Jornalistas da Folha de São Paulo fizeram chegar ontem aos editores do jornal um manifesto contra a publicação de artigos que, segundo estes jornalistas, estariam a minimizar o problema do racismo no Brasil. A gota d’água teria sido um artigo do antropólogo Antônio Risério, que defende a tese de que a pauta identitária estaria levando (ou, no mínimo, ignorando) o racismo de pretos em relação a outras raças.
Assim como os jornalistas fizeram questão de afirmar no início de seu manifesto, também eu não pretendo aqui entrar no mérito da questão do racismo em si, pois não tenho conhecimento suficiente sobre o assunto. Mesmo porque, o ponto fundamental do manifesto não é o racismo, mas o livre debate de ideias.
Nesse sentido, o ponto-chave do manifesto é o trecho abaixo, em que os jornalistas comparam a negação do chamado “racismo estrutural” à negação do Holocausto. Da mesma forma que a Folha não dá espaço a negacionistas do Holocausto, também não deveria dar espaço para os negacionistas do “racismo estrutural”.
Este é um tema que me é especialmente caro por motivos familiares. Sempre que alguém usa o exemplo do Holocausto para defender alguma tese, já me ponho alerta, aí vem bobagem. Não foi diferente dessa vez.
O paralelo é simplesmente descabido. O Holocausto é uma verdade histórica comprovada. Há inúmeras provas documentais de sua existência. O paralelo cabível seria um artigo que, por exemplo, negasse a escravidão. Houve escravidão, assim como houve Holocausto, ponto. Isso está no mesmo plano de conhecimento que nos diz que a Terra é redonda. Por isso, a Folha também não dá espaço para terraplanistas em suas páginas.
Por outro lado, pode-se discutir (e se discute até hoje) o papel dos alemães, dos europeus em geral e dos próprios judeus no Holocausto. O extermínio premeditado de judeus em câmaras de gás foi culpa apenas de Hitler, dos nazistas em geral, de todo o povo alemão ou de todos os europeus? Qual o grau de culpa dos próprios judeus nessa história? Cada historiador terá a sua tese, trata-se de campo aberto para o debate de ideias. Mas nenhum historiador negará a realidade do Holocausto em si.
Ao comparar as críticas a teses como “racismo estrutural” e “racismo reverso” com a negação do Holocausto, o que querem os jornalistas da Folha é a elevação da tese à categoria de verdade histórica absoluta. Aqueles que refutam a tese estariam, nada menos, sendo negacionistas.
A tese do “racismo estrutural” é uma leitura possível da realidade, e o artigo de Antônio Riserio somente chama a atenção para possíveis falhas e consequências da tese. Tenho certeza que as páginas da Folha estão abertas a qualquer um que queira refutar o ponto de vista do antropólogo. Somente em sociedades totalitárias existe apenas uma interpretação possível dos fatos históricos.
Os jornalistas da Folha (e não estão sozinhos) estão de tal maneira imersos em seu mundo ideológico, que confundem suas teses de estimação com verdades absolutas. Dessa forma, misturam os fatos históricos com suas interpretações. Sem perceberem, a comparação com o Holocausto, ao invés de funcionar como uma espécie de cheque-mate contra os editores da Folha, serviu para desnudar o mundo mental em que vivem os autores do manifesto.