Pagando para alguém levar

A ANS vetou a venda da carteira de planos individuais da Amil para um fundo de investimentos chamado Fiord.

Quando você ouve a palavra “venda”, o que você pensa? Que o vendedor recebe o dinheiro do comprador em troca da mercadoria vendida, certo? Qual não foi minha surpresa ao ler que a Amil PAGOU a bagatela de R$ 3 bilhões para que o Fiord levasse a mercadoria embora. Fazendo a conta, isso resulta em mais ou menos R$ 27 mil por plano “vendido”. Ou seja, a Amil pagou esse montante para se livrar do negócio.

Quando ocorre uma negociação, os dois lados fazem conta: o comprador avalia se aquele dinheiro que está desembolsando vai resultar em um retorno atrativo e o vendedor, da mesma forma, avalia se o dinheiro recebido na transação pode ser aplicado em outro negócio mais rentável do que aquele que está vendendo. Como cada lado tem sua própria avaliação e seu próprio conjunto de oportunidades concorrentes, chega-se em um preço que é satisfatório para ambas as partes.

Pois bem: o preço do negócio de planos individuais da Amil, que foi acertado entre as partes, foi de MENOS 3 bilhões. Isso mesmo, 3 bilhões NEGATIVO. A Amil pagou para que alguém levasse o negócio embora, provavelmente porque concluiu que o prejuízo seria maior se continuasse com o negócio.

Lendo a reportagem dá para ter uma ideia do porquê. Como parte do negócio, a Amil se comprometeu a iniciar um plano de corte de custos, o que resultou em descredenciamento de alguns hospitais e laboratórios. Duas histórias são contadas na matéria, em que juízes determinaram o recredenciamento de hospitais, com base no “direito adquirido” do assistido. A Amil está condenada a ter prejuízo para sempre.

Não vou aqui entrar no mérito da justeza das reivindicações dos assistidos. Acho até muito justo. O problema é que o mundo é justo até acabar o dinheiro. A ideia de que as operadoras de saúde ganham rios de dinheiro explorando (ou melhor, mercantilizando) a saúde do povo cai por terra com o preço “pago” pela Fiord para ficar com o negócio.

No final, se a ANS não voltar atrás, só restará à Amil fechar as portas, deixando ao relento os seus clientes, pois nenhuma empresa é obrigada a operar com prejuízo. Terá sido um belo serviço prestado pela ANS aos usuários de planos de saúde.

Ah, e antes que eu esqueça, #VivaoSUS.

O mundo mágico das leis

“Direitos conquistados não podem ser retrocedidos […]. Saúde não é mercadoria. Vida não é negócio. Dignidade não é lucro”.

Com essas palavras, e com sua caneta toda-foderosa de ministra de plantão, a Excelentíssima Ministra do Supremo Tribunal Federal, Carmen Lúcia, suspendeu liminarmente, em ação da OAB, resolução da ANS que estabelecia regras para a cobrança de franquia e co-participação dos usuários de planos de saúde.

Saúde é um problema no mundo inteiro. E isso por um motivo muito simples: “saúde não é mercadoria”, mas mesmo assim custa dinheiro. Como a demanda por saúde é infinita (todos querem viver para sempre com boa saúde), mas a oferta é finita, não há preço que equilibre oferta e demanda. Mas é preciso cobrar um preço, pois os operadores da saúde não vivem de brisa. Nesse sentido, saúde é sim uma “mercadoria”, e deve ser tratada como tal. Caso contrário, sua oferta desaparece.

A Ministra fala de “direitos conquistados”. Há dois tipos de direitos: os políticos e os econômicos. Os políticos são gratuitos: direito ao voto, direito à livre expressão, direito de reunião etc. Estes direitos se conquistam pela capacidade das sociedades de se organizarem e se livrarem de tiranias. Já os direitos econômicos somente são “conquistados” quando a oferta de produtos e serviços é viável economicamente. Caso contrário, são “direitos conquistados” apenas no papel.

Cansamos de ver isso no Brasil. A saúde talvez seja o melhor exemplo: se dependesse da Constituição, teríamos o melhor sistema de saúde do planeta. Só que não. A saúde (assim como a educação, a alimentação, o saneamento básico, o transporte, a justiça e uma longa lista de etceteras) é tratada na Constituição como um “direito”, não como uma “mercadoria”. Por isso, não sai do papel.

A Ministra acha um absurdo que os operadores da saúde obtenham lucro (que palavra tão feia!) com a sua atividade. Ora, sem o lucro, não há viabilidade econômica. E sem viabilidade econômica, não há oferta da “mercadoria”. Assim, o tal “direito conquistado” continuará ficando no papel. Especificamente no caso da norma da ANS, o que há é uma bem-vinda flexibilização: nem todos podem arcar com os custos de um plano sem co-participação e sem franquia. O que a Ministra e a OAB querem é que exista um só tipo de plano que cubra todas as doenças, todos os hospitais, sem franquia e sem co-participação, e que seja suficientemente barato para que todos possam adquiri-lo. Sim, eu também quero viajar para Marte e voltar em um fim de semana…

Ao exigir que os planos de saúde sejam perfeitos, a Ministra, na prática, exclui grande parte da população de uma parcela dos benefícios pelos quais poderia pagar. É mais ou menos o que acontece quando a legislação trabalhista coloca no papel uma série de “direitos adquiridos” do trabalhador, mas que, na prática, são inviáveis do ponto de vista econômico. O resultado é que somente uma elite tem acesso a esses direitos, enquanto o restante da população vive à margem da “legislação perfeita”. A nova legislação trabalhista nada mais fez do que reconhecer a realidade econômica, permitindo emprego “de carteira assinada” a pessoas que, antes, estavam fora do sistema formal.

“Vida não é negócio”. Frases de efeito são bonitas de se ler, mas não resolvem o problema daqueles que não têm emprego vitalício, plano de saúde custeado pelo governo, auxílio-moradia e outras prebendas. Ao insistir em uma visão de mundo em que os “direitos” são “conquistados” na base de belos discursos e canetadas, a Ministra Carmén Lúcia joga para o horror do SUS parcelas cada vez maiores da população, que não podem pagar pelo “plano de saúde perfeito” que só existe no mundo mágico das leis.