é sempre aceita dentro da jurisdição do Estado.

O excesso de moeda não necessariamente provoca inflação

Verdade. Lara Resende gasta sua tinta para provar algo que não precisa ser provado, assim como o truísmo matemático que abriu este post e que foi nos trazido pelo economista com ares de grande novidade.

A grande “prova” de que excesso de moeda em si não causa inflação (a única prova incessantemente martelada em todos os artigos sobre MMT) é o “quantitative easing” praticado pelos Bancos Centrais das economias desenvolvidas: foram trilhões injetados no sistema financeiro, através da compra, pelos bancos centrais, de tudo o que havia nos balanços dos bancos. Os BCs ficaram com os títulos, enquanto os bancos ficaram com o dinheiro emitido pelos BCs. O que aconteceu? Nada. O dinheiro ficou lá, dormindo nas reservas bancárias, porque não havia demanda para tudo aquilo, e não havia apetite dos bancos para emprestar tudo aquilo. A moeda “criada” pelos BCs não criou inflação. Claro, não foi gasto!!! Lara Resende apresenta esse fato como uma subversão da sabedoria do mainstream, quando, na verdade, trata-se de uma verdade comezinha: dinheiro guardado no cofre não gera inflação.

O que gera inflação é gasto. Lara Resende escreveu este artigo em 2019. Gostaria de ver um artigo depois da grande inflação de 2021/2022, com o dinheiro dos governos indo diretamente para a mão do povo, e não para os bancos. Claro, a explicação é que se trata de “inflação de oferta”, não de “inflação de demanda” e blá, blá, blá. Como se a demanda por bens não tivesse explodido durante a pandemia (basta ver a explosão das vendas on line) e, depois da abertura, não tivesse explodido a demanda por serviços. Ok, houve também gargalos de produção localizados, mas a inflação não teria atingido os níveis que atingiu somente por restrição de oferta.

Sim, Lara Resende afirma que é o excesso de demanda agregada que gera inflação, não o excesso de moeda em si, como provou o “quantitative easing”. Mas com isso concordamos todos. É aquele momento do filme (haverá outro) em que o Brad Pitt do MMT se encontra com a Cate Blanchett do mainstream com a mesma idade, e pinta um clima. O problema é o excesso de demanda causado pelos gastos do governo, não necessariamente o excesso de moeda, sendo esta apenas uma consequência. Isso será abordado mais para frente em mais detalhe.

Uma confusão dos diabos

Como vimos, o MMT propõe que o governo não tem restrição financeira alguma. Não precisaria, em princípio, nem recolher impostos e, além disso, nem contrair dívidas para gastar. Basta creditar o dinheiro na conta dos cidadãos, dinheiro este que todos aceitam porque o usam para pagar os impostos. A decisão de se endividar tem a natureza de uma simples gestão dos passivos: tanto faz emitir moeda ou dívida para financiar os seus gastos, no final é tudo um governo só.

Nesse contexto, é incompreensível porque o governo se endividaria pagando juros. Afinal, se tanto faz emitir moeda ou se endividar, muito melhor é emitir moeda, que paga juros zero. Aliás, é quase a essa conclusão que chega Lara Resende: segundo ele, a melhor forma de o governo se financiar é através da dívida de curtíssimo prazo, o overnight. Nada de emitir dívidas longas, que custam o olho da cara. Faltou coragem para dar o próximo óbvio passo: pra que emitir dívida, se é possível emitir moeda, que não paga juros? Em recente artigo no Valor, Lara Resende afirma que a dívida pública é uma espécie de “bem público”, necessário para que os rentistas possam obter seus ganhos. Sem a dívida pública, pasmem, não haveria onde aplicar o dinheiro, e a economia cairia em profunda recessão! Ora, o MMT tem o remédio: para evitar esse destino cruel, bastaria o governo aumentar os seus gastos emitindo moeda. Torna-se realmente incompreensível porque existe dívida pública no mundo do MMT.

Lara Resende, para demonstrar que o governo não precisa se endividar para financiar os seus gastos, usa novamente o exemplo do “quantitative easing”, citando uma entrevista de Ben Bernanke, então presidente do Fed, em que este afirma que não precisa de dinheiro dos impostos (ou de novas dívidas) para comprar os títulos em poder dos bancos: basta creditar a conta dos bancos junto ao Banco Central, uma operação que necessita apenas de um computador. Estaria, assim, sendo criado dinheiro “do nada”. Lara Resende confunde esse “crédito de dinheiro nas contas dos bancos” com os gastos do governo. Trata-se de uma confusão dos diabos. A Casa Branca não tem como “creditar dinheiro na conta das pessoas” como faz o Fed com os bancos. O cheque que Trump e Biden enviaram para a casa das pessoas durante a pandemia teve sua origem em dívida, que precisou ser emitida e comprada por financiadores da dívida. Não é a mesma coisa. O governo precisou se endividar para obter a moeda, não a emitiu. Realmente não sei de onde Lara Resende tirou a ideia de que se trata da mesma coisa que fez Ben Bernanke ou os outros banqueiros centrais que lançaram mão do quantitative easing.

A realidade dá as caras, finalmente

Em certo ponto do artigo, Lara Resende reconhece que o governo, apesar de não ter restrição financeira, tem a restrição da realidade produtiva do país. Assim, os gastos do governo, ao pressionarem a demanda, podem gerar inflação, se a capacidade produtiva não conseguir responder ao aumento da demanda. Aleluia!

Mas é neste ponto que o MMT entra em contradição. Segundo palavras de Lara Resende, “a eventual pressão inflacionária decorre da sobrecarga exercida pelos gastos do governo na economia e não da expansão monetária”. Ou seja, não é o excesso de dinheiro na economia, mas os gastos do governo que são o culpado pela inflação. Mas, ora, se os gastos do governo são, segundo o MMT, os responsáveis pela emissão (existência!) da moeda, então estamos falando de coisas absolutamente equivalentes, ou, no mínimo, uma causalidade necessária: ao gastar, o governo emite moeda. Portanto, a emissão de moeda é equivalente aos seus gastos, e, neste caso, tanto faz dizer que foi o excesso de moeda ou o gasto do governo o culpado pela inflação. Trata-se de um caso diferente do evento muito particular do empoçamento de moeda nos bancos americanos na crise de 2008, quando o excesso de moeda não causou inflação.

E é justamente quando o MMT entra em contradição (ou Lara Resende, que não traduziu corretamente o MMT) que o segundo encontro entre Brad Pitt e Cate Blanchett acontece. Ambos, mainstream e MMT, concordam que são os gastos do governo que pressionam a inflação. Aleluia, irmão? Sim, aleluia.

É neste ponto que entra a estranha ideia de que a cobrança de impostos por parte do governo serve para regular a demanda. Não que o governo precise de impostos para financiar seus gastos, lembre-se que o governo não tem restrição financeira alguma. Os impostos servem somente para enxugar o excesso de demanda causada pelos gastos do governo. O governo, assim, mantém toda a economia na ponta dos dedos, gastando o que tiver que gastar, e enxugando o excesso via impostos. Impostos estes, vamos lembrar, que servem para que a moeda emitida pelo governo tenha aceitação universal. Então, mesmo que não precisasse estabelecer impostos para enxugar a demanda, os impostos seriam necessários para forçar a aceitação da moeda.

De qualquer forma, Lara Resende reconhece que, apesar de o governo não ter restrição financeira alguma, sua atuação nos gastos e arrecadação de impostos tem sim impactos relevantes, tanto do ponto de visto macroeconômico quanto do ponto de vista microeconômico. Do ponto de vista macroeconômico, os gastos do governo podem gerar excesso de demanda e inflação. Do ponto de vista microeconômico, gastos de má qualidade e impostos distorcivos podem gerar má alocação de recursos e, no final, contribuírem para o baixo crescimento econômico e a má distribuição de renda. Milton Friedman não falaria melhor.

Dívida foi feita para ser rolada, não paga

O mundo continuará girando em torno do Sol. Pessoas continuarão nascendo. Países continuarão existindo. Essas certezas levam Lara Resende a defender que a história de que “nossos filhos serão obrigados a pagar pelas nossas dívidas” é uma falácia. O motivo é simples: nossos filhos também terão filhos, que também terão filhos, e assim indefinidamente. Então, as dívidas do governo podem também ser roladas indefinidamente. Nas palavras de Lara Resende, “enquanto houver futuro, existe a possibilidade de empurrar para frente uma transferência, ou uma dívida, que melhore o bem-estar hoje. Dívidas da sociedade consigo mesma não precisam ser pagas e não drenam recursos.”

Mas, tem um detalhe: isso só funciona em um tipo particular de economia, que Lara Resende chama de “Samuelsoniana”, em referência a Paul Samuelson, que a formulou. Para que funcione, a taxa de juros (que é o “preço” pago pela transferência de um gasto de hoje para amanhã) deve ser menor que a taxa de crescimento da população ou, de maneira mais geral, da economia. Neste caso especial, esquemas de gastos como o sistema previdenciário de repartição (a lá INSS) e os gastos do governo de maneira geral aumentam o bem-estar da sociedade como um todo, já considerando a geração atual e todas as gerações futuras.

Volta aqui, em outra roupagem, a premissa que abriu esse artigo, naquele truísmo matemático: se a taxa de juros real for menor que a taxa de crescimento da economia, tudo estará resolvido.

A coisa pode ser melhor entendida se traçarmos um paralelo com uma empresa. Quando um banco empresta dinheiro para uma empresa, avalia se o fluxo de caixa futuro dessa empresa será suficiente para pagar esse empréstimo. Essa verificação ocorre no momento do empréstimo e sempre que este empréstimo é renovado. A empresa pode não pagar nunca essa dívida, sempre a rolando para frente. Mas, a cada rolagem, o banco verificará se o fluxo de caixa futuro será suficiente para pagar a dívida.

Pois bem. No caso do governo, como um país dificilmente deixa de existir, mesmo que não haja fluxo de caixa futuro (superávit primário igual a zero), a dívida é sustentável se a taxa de juros for menor que a taxa de crescimento da economia. Aliás, não por outro motivo, as taxas de juros cobradas de governos são, invariavelmente, menores que as taxas cobradas de empresas. Não há nada de surpreendente ou novo aqui.

A tal “economia Samuelsoniana” das gerações superpostas funciona enquanto as taxas de juros forem menores que a taxa de crescimento econômico. O problema, como sempre, é combinar com os russos. No caso, com as taxas de juros.

Se não é assim, que seja assim

Chegamos ao ponto fulcral do pensamento “mmteano”, capitaneado no Brasil por Lara Resende, e que pode ter implicações práticas para a atuação do Banco Central sob a sua direção. Acompanhe com atenção.

Segundo o MMT, o controle da inflação não é tarefa da política monetária, mas da política fiscal. Ao Banco Central caberia apenas manter a taxa de juros abaixo da taxa de crescimento da economia, como preconiza a economia “Samuelsoniana”, para que o bem-estar seja maximizado pelos gastos públicos. Na verdade, nessa economia, a presença de um banco central passa a ser quase dispensável: a taxa de juros passaria a ser determinada por uma regra automática, e não por um certo grau de discricionariedade do banqueiro central, que está sempre em busca da taxa de juros ótima que possa trazer a inflação para baixo sem penalizar em demasia o crescimento econômico.

O controle da inflação se daria exclusivamente através da política fiscal. O governo, através de uma mistura de gastos e impostos, regularia o montante de moeda na economia, de modo a atingir um equilíbrio não inflacionário. Difícil compatibilizar essa ideia com a premissa de déficit zero para que a dívida seja sustentável no longo prazo, naquele truísmo que vimos logo no início. Mas vamos ignorar essa contradição para continuar com nossa análise.

O mundo do “dever ser” é um mundo lindo, maravilhoso mesmo. Neste mundo, o crime simplesmente não existe, por exemplo. Não existe simplesmente porque o crime é errado. Ponto. Neste mundo, a polícia é dispensável, claro. Assim também no maravilhoso mundo do MMT: a política monetária é dispensável, porque o governo controlará a inflação através da política fiscal (gastos e impostos). Seria ótimo viver nesse mundo. Infelizmente, o mundo real é diferente.

No mundo real, o governo gasta muito quando a economia está em recessão e gasta mais ainda quando a economia está em crescimento. A inflação é o resultado líquido e certo da política fiscal do governo. De qualquer governo. Tanto faz se a moeda é um meio de troca ou se é uma unidade de conta entre o governo e os cidadãos que pagam impostos. No final do dia, deixado à sua própria natureza, o governo forçará a demanda agregada, porque esse é a natureza do processo político. O banco central é a polícia, que está ali para evitar que o crime inflacionário seja cometido.

Lara Resende tem um pé na realidade. Sabe que os financiadores da dívida têm receio justamente deste comportamento do governo e, portanto, pedem taxas de juros mais altas quanto mais longos forem os títulos públicos. Por isso, defende que o governo se financie somente no overnight, não sancionando este tipo de temor dos rentistas. Afinal, o governo cumprirá a sua parte e, portanto, não faz sentido pagar taxas de juros mais altas do que a taxa determinada pelo banco central, que, como sabemos, será menor que a taxa de crescimento da economia. Ao se financiar somente no overnight, o governo garante essa relação. Fica difícil imaginar porque os outros agentes econômicos se financiariam a prazos mais longos, se nem o governo toma dinheiro emprestado nesses prazos. Viveríamos uma economia no overnight, como nos melhores tempos da hiperinflação, sem crédito de longo prazo.

Banco central que mantém as taxas de juros abaixo da taxa de crescimento econômico, na crença de que o governo controlará os seus gastos para não gerar excesso de demanda e, como consequência, inflação. Esta é a economia do MMT, preconizado por Lara Resende. O que acontecerá quando assumir o Banco Central?

Bejamin Button, afinal, é uma aberração

Lara Resende e os proponentes do MTM insistem na tese de que o governo pode tudo, não tendo restrição financeira alguma, na medida em que é o criador da moeda e não pode, por isso, dar calote. No entanto, ao longo de todo o artigo, o economista vai concluindo o que todo economista mainstream sabe: sem equilíbrio fiscal, nada feito. Tanto faz a explicação que se dê, tanto faz a tese que embasa a conclusão, o que importa é o governo não gastar em excesso e mal.

O MMT seria apenas uma construção mental inútil, por chegar às mesmas conclusões do mainstream, se não fosse perigosa. Como diz Lara Resende, as premissas do MMT, se mal-entendidas, “correm o risco de serem apropriadas pelo populismo para justificar o gasto público demagógico e o estado patrimonialista”. Pois é. Para que correr esse risco, se um governo fiscalmente responsável é também premissa da macroeconomia mainstream? Com a vantagem de que os economistas ortodoxos nutrem um saudável ceticismo em relação aos governos, o que os levam a preconizar um banco central independente, que controla o nível de juros de acordo com metas de inflação, como um contraponto ao governo que “cria” moeda ao gastar.

Não, o normal é que as pessoas nasçam novas e morram velhas. Benjamin Button pode ter alguns pontos de contato com uma vida normal, mas é, no final do dia, uma aberração. A construção mental do MMT é desnecessária, no mínimo. E, como admite seu defensor no Brasil, pode ser perigosa, ainda mais em um país viciado em inflação.

A inflação do chuchu

Haddad afirma que os juros estão em um nível “fora de propósito”.

Lara Resende diz que os juros estão “errados”.

Como nenhum dos dois se dispôs a dizer quais seriam os juros “certos” ou “razoáveis”, nem compartilharam o seu modelo de determinação dos juros, a coisa soa mais a achismo. E achismo por achismo, também tenho meu palpite.

Também acho que os juros estão errados. A julgar pelos resultados dos últimos dois anos e pelo que se encaminha nesse ano de 2023, os juros deveriam ser ainda mais altos. Se o BC se encaminha para o terceiro ano de não cumprimento de meta, é porque praticou juros abaixo do que deveria. No sistema de metas de inflação, é a inflação que determina se os juros estão “certos” ou “errados”. O resto é só achismo de botequim.

Há uma concordância implícita com essa premissa quando se discute a meta de inflação. Mexer na meta só faz sentido se se acredita que o nível das taxas de juros é função da meta. Ou, mais tecnicamente, do desvio da inflação em relação à meta. Sintomaticamente, Lara Resende pouco menciona a meta em suas entrevistas e artigos. Prefere fazer uma espécie de “taxonomia da inflação”: tratar-se-ia de “inflação de oferta”, não “de demanda” e, portanto, infensa à taxa de juros. Assim, segundo o economista, o BC deveria, neste caso, assistir ao processo inflacionário passivamente, pois não haveria nada a fazer. Nos lembra os bons tempos de Mário Henrique Simonsen e sua “inflação do chuchu”, época em que o governo combatia a inflação “de oferta” na base de controle de preços da Sunab.

Voltando à racionalidade do sistema de metas (sistema este, bom lembrar, que manteve a inflação baixa em boa parte dos últimos mais de 20 anos), um aumento da meta poderia até levar a um alívio da política monetária, mas só na primeira rodada do jogo. O diabo é que trata-se de um jogo com infinitas rodadas. Já na segunda, voltaríamos exatamente ao mesmo problema, só que com uma inflação mais alta. Explicando: o que determina a taxa de juros real neutra da economia é a própria economia, não o Banco Central. Assim, se a inflação está acima da meta (qualquer que ela seja), o BC precisa praticar taxas de juros reais acima da taxa neutra – assim funciona o sistema de metas. Com a meta mudada para cima, a taxa de juros nominal também precisa subir. Se, em um primeiro momento, o aumento da meta faz com que as expectativas fiquem abaixo da nova meta, em um segundo momento todas as expectativas migram para a nova meta, e as velhas mazelas brasileiras voltam a empurrar as expectativas para cima da meta. Voltamos ao ponto inicial do jogo, mas com uma inflação mais alta.

O raciocínio acima é complexo, e é difícil de explicar em uma mesa de bar. Mais fácil colocar a culpa da inflação no chuchu da vez.

O futuro presidente do BC se apresenta

Quando achávamos que André Lara Resende já tinha esgotado o seu arsenal de asneiras, eis que somos surpreendidos pela sua aparentemente inesgotável criatividade. Em artigo de ontem no Valor Econômica, o economista nos brinda com mais “verdades” e “fatos” para contrapor o consenso (só faltou dizer “de Washington”).

Lara Resende começa dizendo (e esse é um dos dois únicos “fatos” usados pelo economista para sustentar sua argumentação) que o governo brasileiro produziu superávit no ano passado. Ora, onde estaria o problema fiscal em vista desse resultado? Aliás, Lara Resende precisa combinar o discurso com o ministro da Fazenda, que insiste em dizer que herdou uma situação fiscal desastrosa do governo Bolsonaro. O articulista afirma que os arautos do apocalipse dão as costas a esse fato para continuarem sua missão de propagar o pânico, com o objetivo escuso de manter os juros altos. Claro que explicar para Lara Resende a diferença entre foto e filme é perda de tempo.

O segundo “fato” mencionado por Lara Resende é simplesmente falso: o tamanho da nossa dívida estaria em linha com a de outros países emergentes semelhantes. Fake, nossa dívida é muito maior. Não vou gastar muito tempo aqui, pois esse é fato sabido e comprovado.

Voltando à questão do alarmismo do mercado, o economista volta ao mesmo ponto de outros artigos: seria contraditório o mercado apontar o risco fiscal da PEC da gastança, quando o aumento dos juros produz gastos muito maiores. Segundo esse raciocínio, se estivesse mesmo preocupado com o risco fiscal, o mercado deveria clamar por redução dos juros. Bem, esse tipo de raciocínio pressupõe que já estejamos em “dominância fiscal”, um estado da economia em que a política monetária (taxa de juros) se submete à política fiscal (gastos com juros). O problema é que, quando se chega nesse estágio, o doente já está em fase terminal, e os médicos se dedicam somente a cuidados paliativos, como, por exemplo, congelamento de preços e controle de capitais. A Argentina é um bom exemplo desse estado da economia.

Ainda segundo o economista, haveria dois tipos de “investidores”: aqueles que investem em capital físico e intelectual (que seriam os investidores de verdade) e os chamados “rentistas”, que investem em títulos públicos ”sem risco”. Essa expressão, ”sem risco” é, obviamente, falsa. Existe o risco, que vou chamar aqui de risco “Lara Resende”, de um doidivanas como ele assumir o BC e colocar em prática as suas teses. Se isso vier a acontecer, a inflação vai comer todo o rendimento dos títulos públicos e mais um pouco. Chegará um momento em que ninguém mais vai querer carregar esses títulos “sem risco”, preferindo títulos denominados em moedas de verdade. Novamente, vide a Argentina.

Mas é na descrição do mercado de títulos públicos que André Lara Resende se supera, e atinge o próximo nível do perfeito idiota latino-americano. Segundo o economista, se o governo se tornasse superavitário e a dívida pública desaparecesse, a economia entraria em profunda depressão!!! Afinal, onde os rentistas aplicariam a sua poupança? Nesse sentido, a dívida pública seria um “bem público”, assim como o são escolas e hospitais, por exemplo. A conversa é tão de loucos que fica até difícil argumentar. É óbvio que, se a dívida pública desaparecesse via calote, a economia entraria em depressão. Mas, se o governo efetivamente pagasse a sua dívida, esse dinheiro seria liberado para atividades muito mais produtivas. A taxa de juros seria muito mais baixa e o potencial de crescimento da economia seria muito maior. Isso é tão óbvio que tenho até certa vergonha de explicar.

Por fim, Lara Resende afirma que o BC determina sim a taxa básica de juros, e poderia colocá-la onde quisesse. Até cita o BC japonês, que “determina” toda a curva de juros, não só a taxa básica, para demonstrar todo o poder que um BC possui. É aqui que identificamos o erro fundamental do economista: o BC (e o mercado) não estão preocupados com o “risco fiscal” per si. O risco fiscal só entra na equação porque pode determinar a inflação no futuro. Aliás, inflação que é a grande ausente do artigo de André Lara Resende. O BC determina a taxa de juros para controlar a inflação, e a expansão fiscal só torna esse trabalho mais difícil. Ao contrário do que diz Lara Resende, o BC não pode colocar a taxa de juros onde quiser. Quer dizer, poder pode. Mas as consequências vêm depois.

Com esse artigo, André Lara Resende se credencia como futuro banqueiro central do Brasil, talvez mais cedo do que mais tarde. Suas ideias devem soar como música aos ouvidos de Lula e Haddad. Lara Resende terá, então, a oportunidade de colocar em prática toda a sua sabedoria baseada em “fatos”. E se der errado, sempre haverá um bode expiatório à mão, nem que seja uma distante “herança maldita”. Nisso o PT é craque.

Tudo o que um governo populista quer ouvir

Tenho até uma certa vergonha do que vou escrever a seguir. Afinal, quem sou eu na fila do pão para ensinar algo a André Lara Resende, um dos pais do Plano Real (como não se cansam de nos lembrar os jornalistas que pretendem repisar as supostas credenciais ortodoxas do economista), ou a Pedro Cafardo, um dos criadores do maior jornal de finanças do país, o Valor Econômico. É muita pretensão da minha parte, eu sei. Certamente me escapa algum detalhe que mentes mais limitadas como a minha não conseguem alcançar. Quem sabe esse pequeno post chegue a algum deles, e eles possam, assim, nos iluminar com uma explicação convincente sobre o que vai a seguir.

A questão é a seguinte: anteontem, André Lara Resende escreveu artigo no Valor, afirmando que é muita hipocrisia (não lembro se usou essa palavra, mas o sentido é este) reclamar da PEC da gastança e, ao mesmo tempo, defender os gastos com juros. Ambos seriam gastos ”obrigatórios”, um para resgatar a dívida pública e o outro para resgatar a dívida social. Além disso, e esse ponto é chave, os gastos com juros (repito, muito maiores do que a PEC da gastança) seriam tão inflacionários quanto os gastos da PEC, pois aumentariam a demanda agregada, razão pela qual o aumento dos juros por parte do BC seria contraproducente para combater a inflação.

Pedro Cafardo, em seu artigo de ontem, compra a tese e dá números: o governo pagou R$ 1,96 trilhões entre juros e amortizações da dívida, o que representaria quase metade do orçamento federal. Para deixar claro o tamanho da ”gastança” com juros, Cafardo cita a segunda maior despesa do governo, a Previdência, que representa cerca de 20% do orçamento.

Há aqui uma confusão tão grande, que chego a pensar se não seria de caso pensado. Vejamos.

Comecemos pelos números trazidos pelo jornalista. Em 2021, o governo “gastou” R$ 1,96 trilhões com juros e amortizações da dívida. Para começar, esses conceitos são muito diferentes.

A amortização é a devolução do principal da dívida. Você empresta R$ 1.000 reais para o governo, o governo gasta esse dinheiro e, depois de algum tempo, devolve esse dinheiro para você. Contabilizar essa devolução como um gasto significa dizer que o governo gastou o dinheiro duas vezes: a primeira quando recebeu o dinheiro e a segunda quando pagou a dívida. Obviamente não faz sentido.

Já os juros (serviço da dívida), esses sim são despesa do governo. Talvez por ser um dos pais do Plano Real e não apenas um dos criadores do Valor, André Lara, pelo menos, não cai nesse erro básico. Em seu artigo, ele foca nas despesas adicionais com juros do governo, devidas ao aumento da taxa Selic. E essas despesas seriam inflacionárias, pois pressionariam a demanda agregada.

O que nos dizem os números? Vamos usar o ano de 2021, que foi o exemplo dado pelo jornalista. Segundo o Portal da Transparência, dos R$ 1,91 trilhões de juros e amortizações pagos pelo governo (e não R$1,96 trilhões, como citado pelo jornalista), R$ 1,36 trilhões foram de amortizações e R$ 0,55 trilhões foram de juros. Portanto, apenas esse último montante seria realmente “despesa” do governo.

No entanto, e aqui está a parte mais importante do post, Cafardo afirma que a dívida pública, “apesar” de todos esses pagamentos, aumentou em R$ 700 bilhões em 2021! Ora, se foram pagos em juros R$ 550 bilhões, isso significa que não só esses juros voltaram para o Tesouro, como o Tesouro sorveu R$ 150 bilhões adicionais dos poupadores!

Vou repetir o raciocínio para quem se perdeu. Imagine que você deve R$7, sendo que R$2 vencem neste ano. Se você pagasse esses R$2, sua dívida cairia para R$5, certo? Mas você não paga, você refinancia, ou seja, toma emprestado de novo. Sua dívida permanece em R$7. Mas, além disso, dessa dívida de R$7, você deve juros no valor de R$1. Você também não paga esses juros, você pede dinheiro emprestado para pagar. Sua dívida passa a ser de R$8. Além disso, você precisa gastar adicionalmente R$0,50 sem ter esse dinheiro e, portanto, precisa tomar emprestado mais R$0,50. Sua dívida vai a R$8,50. Portanto, desses R$8,50, R$7 são dívida antiga (das quais você refinanciou R$2 neste ano) e R$1,50 é dívida nova, sendo R$1 dos juros acumulados e R$0,50 de despesas novas. Voltando aos números: do R$1,91 tri, R$1,36 tri é dívida antiga refinanciada e R$0,55 tri de juros não pagos. Se os juros tivessem sido pagos, a dívida ficaria constante. Como não foram, a dívida teria aumentado em R$0,55 tri. Como aumentou em R$0,7 tri, temos que o governo gastou R$0,15 tri adicionais.

Note que, de todos esses “gastos”, nada, absolutamente nada, é “gasto dos rentistas”. O dinheiro volta todo, e mais um pouco, para o próprio governo. É este o “gastador”, o “impulsionador da demanda”. As amortizações e os juros pagos são transformados em títulos públicos e encarteirados pelos rentistas, que não podem pagar comida ou viagens com títulos públicos. O dinheiro dos rentistas (a dívida pública) já foi gasto no passado pelo governo. Os únicos gastos realmente adicionais em 2021 foram os R$150 bilhões, que se transformaram em dívida que deverá ser paga (ou rolada) no futuro. Portanto, se tem alguém aumentando a demanda agregada é o governo, não os “rentistas”. O dinheiro destes está preso, na forma de títulos públicos.

Mas a parte mais assustadora do artigo de Pedro Cafardo não é a completa ignorância sobre esses fatos simples. O que mais assusta (mas não surpreende) é a afirmação de que Haddad está longe de discordar de Lara Resende.

Como o BC é independente, não haverá como, por vias normais, influenciar o seu trabalho. No entanto, como já vimos, o Congresso aprova PECs como se troca de camisa, a depender da recompensa. Além disso, o mandato de Roberto Campos termina no fim de 2024. Portanto, não se pode descartar alguém de um perfil mais, digamos, alinhado ao de Lara Resende (quem sabe o próprio) a partir de 2025 no comando do BC. Por fim, a meta de inflação parece muito apertada para um governo que não vê “um pouco mais de inflação” como um problema.

O artigo de André Lara Resende será lido, no futuro, como a sua carta de apresentação para o emprego de banqueiro central alinhado com o governo. Está lá tudo o que um governo populista quer ouvir.

O estranho mundo de Lara Resende

Para quem não tiver paciência de ler esse artigo de André Lara Resende, vou resumi-lo em poucas palavras: o BC fez mal ao país ao subir os juros, porque os gastos com juros tiram dinheiro das necessidades sociais mais prementes e, além disso, impulsionam a inflação, porque os juros pagos aos rentistas se transformam em consumo. Além de impulsionar a demanda, o BC erra ao não considerar que vivemos uma inflação de oferta, de modo que não adianta nada subir os juros.

No mundo segundo André Lara Resende, o BC deve fazer considerações sobre o gasto do Tesouro com juros antes de decidir sobre o nível da Selic. Segundo Lara Resende, é o BC, e só o BC, que determina o custo da dívida. Nesse estranho mundo, é o devedor quem determina a taxa de juros que vai pagar para se endividar.

Infelizmente, André Lara Resende não aceitou fazer parte do governo. Seria o complemento ideal para a fantástica equipe que temos até o momento na Fazenda. Com suas ideias, experimentaríamos o próximo nível de desorganização do mercado, que faria o período Dilma parecer um passeio no parque.

O falso ortodoxo

Já tive oportunidade de escrever aqui a respeito das “ideias” de André Lara Resende, apresentado ao distinto público leigo como um dos “pais do Plano Real”, epíteto na medida certa para provocar uma sensação de conforto. Afinal, se o cara pariu o Plano Real, que salvou o país da hiperinflação, não deve pertencer àquela trupe que nos jogou na maior recessão da história brasileira.

Ocorre que Lara Resende é o principal defensor no país de um troço chamado MMT – Modern Monetary Theory, que propõe, em resumo, a capacidade de endividamento infinito do governo em sua própria moeda, pois, neste caso, o calote seria impossível. Em linguagem mais elegante, um governo que consegue se endividar na própria moeda não teria restrição fiscal. Claro. Mesmo porque, a dívida desaparece pelo efeito da inflação, não é necessário um calote formal.

A jornalista Claudia Safatle faz um resumo das “ideias” de Lara Resende em sua coluna de hoje. Destaquei apenas um trecho, em que o “pai do Plano Real” propõe um novo Copom que determinasse tanto a taxa de juros quanto o nível de investimento do governo.

Claro que a determinação da taxa de juros estaria subordinada a outras considerações além do controle da inflação. Sabe aquela ideia de independência do BC, pedra angular da estabilidade da moeda? Pois é. Gustavo Franco, em sua obra A Moeda e a Lei, descreve o longo e tortuoso caminho que seguimos durante várias décadas até finalmente conseguirmos criar uma agência independente que fosse a guardiã da moeda, blindada contra as pressões para a impressão de moeda sem lastro, sempre com nobres fins. Lara Resende propõe voltar várias casas nesse jogo.

Hoje, Lara Resende tem muito mais a ver com nomes como Guilherme Melo, Nelson Barbosa, Guido Mantega e Antônio Corrêa Lacerda, todos convocados a fazer parte da “equipe de transição”, do que com Pérsio Arida. O outro “pai do Real” não demorará a perceber que é um corpo estranho nesse organismo, da mesma forma que Joaquim Levy no segundo governo Dilma, devidamente rejeitado após um transplante impossível de dar certo. Em artigo no Estadão de hoje, Elena Landau, que foi coordenadora do programa econômico da candidata Simone Tebet, já caiu na real a respeito do novo governo. Em suas palavras, “Lula não aceita limites”, e “mostra que não aprendeu que, sem responsabilidade fiscal, as pessoas mais necessitadas são as que mais sofrem”. Pérsio, que é do mesmo time de Elena, já deve ter percebido isso.

Lula gosta de dizer que seu governo foi responsável fiscalmente, pois produziu superávits primários por 8 anos seguidos. O que ele não conta é que desperdiçou uma oportunidade de ouro para nos levar a outro patamar, quando os ventos externos nos eram favoráveis, ao optar pelo modelo Dilma-Mantega a partir de 2006, abandonando o modelo Palocci. A semente do desastre Dilma foi plantada por Lula. E os nomes que fazem parte da equipe de transição, além de seu discurso, mostram que o modelo Dilma-Mantega voltará a ser implementado.

Lula é pragmático, dizem. Quando o dólar bater R$ 7,00, ele vai fazer a coisa certa. Estou mais tranquilo.