O caso das “joias da Michelle” tem uma desimportância ímpar para os destinos da nação. Não estaria comentando aqui, não fosse o fato de representar um desafio lógico-dedutivo, ao confrontar duas versões para o mesmo fato. E, confesso, tenho um fraco por esse tipo de desafio.
Vejamos as duas versões. Em comum às duas, temos que, no dia 26/10/21, um assessor do ministro Bento Albuquerque é retido em inspeção de rotina na alfândega, em voo de volta de Riad, em posse de uma caixa de joias no valor estimado de 3 milhões de euros. A partir daí, as versões se bifurcam.
Na versão da imprensa, a receita oferece a opção de declarar aqueles objetos como “acervo do Estado brasileiro”, opção de pronto afastada pelo ministro. A partir daí, teriam se seguido ao menos outras 5 tentativas de liberar as joias: 1) 03/11/21: ofício do Itamaraty à Receita; 2) 03/11/21: ofício de Bento Albuquerque à Receita; 3) 28/12/22: ofício do secretário da Receita para a área de alfândega do aeroporto de Guarulhos; 4) 28/12/22: ofício do próprio presidente Bolsonaro ao gabinete da Receita; 5) 29/12/22: um funcionário da presidência toma um voo da FAB para São Paulo, com o objetivo de liberar as joias.
Na versão dos bolsonaristas (até onde pude entender), há dois ofícios que desmontariam a versão da imprensa. O primeiro, de 29/10/21, do gabinete de documentação histórica da presidência da República para o gabinete de Bento Albuquerque, respondendo a um ofício deste, datado de 28/10/21, afirmando que as joias “…enquadram-se na condição de encaminhamento a este gabinete, para análise quanto à incorporação ao acervo privado do Presidente da República ou ao acervo público da Presidência da República…”.
O segundo ofício, de 03/11/21, de Bento Albuquerque à Receita (mencionado também pela reportagem), afirma que “… se faz necessário e imprescindível que seja dado ao acervo o destino legal adequado”. Esse “destino legal adequado” seria o acervo da Presidência da República, ainda que não esteja claro no ofício.
Para reforçar essa versão, há também uma suposta carta de Bento Albuquerque para o príncipe bin Salman, de 22/11/21, em que o ministro afirma que os presentes teriam sido incorporados ao “Brazilian official collection”.
A meu ver, há algumas perguntas que precisam ser respondidas, antes que consigamos concluir algo:
1) Por que o assessor de Bento Albuquerque escolheu o “nada a declarar” na alfândega, quando estava carregando o que supostamente era um presente oficial de um governo estrangeiro? Não há procedimentos diplomáticos em casos como esse?
2) Se os agentes da Receita, como afirma a reportagem, deram a opção de oficializar a entrada das joias como “acervo da Presidência”, por que essa opção não foi aceita pelo ministro? Ou essa opção não foi ofertada e as joias foram apreendidas sem que os agentes da Receita aceitassem qualquer argumentação nesse sentido?
3) Onde estão os ofícios da Receita, respondendo aos ofícios do Itamaraty, de Bento Albuquerque e do próprio Presidente? Esses ofícios podem esclarecer por que a Receita continuou a cobrar o imposto e a multa, se o gabinete de Bento Albuquerque tinha deixado claro que se tratava de ”acervo da Presidência” e não ”do Presidente”. Ou a mensagem não foi clara o suficiente, permitindo outra interpretação por parte da Receita?
4) Por que Bento Albuquerque escreveu uma carta para o príncipe árabe, afirmando que os presentes já tinham sido incorporados ao acervo da Presidência, quando ainda estavam retidos na alfândega?
5) O que se passou entre o ofício de Bento Albuquerque à Receita em 03/11/21 e o ofício de Bolsonaro à Receita em 28/12/22? Houve outras tentativas de liberação? Se não, porque se passou mais de um ano sem que esse problema burocrático fosse resolvido?
6) Quantos mais assessores passaram pelo “nada a declarar” da Alfândega com presentes de outros dignatários e não foram selecionados para passar pelo raio X? Onde estão esses presentes hoje? Ou esse foi o único caso desse tipo, e justamente este teve o azar de ser parado pela alfândega?
São muitos os furos nessa história. Acompanhemos o seu desenrolar nos próximos dias.