O petróleo é nosso. E será ainda por muito tempo.

Hoje, publiquei um post analisando artigo publicado no Estadão que criticava a intenção do presidente da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, de acelerar os planos de exploração de petróleo enquanto o ouro negro ainda tem algum valor, antes de completarmos a transição energética. Em resumo, o artigo afirma que em menos de 100 meses (até 2030), as emissões de gases de efeito estufa deveriam ser cortados pela metade se o mundo quisesse cumprir os compromissos do Acordo de Paris, e limitar o aquecimento do global em 1,5o C. Nesse contexto, seria um erro estratégico insistir na produção de petróleo, pois seria um produto com os seus dias contados. Como se intenções, pelo fato de serem boas, automaticamente se materializassem.

Por coincidência, hoje tive acesso a um extenso relatório recém-divulgado pelo J.P. Morgan, em que se analisa de maneira bastante completa o atual balanço entre oferta e demanda de petróleo e o prognóstico até o ano de 2030. O relatório do J.P. corrobora a posição da petroleira, pois prevê que não somente o consumo de petróleo não vai diminuir, como vai aumentar até 2030. A previsão é de um aumento de demanda de 7 milhões de barris entre 2019 e 2030. Sem as iniciativas de de-carbonização que estão sendo colocadas em prática, este aumento seria de 10,9 milhões de barris. Um ganho, sem dúvida, mas muito longe de aposentar o petróleo até 2030.

Vejamos, a seguir, os principais pontos desse relatório.

A estimativa de demanda por petróleo até 2030

O petróleo é a principal fonte de energia no mundo hoje, representando 32% do consumo global de energia, seguido pelo carvão (27%) e gás natural (24%). Só por aqui já vemos a dificuldade que enfrentamos: cerca de 83% de toda a energia produzida no mundo depende de combustíveis fósseis. Mas vamos focar no petróleo.

A primeira coluna mostra o valor calorífico de cada combustível (em megajoule por litro), a segunda traz o preço do litro no varejo de cada combustível nos Estados Unidos e a terceira é simplesmente a divisão entre o preço e o valor calorífico: quanto menor, mais barato é o combustível por unidade de energia produzida. Salta aos olhos a diferença entre os combustíveis fósseis e suas contrapartes sustentáveis. No caso de diesel e biodiesel, por exemplo, a diferença é de quase três vezes.

Mas existe uma questão até anterior ao preço: a viabilidade tecnológica de acesso confiável ao fornecimento de energia a um preço razoável. Na tabela a seguir, adaptada do relatório, listamos os diversos usos de energia, quanto representam da emissão de gases de efeito estufa (usaremos, daqui em diante a sigla GHG – Greenhouse Gas), quanto representam da demanda por petróleo e, mais importante, se há um substituto sustentável tecnologicamente viável no horizonte de tempo do estudo (até 2030).

Podemos observar que, tecnologicamente, temos somente três campos onde é possível a troca do uso do petróleo por energias limpas no curto prazo: geração de eletricidade, aquecimento/refrigeração e veículos leves e motos. Estas áreas representam 41,5% da emissão de GHG globalmente. Ou seja, em tese, seria possível cortar em quase metade as emissões se as tecnologias já existentes fossem empregadas extensivamente nessas três áreas. No caso da fabricação de produtos, em que combustíveis fósseis são empregados diretamente na movimentação de máquinas, até é possível trocar por eletricidade, mas o custo é tão mais alto, que o J.P. coloca como “tecnologia não disponível”, a menos que haja um imposto sobre emissões, o que nivelaria o custo por cima. No caso de veículos pesados, navios e aeronaves, nem isso é possível, pois não há tecnologia no horizonte.

Essa tabela guarda um paradoxo. Cortar GHG significa, na prática, trocar combustíveis fósseis por eletricidade. No entanto, a geração de eletricidade, hoje, representa cerca de 27% da emissão de GHG. Na medida em que mais setores adotarem a eletrificação, se a origem da eletricidade não for limpa, haverá apenas uma transferência de emissão de GHG de um setor da economia para outro, talvez com algum pequeno ganho, mas longe de ser suficiente. Portanto, é essencial que a geração de eletricidade tenha como origem uma fonte limpa e, tão importante quanto, confiável. Apesar de o relatório do J.P. colocar a geração de eletricidade como sendo uma tecnologia economicamente disponível, o aumento do seu uso pela de-carbonização de outros setores coloca um desafio adicional. Somente o desenvolvimento do hidrogênio verde ou o uso extensivo da energia nuclear, que não abordaremos aqui porque o foco é no uso do petróleo, poderá resolver essa equação. Mas esse desenvolvimento não está no horizonte até 2030.

Além disso, uma parte do uso industrial do petróleo não está relacionada com energia, mas com insumo. É o caso da indústria de plásticos, asfalto e outros produtos que usam o petróleo como matéria-prima. Assim, mesmo na hipótese de substituição do petróleo por energia elétrica na indústria, o uso do petróleo neste setor não será zero, assim como a emissão de GHG no processo produtivo.

Considerando todos esses fatores, o relatório do J.P. estima que a demanda por petróleo deve crescer globalmente em 7 milhões de barris, tendo como base o ano de 2019. Os maiores contribuidores para este aumento estão na tabela a seguir:

Note que há uma previsão de queda de uso gasolina equivalente 1,5 milhão de barris/dia, em função do aumento do uso de carros elétricos, que discutiremos em seguida.

Dos 7 milhões de barris adicionais de demanda, os emergentes serão responsáveis por 11,6 milhões, ao passo que os desenvolvidos reduzirão em 4,6 milhões de barris. Este fato é muito importante. Sempre que ouvimos sobre alguma experiência exitosa em algum país da Europa sobre eletrificação de frota (e veremos o case da Noruega mais à frente), podemos ter a impressão de que estamos às portas de uma grande virada global no uso de combustíveis fósseis. Nada mais longe da realidade. A Europa é um caso à parte, inclusive quando comparada com os Estados Unidos. Lá, há uma combinação única entre governos realmente comprometidos com as metas do clima, população mais consciente e com grande poder aquisitivo. Essa combinação não se repete, por enquanto, em nenhum outro lugar do mundo. Portanto, é sempre bom interpretar com um grama de sal qualquer notícia de de-carbonização vinda da Europa, pois não se trata de uma tendência de curto prazo para o restante do planeta.

Eletrificação de veículos leves

A partir deste ponto, o relatório do J.P. entra nas premissas utilizadas em cada setor para a redução do consumo de petróleo. No caso de veículos leves, temos a frente mais promissora. Aqui, vários governos já anunciaram metas de proibição de vendas de veículos movidos a combustíveis fósseis em algum ponto no futuro. Na Europa, região mais adiantada no processo, cerca de 39% dos veículos vendidos foram elétricos ou híbridos em 2021. Na China, este número está em 21% e nos Estados Unidos, em 11,6% agora em 2022, até fevereiro.

Temos aqui uma frente que, de fato, tem avançado de maneira cada vez mais rápida. O único problema é que, apesar de demandar 28% do petróleo utilizado no mundo, esse setor é responsável por somente 7,5% da emissão de GHG. Ou seja, ajuda, mas não é a bala de prata que alguns pensam ser. O caso da Noruega é emblemático.

A Noruega tem o programa de eletrificação de frota mais avançado do mundo. Graças a incentivos governamentais dos mais diversos, cerca de 21% da frota norueguesa de veículos leves é elétrico, contra uma média global de apenas 3,6%. No entanto, apesar desse avanço significativo, a demanda por petróleo vem crescendo a 6% ao ano desde 2016, e atingiu novo recorde em 2021. O consumo de GLP cresceu mais de 40% no país desde 2016, mais que compensando a queda no consumo de gasolina, que de fato ocorreu.

A substituição da frota é bem mais lenta do que sugere o número de veículos vendidos anualmente. Como vimos, atualmente, apenas 3,6% da frota global de veículos leves, estimada em um bilhão, é de veículos elétricos. Estima-se que esse número suba para 20% até 2030, mesmo nível da Noruega hoje. Considerando o crescimento vegetativo da frota nesse período, o número de veículos movidos a combustíveis fósseis será praticamente o mesmo daqui a 8 anos, ou seja, um bilhão. A diminuição do uso do petróleo para este fim virá mais da mistura de biocombustíveis à gasolina do que pela diminuição da frota. Mas essa mistura tem uma limitação dada pela capacidade de produção dos biocombustíveis. Ou seja, a queda do uso do petróleo por veículos leves se reduzirá, mas muito marginalmente.

Eletrificação de veículos pesados, aeronaves e navios

A viabilidade de eletrificação desses veículos é inversamente proporcional ao seu peso. Nesse sentido, dentre os veículos pesados, os ônibus são os candidatos mais naturais a serem eletrificados, pois levam cargas mais leves. Da mesma forma, os pequenos caminhões urbanos. Com os caminhões de grande porte, por outro lado, a dificuldade é maior. Para que um caminhão possa rodar 1.000 km sem recarregar, é necessária uma bateria de 14 toneladas. Como o caminhão em si pesa 18 toneladas e a carga máxima permitida nas estradas americanas é de 40 toneladas, sobrariam apenas 8 toneladas livres para carga, contra 22 toneladas para caminhões com motor a combustão. No caso de uma viagem de 1.500 km, a bateria pesaria 22 toneladas, simplesmente zerando o espaço para carga. Por isso, a eletrificação de caminhões pesados, por enquanto, é inviável economicamente. Sendo assim, o caminho para a de-carbonização de caminhões no curto prazo passa pelo desenvolvimento de biocombustíveis. Mas, como vimos, os biocombustíveis ainda são mais caros do que os combustíveis fósseis, e sua adoção ocorre somente por mandato legal. Para além de 2030, a solução deverá ser o hidrogênio verde.

No caso de aeronaves o problema é ainda pior, e certamente não passa por eletrificação. Se o combustível fóssil representa algo entre 20% e 40% do peso da aeronave, uma bateria para gerar a energia equivalente deveria pesar 30 vezes o peso da aeronave. A IATA tem um plano de substituir combustíveis fósseis por uma mistura de biocombustível (principalmente) e hidrogênio (secundariamente) até 2050. Mas até 2030, nada deve acontecer de relevante. O mesmo se pode dizer dos combustíveis para navios.

Para que o plano da IATA seja cumprido, a produção de biocombustível de aviação deve crescer dos atuais 100 milhões de litros para 450 bilhões de litros produzidos anualmente. No caso do hidrogênio, além dos problemas de produção, deve-se encontrar uma solução de engenharia para os aviões, pois o tanque para o hidrogênio deve ser 4 vezes maior do que atual tanque para combustível fóssil. Fora o problema da própria produção do hidrogênio, que consome uma quantidade grande de energia. Hoje, 99% da energia usada para produzir hidrogênio tem origem em combustíveis fósseis. No futuro, mas não até 2030, espera-se que a produção de hidrogênio utilize principalmente fontes limpas.

Processos industriais

Cerca de 31% da emissão de GHG e 28% da demanda por petróleo vem de processos industriais. Desses 28%, cerca de metade vai para a indústria petroquímica, principalmente na produção de plásticos. Não temos, hoje, como produzir plástico sem emitir carbono. A reciclagem poderia ser uma saída, mas tem suas limitações. Hoje, apenas 9% de todo o plástico produzido no mundo é reciclado. Isso acontece porque reciclar plástico é caro, e sua qualidade se deteriora rapidamente, permitindo apenas uma ou, no máximo, duas reciclagens.

Outros usos industriais do petróleo incluem a produção de ferro, aço e cimento, que demandariam soluções de eletrificação que não existem no momento e tampouco estão no horizonte.

Uso residencial e na agricultura

O uso residencial refere-se principalmente ao aquecimento de casas e apartamentos no inverno, que usam combustíveis fósseis no inverno. O relatório do J.P. nos informa que, na União Europeia, 36% do total de GHG emitido vem dos sistemas de aquecimento, sendo que a média global é de 7%. Não é à toa que os governos da região vêm emitindo regulamentações para aumentar a eficiência do uso de energia residencial, enquanto a eletrificação não é possível.

Na agricultura, que representa 19% das emissões de GHG, as soluções são ainda muito incipientes, enfrentando os mesmos problemas dos caminhões de grande porte.

Geração de eletricidade

A geração de eletricidade é um setor onde a substituição do petróleo está mais adiantada, mas ainda há um longo caminho a seguir. Nesse setor, a demanda por petróleo deve cair até 2030, mas o setor representa apenas 5% da demanda global por petróleo atualmente.

Conclusão

Aparentemente, o presidente da Petrobras tem razão ao apontar para a aceleração da produção de petróleo no curto prazo. O seu consumo deve continuar crescendo nos próximos anos, e o seu declínio deve estar ainda a uma geração de distância, no mínimo. Se isso significa que as mudanças climáticas terão consequências mais catastróficas, então é melhor já começarmos a pensar em um plano B para enfrentá-las.

Autoritarismo do bem

Um abaixo-assinado publicado hoje no Estadão (na verdade é um artigo, mas tem tantos autores que virou abaixo-assinado) dá um conselho à Petrobras: ao invés de investir em uma fonte de energia que será abandonada em breve, a empresa deveria investir em “alternativas neutras em carbono”.

O abaixo-assinado é uma reação a um artigo do presidente da Petrobras, Joaquim Silva e Luna, em que se defende a aceleração da exploração do pré-sal enquanto o petróleo ainda tem algum valor. O interessante é que tanto o abaixo-assinado quanto o artigo de Silva e Luna concordam no essencial: um dia, o petróleo deixará de ser uma fonte importante de energia. A divergência está no timing: para os abaixo-assinados, “em menos de 100 meses” as emissões de gases de efeito estufa terão de ser cortadas pela metade para que tenhamos alguma chance de limitar o aquecimento global em 1,5o, ao passo que, para o presidente da Petrobras, ainda teremos um bom tempo antes que isso aconteça, tempo suficiente para ganhar algum dinheiro com o petróleo do pré-sal.

Não vou entrar no mérito de quem está certo, mas esse artigo é, no mínimo, estranho. Será que os abaixo-assinados estão realmente preocupados com o futuro da Petrobras enquanto empresa e estariam dando um conselho de amigo? Pouco provável. Parece mais uma tentativa de empurrar uma profecia auto-realizável: sem produtores de petróleo daqui a alguns anos, o consumo cairá por falta de oferta, não de demanda. Ou seja, por trás desse “aviso amigo” de que a demanda despencará no futuro, está a tentativa de reduzir a oferta. Nice try, abaixo-assinados.

Além disso, soa patético o pedido de que a Petrobras se dedique à produção de “energias limpas”. É um pouco como pedir para um ortopedista realizar uma cirurgia cardíaca. “Mas não é tudo médico?”, perguntará o leigo. Com essa “proposta”, os abaixo-assinados demonstram a sua completa ignorância de como funciona o mercado de energia. Em determinado trecho, é mencionado que a empresa chegou a investir em etanol e biodiesel anos atrás, mas “deixou as renováveis de lado para focar no petróleo”. Fica difícil de saber de onde tiraram isso. A Petrobras tem papel marginal na produção de etanol e biodiesel, indústrias dominadas pelos grandes conglomerados do agronegócio, como Cargill e Raízen. O máximo que a petrolífera faz é comprar o etanol e o biodiesel e misturar na gasolina e no diesel. E só faz isso por determinação legal, não por estratégia de negócio.

O que se tem aqui é uma tentativa de introduzir um elemento estranho ao balanço da demanda/oferta de petróleo: o “custo ambiental”. Diminuindo a oferta artificialmente, teríamos um novo equilíbrio, com o preço do petróleo nas alturas (porque a demanda continuará lá) viabilizando fontes alternativas de energia. O resultado será menos gases de efeito estufa e energia bem mais cara do que a que temos hoje. Claro, as energias alternativas ficarão mais baratas com o tempo. Mas o caminho para o céu é a morte, e por mais que gostemos da ideia do paraíso, ninguém está a fim de morrer para chegar lá. Se energias alternativas mais baratas estivessem no horizonte, não estaríamos tendo essa conversa.

Esse abaixo-assinado seria cômico se não fosse trágico. Se a Petrobras seguisse o seu conselho, passaríamos a depender cada vez mais de petróleo importado. E, na heróica hipótese de que as metas para o clima fossem cumpridas, teríamos um petróleo cada vez mais caro no mercado internacional. Apostar que ”daqui a menos de 100 meses” teremos energia limpa a preços competitivos é jogar com a sorte dos mais pobres, que dependem de energia barata para sobreviver. Os abaixo-assinados dirão que o meteoro do aquecimento global está se aproximando, e não adiantará nada ter energia barata se todos estivermos mortos sob os escombros do seu impacto. É uma forma de ver a coisa. Fariam melhor, neste caso, se voltassem suas baterias para promover a diminuição da demanda. Atacar a oferta é uma forma autoritária de atingir o seu objetivo, na medida em que se colocam como aqueles que sabem o que é melhor para a humanidade, sem se dar ao trabalho de convencer a humanidade sobre a sua verdade.

Quem vai pagar a conta?

Existe energia suja, muito suja e imunda. A energia gerada a partir da queima do carvão enquadra-se nessa última categoria. Reportagem de página inteira hoje no Valor nos faz saber que o uso do carvão bateu o recorde histórico de uso em 2021. Mesmo os EUA de Biden, o amigo do clima, queimou mais carvão em 2021 do que os EUA de Trump, o arqui-inimigo do clima, havia queimado em 2019. Só não vou gargalhar porque rir em velório é de mau tom. Agora, a Europa procura desesperadamente alternativas ao gás russo. Adivinha no colo de quem a Europa vai cair. E tome carvão.

A reportagem nos conta que novas plantas de produção de carvão não estão recebendo financiamento, em função de exigências ESG. Resultado: o preço do carvão foi para as alturas (assim como, de resto, os preços dos combustíveis fósseis de maneira geral). A transição para energias limpas (solar e eólica principalmente) vem sendo exasperantemente lenta. Há claramente um problema de sincronismo. Resultado: energia (bem) mais cara no curto prazo.

Energia cara não é, de modo algum, popular. Não por outro motivo, governos em todo o mundo buscam formas de subsidiar os combustíveis fósseis neste momento. Na mesma reportagem, o secretário-geral da ONU, António Guterres, chama de “loucura” essa “corrida para os combustíveis fósseis”. Gosto de pensar no secretário da ONU proferindo essas graves palavras em seu gabinete na ONU com calefação obtida com a queima de carvão. O preço pode subir quanto for, a calefação na ONU estará garantida. O mesmo não se pode dizer de seus quase vizinhos do Bronx.

O problema da transição energética é que se trata de algo que tem um custo. E esse custo não é dos governos ou mesmo das empresas. Esse custo é de quem paga pela energia. Cúpulas do clima sempre terminam repletas de promessas. Só falta avisar quem vai pagar por elas.

Sacrifício tem limite

Moisés Naim, colunista do Estadão, sugere que o modelo de união entre os governos ocidentais seja também usado para ações de combate às mudanças climáticas. Afinal, segundo o colunista, o mundo está provando que é possível reagir a uma ameaça comum com união e assertividade.

Bem, é realmente difícil entender de onde o escriba tirou o paralelo entre as duas situações. Na superfície há alguma semelhança. Mas basta um pouco de análise para verificar que as situações são completamente diferentes, quando não opostas. Vejamos.

Grosso modo, ações de combate às mudanças climáticas significam colocar algum preço na emissão de carbono, o que, por sua vez, significa aumentar o preço da energia com origem em combustíveis fósseis de maneira permanente. Ou, até que novas tecnologias possam baratear novamente o preço da energia, o que pode levar décadas. Nesse sentido, as sanções econômicas contra a Rússia tiveram o mesmo efeito: aumento do preço do petróleo. Mas as semelhanças param por aí.

A primeira grande diferença é o período de tempo do sacrifício exigido. Os sacrifícios impostos por uma guerra são tanto mais toleráveis quanto mais fica claro que são transitórios. Em algum momento a guerra vai terminar, e vai se voltar ao status anterior. Nas mudanças climáticas não há esse horizonte. A energia ficará cara “para sempre”, porque é difícil estabelecer prazos para mudanças tecnológicas. Claro, os governos poderiam vender a ideia de uma guerra longa mas que terá um fim. As pessoas aguentariam as privações, se vissem sentido naquilo. Mas aí é que entra a segunda e principal diferença.

Para que as pessoas aceitem fazer sacrifícios são necessários símbolos fortes. No caso, a Rússia, liderada por uma figura que nos acostumamos a ver associada nos filmes ao inimigo, atacando famílias indefesas que poderiam ser nossas vizinhas de bairro, é um símbolo muito poderoso.

Por outro lado, o que acontece com as mudanças climáticas? Em um passado muito remoto, enchentes, furacões, incêndios, secas eram vistos como uma punição dos deuses pelos pecados dos homens. Na medida em que a humanidade foi dominando a ciência, aprendemos que esses fenômenos têm uma explicação natural. Agora, essa mesma ciência quer voltar a nos convencer de que esses fenômenos são devidos a nossos pecados, principalmente o hedonismo de querermos ar-condicionado no verão e calefação no inverno. Isso está longe, muito longe, de servir como símbolo. Estamos acostumados a ver secas e dilúvios desde que nascemos e a encarar isso como fenômenos naturais. Convencer as pessoas de que se trata de uma punição de Gaia vai ser difícil.

Assim, os governos precisariam convencer os eleitores de que nós somos os culpados pelas desgraças que estão caindo sobre nossas cabeças e, se não fizermos nada, o Armagedom nos aguarda (notem que até a narrativa do Juízo Final foi apropriada pelo discurso das mudanças climáticas). E, depois desse convencimento, precisariam prometer que a guerra terá um fim, que as privações serão temporárias, até que nossos bravos cientistas encontrem formas de produzir energia barata e confiável, que não signifique inundar terra de índios (o povo eleito de Gaia) ou produzir detritos nucleares tóxicos. Haja simbologia!

Não é à toa que os governos em todo o mundo estão tentando desesperadamente encontrar soluções para os preços altos dos combustíveis fósseis. Eles sabem que os seus eleitores não têm muita paciência para energia cara. Até topam um sacrifício rápido, se for para enfrentar o inimigo número 1 da humanidade, Putin. Mas a coisa muda completamente de figura quando se trata de combater as mudanças climáticas porque, neste caso, o inimigo somos nós mesmos.

A mensagem da Glencore para o planeta

A Economist vem mandando a real sobre a agenda ESG, principalmente no que se refere à sua influência sobre os investimentos. Em reportagem de sua última edição (Glencore’s message to the planet), a revista aborda o estranho caso da empresa suíça Glencore, que vem comprando ativos de produção de carvão na contramão da agenda de preservação ambiental – e com sucesso.

A matéria começa dizendo que o consumo de carvão para a produção de energia bateu recorde em 2021, mesmo depois de anos de pregação contra o seu uso. Esse consumo fez com que os preços da commodity atingissem níveis recordes em outubro deste ano, o que causou a forte alta das ações da Glencore.

A revista então chama a atenção para um pequeno fundo ativista, o Bluebell Capital, que vem tentando forçar a Glencore a vender seus ativos de produção de carvão, com base na agenda ESG. Mas sua iniciativa vem caindo em ouvidos moucos. Ao que parece, segundo a reportagem, os investidores têm mudado a sua visão a respeito do carvão. Não sem ironia, a revista afirma que este “é um sinal de quão ‘flexíveis’ podem ser os investidores quando as metas ESG batem de frente com o objetivo de maximizar retornos financeiros”.

Voltando um pouco no tempo, a reportagem lembra que a mineradora Rio Tinto foi a primeira a abandonar o carvão, isso em 2018. Logo depois, suas concorrentes, incluindo a Glencore, apresentaram planos na mesma direção. Em meados de 2021, a Anglo American separou a sua subsidiária de carvão, Thungela Resources, com o intuito de vendê-la. No entanto, depois de poucos meses, as ações da Thungela haviam quadruplicado de preço. Vendo isso, a Glencore, que havia acabado de aprovar um plano de venda de seus ativos de carvão, comprou a participação nesses mesmos ativos da Anglo American, e a mineradora BHP anunciou que vai segurar a venda de seus ativos de carvão.

A mudança de atitude veio dos próprios investidores, segundo a revista. A Blackrock, maior gestora do mundo e profundamente dedicada à pauta ESG, além de outros investidores, teriam chegado à conclusão de que é preferível que esses ativos permaneçam em mãos de empresas listadas em bolsa do que serem vendidas para fundos opacos de private equity. Novamente usando da fina ironia inglesa, a revista sugere que talvez os investidores não fossem tão benevolentes se os preços das ações estivessem caindo.

O fato é que, e a revista já vem chamando atenção para isso há algum tempo, o uso do carvão não vai sumir do mapa simplesmente porque os ativos foram vendidos pelas grandes mineradoras. Enquanto a demanda estiver aí – e a matéria afirma que a demanda dos países mais pobres continuará existindo durante muito tempo – os ativos continuarão existindo, só que longe dos olhos dos investidores.

A solução? A Economist sugere que somente uma ação concertada dos governos para a taxação das emissões de carbono e o redesenho dos sistemas de geração de energia pode diminuir a demanda pelo carvão. Mas, já falamos sobre isso aqui: taxar carbono significa aumentar o custo da energia. Qual governante está realmente disposto a colocar a mão nessa cumbuca?

O fato é que é mais fácil falar do que fazer. Como diz um desesperançado Nizan Guanaes em recente artigo no Brazil Journal, “acho que estamos mergulhados em um mar de blá blá blá. Se todas as empresas são ESG, quem está desmatando o mundo, emporcalhando os mares, aquecendo a atmosfera?”

Não olhe para cima

Um cometa chamado “aquecimento global” está se aproximando da Terra e destruirá a vida como a conhecemos se nada for feito. Esta é a mensagem do filme “Não olhe para cima”, da Netflix, que já virou o hit do verão (no hemisfério sul, bem entendido).

Claro que o paralelo não é perfeito, uma vez que a previsibilidade do impacto de um corpo celeste é muito maior do que tentar prever o clima daqui a 50 anos. Mas como a simplificação do argumento é o segredo para se transmitir uma mensagem com sucesso, o roteirista não se envergonha de lançar mão de um paralelo quase infantil. Aliás, o próprio filme ilustra a crítica de que se faz porta-voz: a ligeireza e superficialidade com que assuntos sérios são tratados pela indústria cultural e de comunicação de massa. Em outras palavras, o filme se enquadra à perfeição em sua própria crítica, com seus personagens caricatos e seu enredo de bandidos e mocinhos bem definidos.

Por outro lado, a patética teoria da conspiração abraçada pelas autoridades e seus seguidores alt-right (o que inclusive dá nome ao filme) deixa entrever outra teoria da conspiração, essa levada a sério e em tom de denúncia: a manipulação e o poder dos donos das redes sociais, que estariam por trás do poder político e econômico. Claro que a paródia exagera os personagens, mas a denúncia está lá. Que se despreze uma teoria da conspiração e se leve a sério outra diz algo sobre as preferências políticas das pessoas.

O mundo, feliz ou infelizmente, é um pouco mais complexo do que um cometa vindo em direção à Terra. Reportagem de hoje mostra o lobby de alguns países europeus, liderados pela França, para que a União Europeia passe a incentivar a energia nuclear como fonte “limpa” de energia, ao lado da solar e da eólica. A razão é simples: se depender dessa duas últimas, as metas de redução de queima de combustíveis fósseis serão virtualmente impossíveis de serem alcançadas. Alemanha, Espanha e outros países são contra essa amplificação do conceito de energia limpa.

A grande vantagem do petróleo é poder ser transportado por distâncias oceânicas. Se pudéssemos transportar a energia gerada pelo sol ou pelos ventos pela mesma distância, o problema estaria resolvido. Não sei qual a tecnologia envolvida, mas o que vejo são parques geradores que se comunicam com centros consumidores através de cabos terrestres. Portanto, não dá para transportar energia solar ou eólica produzida, por exemplo, no Brasil, para a Europa. Isso é um problema, porque os países europeus vão precisar gerar sua própria energia limpa. Haja sol e vento.

Por isso, a energia nuclear está sendo considerada como uma alternativa, talvez a única. Só tem um problema: em troca de uma energia que não tem pegada de carbono, tem-se o problema do lixo radioativo e o risco em si das usinas nucleares. Claro que a França faz a manutenção de suas usinas corretamente. Mas podemos confiar que Bulgária e Romênia farão o mesmo? Os alemães parecem não apostar nisso.

Enfim, o tema é muito mais complexo do que faz supor um filme-meme. Nem mesmo a crítica a Donald Trump, que veste saias no filme, faz sentido. Afinal, Trump já não manda mais nada. Joe Biden, Macron e o novo chanceler da Alemanha (que fez aliança com os verdes) certamente saberão o que fazer para destruir o cometa. Podemos respirar aliviados, a Terra está salva.

PS.: pode não parecer, mas gostei do filme. O elenco é muito bom e aprecio o estilo de humor do diretor. E acho que a principal crítica do filme, que é a forma superficial como os assuntos mais sérios são tratados pela comunicação de massa, é pertinente. A coisa só escorrega quando procura simplificar com palavras de ordem um assunto complexo como é essa questão das mudanças climáticas.

Os “afirmacionistas” do clima

O Estadão tem agora uma sessão para desmascarar “fake news”. Na manchete da página, a condenação aos “negacionistas do clima”, aqueles que não acreditam que as alterações climáticas são causadas pela ação humana.

Nem vou aqui discutir a natureza do aquecimento global. Afinal, se há “forte consenso científico”, quem sou eu para negá-lo. Meu ponto é outro, e vou usar o exemplo do negacionismo das vacinas para ilustra-lo.

Atribuir às vacinas um risco maior do que elas efetivamente têm é um risco para a saúde pública, pois a lógica da vacinação está na máxima cobertura populacional possível. Quem se vacina, age de acordo com o consenso científico e efetivamente contribui para o fim da pandemia. Quem não se vacina, contribui para que a doença fique mais tempo entre nós. Neste caso, há uma ligação direta entre “fake news” e eficácia da política pública.

Voltemos à questão do meio ambiente. Se fizéssemos um paralelo com a vacinação, todos os que seguem o “consenso científico” deveriam estar, neste momento, evitando tudo o que, direta ou indiretamente, emite gases de efeito estufa. A gritaria em torno dos preços dos combustíveis, cuja alta deveria estar sendo comemorada por todos os que defendem o clima, é prova suficiente de que não é bem assim.

Isso me faz lembrar um e-mail que recebi certa vez com a mensagem abaixo da assinatura do remetente: “antes de imprimir, pense no meio ambiente”. Achei graça daquilo. Então, podia imprimir, desde que se “pensasse” no meio ambiente antes. Como eu precisava daquela mensagem impressa, pensei bem forte no meio ambiente antes e tasquei um print. Acho que aquele pensamento deve ter feito brotar umas três árvores, de tão forte que foi.

A mensagem não era “evite imprimir”, mas sim, “pense no meio ambiente”. É um pouco como a Cop26 ou essa matéria sobre “fake news climáticas”. Ao contrário das vacinas, em que as pessoas que seguem o consenso científico agem de acordo vacinando-se, no caso do clima a coisa pouco passa de “pense no meio ambiente antes de dar partida no seu carro hoje de manhã”. O fato é que os “afirmacionistas do clima” contribuem da mesma forma para a sua degeneração que os “negacionistas”. Neste caso, “fake news” têm pouco poder de mudar as coisas. Com o perdão da expressão, o buraco é bem mais embaixo.

Qual o tamanho do desafio de substituir o petróleo?

Na vibe da conferência do clima em Glasgow, o Estadão publicou reportagem sobre o desafio de zerar as emissões de gás carbônico. Segundo o relatório Net Zero Carbon, da Associação Internacional de Energia (IEA, na sigla em inglês), o consumo de petróleo deveria ser reduzido dos atuais 96 milhões de barris/dia para 24 milhões barris/dia, uma redução de 75% em relação ao atual nível de consumo de petróleo. A projeção está no gráfico a seguir:

Resolvi fazer algumas contas para entender o tamanho do desafio. Assumi que todo esse petróleo deveria ser substituído por energias renováveis. Mas qual é exatamente a equivalência?

Para responder a essa primeira questão, é necessário saber a conversão de energia entre uma fonte e outra. Encontrei o site da Cegás, a companhia de gás natural do Ceará, que traz uma tabela de equivalência aqui. Segundo esta tabela, um barril de petróleo equivale a 150 m3 de gás natural e, ao mesmo tempo, 1 m3 de gás natural equivale a 10,92 kWh. Fazendo uma regrinha de 3 simples, chegamos na seguinte equivalência:

1 barril de petróleo = 1.639 kWh = 1,64 MWh (megawatts hora)

Em português, um barril de petróleo produz o equivalente a 1,64 MWh de energia. Portanto, a produção de 96 milhões de barris/dia equivale a 157,44 milhões de MWh por dia.

Para evitar grandes números, vamos transformar os MWh em TWh (tera watts hora): cada TWh equivale a 1 milhão de MWh. Assim, 96 milhões de barris/dia equivalem a 157 TWh/dia.

Como um ano tem 365 dias, temos 157 x 365 ~ 57.300 TWh/ano. Esta é a geração de energia em um ano de toda a produção de petróleo do planeta.

Voltando à meta da IEA, deveríamos cortar 75% desse produção, o que equivale a 0,75 x 57.300 ~ 43.000 TWh/ano. Este é o total de energia renovável que deveria ser produzida para substituir esse tanto de petróleo. Guarde este número.

A próxima questão é: quanto de energia renovável é produzida hoje? Encontrei esta informação no site da Sociedade de Investigações Florestais (aqui). Segundo o artigo, em 2019 foram produzidos aproximadamente 25.700 TWh de energia elétrica no mundo. No gráfico abaixo, temos a distribuição das fontes dessa energia ao longo do tempo, segundo a IEA:

Observe duas coisas:

  1. Grande parte da energia elétrica tem sua fonte no carvão (38%), no gás natural (23%), e no óleo combustível (3%), totalizando 64% de fontes emissoras de CO2 e
  2. A produção de renováveis equivale a 25% do total de 25.700 TWh, ou 0,25 x 25.700 ~ 6.430 TWh/ano.

Na verdade, este número é um pouco maior, considerando que estamos trabalhando com a proporção de 2017, e esta proporção vem aumentando. Vamos trabalhar com o dado do IEA, que pode ser encontrado aqui, e pode ser visto no gráfico a seguir:

Vamos, então, trabalhar com 7.000 TWh de produção de energia elétrica de fontes renováveis em 2019.

Lembremos agora que, para o consumo de petróleo cair 75%, precisamos produzir 43.000 TWh/ano de energia “limpa”. A produção atual de energia renovável é de 7.000 TWh/ano. Portanto, precisaríamos multiplicar a produção atual por aproximadamente 6 vezes.

Se quisermos, além disso, substituir as fontes sujas de energia elétrica, teríamos que produzir adicionais 64% x 25.700 TWh ~ 16.500 TWh/ano. Somados com os 43.000 TWh/ano para substituir o petróleo, teríamos 59.500 TWh/ano, ou 8,2 vezes a produção atual.

Mas, não consideramos o mais importante nessa conta: o aumento do consumo de energia ao longo dos próximos 30 anos. Esta é uma questão importante, pois a produção de energia renovável precisa não apenas substituir o petróleo e o carvão atuais, mas precisa também substituir o petróleo e o carvão do futuro.

Vamos recuperar os números vistos até o momento para entender o impacto desse crescimento. Vimos que:

  • A produção de petróleo equivale a 57.300 TWh por ano.
  • A produção de eletricidade equivale a 25.700 TWh por ano.

Por uma questão de simplicidade do raciocínio, e sem perder muita precisão, vamos assumir que toda a energia do mundo tenha somente essas duas fontes, e que o petróleo não seja usado para produzir eletricidade. Temos, então, um total de 57.300 + 25.700 = 83.000 TWh por ano de produção de energia no mundo.

Agora, vejamos uma estimativa para o aumento da demanda por energia nos próximos 30 anos.

A EPE (Empresa de Pesquisa Energética) estima a elasticidade da demanda de energia elétrica em relação ao crescimento do PIB em 1,5 (aqui). Ou seja, para cada 1% de crescimento do PIB, há um aumento de 1,5% de crescimento no consumo de energia elétrica. Vamos assumir essa elasticidade para o consumo global de energia.

Digamos que o crescimento do PIB global nos próximos 30 anos seja de míseros 2% ao ano. Teríamos, então, um crescimento de 3% (2% x 1,5) ao ano no consumo de energia. Ou seja, somente para acompanhar o crescimento do PIB, a produção de energia deveria crescer 1,03^30-1 = 142%. Ou, teríamos que ter uma produção adicional de 83.000 x 142% ~ 118.000 TWh de energia.

Resumindo, o desafio é o seguinte:

  • Temos que substituir 75% do petróleo produzido hoje, totalizando 43.000 TWh de energia por ano.
  • Temos que substituir as fontes “sujas” de energia elétrica, totalizando 16.500 TWh de energia por ano.
  • Temos que fazer frente ao aumento do consumo de energia nos próximos 30 anos, sem considerar contar com fontes “sujas”, no valor total de 118.000 TWh de energia por ano.
  • Total = 43.000 + 16.500 + 118.000 = 177.500 TWh/ano

Lembrando que, em 2019, tínhamos uma produção de 7.000 TWh/ano de energia renovável. É factível esperar um aumento de produção nessa magnitude?

No gráfico a seguir, a IAE estima a adição de capacidade instalada de geração de energia elétrica de fontes renováveis para os próximos anos, ano após ano:

Segundo o IAE, em 2019 foram adicionados 225 GW (gigawatts) ou 0,225 TW (terawatts) de capacidade de geração de energia elétrica de fontes renováveis. Isto significa uma capacidade de gerar 0,225 x 24 horas x 365 dias ~ 2.000 TWh de energia por ano.

Podemos observar que há duas previsões. A primeira (main case) apresenta um crescimento da capacidade de geração de energia limpa de 190 GW em 2019 para 225 GW em 2025, um aumento de 2,9% ao ano aproximadamente. Já no caso “acelerado”, em 2025 estaríamos aumentando 310 GW de energia em 2025, um crescimento de 5,5% ao ano.

Considerando que se trata da soma de uma progressão geométrica com razão 5,5% ao ano, termo inicial 2.000 TWh e 30 anos, temos:

Main case: Soma PG = 2.000 (1,029^30-1) / (1,029 – 1) ~ 93.500 TWh

Caso acelerado: Soma PG = 2.000 (1,055^30-1) / (1,055 – 1) ~ 145.000 TWh

Lembrando que a necessidade é de 177.500 TWh que vimos acima, mesmo no caso acelerado ainda não conseguiríamos chegar na substituição necessária, ainda que não fiquemos longe. No “main case”, ficamos muito distantes.

Enfim, trata-se de um exercício simples e bem limitado. Não sou especialista na área, trabalhei apenas com dados que encontrei na internet e fiz algumas contas. Se algum especialista encontrar algum erro grosseiro, por favor, terei prazer em corrigir.

Quem vai pagar a conta?

Rindo até 2100, quando o planeta estará 3oC mais quente e o mundo tal qual o conhecemos terá acabado.

A capa da Economist traz, para quem acompanha esta página, exatamente o que venho falando aqui nos últimos anos.

Copiando e colando o início da reportagem:

Since May the price of a basket of oil, coal and gas has soared by 95%. American petrol prices have hit $3 a gallon. Blackouts have engulfed China and India. Britain has turned its coal-fired power stations back on. And Vladimir Putin has just reminded Europe that its supply of fuel relies on Russian goodwill. The panic is testament to how much modern life depends on abundant energy: without it, bills become unaffordable, homes freeze and businesses stall.”

Vou traduzir a última frase, que é chave: “O pânico atesta o quanto a vida moderna depende de energia abundante: sem ela, as contas se tornam impagáveis, as casas congelam e os negócios param”.

Venho chamando a atenção para a impossibilidade prática de transformar a matriz energética sem mudar uma vírgula de nosso estilo de vida. O (triste) fato é que a energia limpa é mais cara que a energia suja, por ser intermitente. Se fosse mais barata, não seriam necessários congressos e mais congressos sobre o clima. Não houve congressos para a substituição das carroças pelos automóveis, nem da máquina de escrever pelo computador. A tecnologia melhor naturalmente substitui a pior. No caso, a energia limpa é economicamente pior que a suja. Claro, sempre se pode dizer que a energia suja é mais cara se forem considerados seus efeitos sobre o clima, mas o seu custo não está sendo corretamente precificado. Pois então, a reportagem da Economist é sobre isso: começamos a precificar corretamente a energia suja. O resultado é o aumento brutal dos preços, afetando a atividade econômica. Um mundo de energia limpa é um mundo mais pobre, pois gastamos mais com energia. Um mundo com uma qualidade de vida pior.

Governos se reúnem em congressos, de onde tiram metas ambiciosas de redução de gases de efeito estufa. Investidores pressionam empresas para que assumam a sua parte nesse bom propósito. No entanto, ninguém ainda teve a coragem de contar para o distinto público que tudo isso significa mais inflação e menos crescimento econômico. Estamos agora todos “descobrindo” isso, e não acho que a maioria esteja gostando do que está vendo.

Aos espíritos mais sensíveis, explico que minha risada que abriu esse post não é, de maneira alguma, de escárnio. Trata-se apenas de uma reação a uma certa ingenuidade que parece perpassar toda essa discussão, como se houvesse um pequeno grupo de governos e empresas muito maus que estivessem segurando as mudanças que beneficiariam a maior parte da humanidade. Estamos descobrindo, horrorizados, que é a maior parte da humanidade que vai pagar a conta da transição.

Ser ESG custa caro

A ESG cancelou seu IPO.

Para quem não está familiarizado com essa sopa de letrinhas, explico. ESG é a sigla em inglês que denomina os esforços das empresas para cumprirem uma agenda de apoio a questões ambientais, sociais e de governança corporativa (Environment, Social & Governance). IPO é a abertura do capital de uma empresa na bolsa, através da oferta de suas ações para o grande público (Initial Public Offering).

Uma empresa de gestão de resíduos batizada com o sugestivo nome ESG tentou abrir o seu capital na bolsa, mas não encontrou compradores para as suas ações a um preço razoável. Desistiu.

Ao adotar a sigla ESG como o nome da empresa, seus dirigentes devem ter achado uma grande sacada surfar na onda de “investimentos conscientes” que tomou conta do mercado e, por que não dizer, da sociedade. Afinal, uma empresa ESG mereceria uma maior atenção e complacência por parte dos investidores, que topariam pagar mais caro para ter o nome ESG estampado em seus portfólios. Descobriram que os investidores ainda fazem conta e, como tudo, ser ESG tem um preço.

Este não é um evento isolado. A China anunciou metas agressivas de cortes de emissão de gases de efeito estufa. Com limitações na produção de energia decorrentes dessas metas, várias de suas cidades estão enfrentando apagões, prejudicando a produção da fábrica do mundo e espalhando o receio de uma desaceleração da locomotiva do planeta. Um dos motivos para a queda recente das bolsas é esse. Os investidores já começam a pensar se essas metas de redução de emissão não estão agressivas demais.

O preço do petróleo está nas alturas e continua subindo. Mesmo assim, o leilão de áreas de exploração da ANP foi um fracasso completo. Apesar de haver questões ambientais envolvidas, o fato é que os produtores de petróleo já começam a avaliar se vale investir na exploração do ouro negro em uma economia em transição energética. Sem investimentos em produção, o preço sobe. Resultado: gasolina mais cara. Como queremos um mundo melhor mas com gasolina barata, o governo vem se virando nos trinta para achar uma solução para os preços dos combustíveis.

Todo mundo é a favor do bem e contra o mal. Fala-se em conter o aquecimento global como se fosse o bem absoluto, um objetivo contra o qual somente empresas malvadas que visam o lucro acima de tudo se oporiam. O fato é que a transição energética envolve custos, e não somente para as empresas, mas para sociedade como um todo. Estamos dispostos a pagar mais caro pela energia e pela comida? Pois é disso que se trata.

O fracasso do IPO da ESG não poderia ser mais simbólico das dificuldades da agenda ambiental.