Milei começou o ajuste pelo lado certo, o fiscal. Ao contrário de planos heterodoxos de combate à inflação, que começam pelo lado monetário normalmente congelando preços, Milei decidiu ir à fonte da inflação, cortando o seu oxigênio, o déficit.
Ah, mas o Brasil tem déficit também e a inflação está controlada. Sim, mas a que custo? Uma das mais altas taxas de juros reais do mundo, para atrair os investidores em nossa dívida. Os argentinos perderam essa capacidade, e a dívida do governo precisa ser comprada pelo Banco Central. É pura e simples impressão de pesos para manter um orçamento deficitário.
A principal crítica ao plano de Milei é que os argentinos vão ficar ainda mais pobres. Afinal, como informou minha amiga Nora Gonzalez, são nada menos do que 141 bolsas, benefícios e subsídios mantidos pelo governo. O ponto é que esse sistema não passa de uma grande mentira. Os argentinos JÁ ESTÃO mais pobres. As bolsas e subsídios são comidos pela inflação, em um esquema em que o governo dá de um lado com os subsídios e tira do outro com a inflação. Milei simplesmente está mostrando aos argentinos a dura realidade: eles são bem mais pobres do que imaginavam. Caberá aos argentinos decidirem se querem a verdade ou preferem continuar a viver uma ilusão.
Milei anunciou suas primeiras medidas para tentar conter a crise econômica (leia-se inflação e falta de dólares) da Argentina. No geral, todas na direção correta. Se serão suficientes ou mais será necessário, o tempo dirá. Duas me chamaram especialmente a atenção:
1) Milei cortou o número de ministérios de 18 para 9. Ou seja, o governo kirshenirista de Alberto Fernandez tinha apenas 18 ministérios. O governo Bolsonaro terminou com 23 ministérios, enquanto o governo Lula tem, atualmente, 38 ministérios. Se o ministério da Segurança Pública for recriado, serão 39 ministérios, igualando o recorde do segundo governo Dilma. De verdade, o número de ministérios pouco importa. Tendo ou não um ministério para chamar de seu, o que realmente importa é o número de funcionários públicos contratados. Bolsonaro juntou 4 ministérios no superministério da Economia, mas todas as funções continuaram lá. Cortar ministérios pode ter um apelo simbólico, mas seu efeito no ajuste fiscal é marginal.
2) O dólar oficial foi reajustado para 800 pesos, representando uma desvalorização de 50% do peso em relação à moeda norte-americana. O problema dessa medida é a sua natureza: o governo continua tabelando a moeda. Quem disse que 800 é o preço correto para o dólar? O blue está acima de 1.000 pesos, o que significa que, mesmo após a desvalorização, a moeda continua sendo negociada com ágio no mercado livre. O correto seria adotar o câmbio flutuante, com o mercado ditando o preço da moeda. Esta havia sido a primeira medida (correta) de Maurício Macri, e não entendo porque não foi adotada por Milei. Quer dizer, até entendo: aparentemente, Milei está com medo dos efeitos inflacionários da desvalorização. Mas não será com meias medidas que o problema da Argentina será resolvido.
Em resumo: 1) o ajuste fiscal está na direção correta, mas é preciso saber se será suficiente e 2) o câmbio continua errado. São só os primeiros dias, vamos ver como a coisa evolui.
A posse de presidentes argentinos de campo ideológico oposto ao do presidente brasileiro é um fenômeno recente. Até a posse de Macri, todos os presidentes argentinos eleitos desde a redemocratização eram mais ou menos do mesmo campo ou, pelo menos, neutros em relação ao presidente brasileiro. Assim, Sarney compareceu à posse de Menem em 1989, FHC foi à posse de De La Rua em 1999, Lula foi à posse de Nestor Kirshner e Cristina Kirshner em 2003 e 2007 respectivamente e Dilma Rousseff compareceu à posse de Cristina Kirshner em 2011.
No primeiro teste de civilidade democrática, Dilma Rousseff saiu-se bem, comparecendo à posse de Maurício Macri em 2015, mesmo com sua amiga íntima, Cristina Kirshner, recusando-se a passar a faixa para o presidente eleito. Pode-se tentar argumentar que Macri é um comunista perto de Milei, mas esse argumento perde força se considerarmos que o ex-presidente argentino apoiou Milei e o está ajudando a montar o governo. Assim, Dilma, mesmo em um ambiente já conflagrado aqui (ela seria impichada 5 meses depois) deu mostras de colocar as prioridades do país acima de suas preferências ideológicas.
Foi Bolsonaro quem inaugurou a agora tradição de não comparecer à posse do presidente do terceiro maior parceiro comercial do Brasil se este for do campo oposto. Alegando “imprevistos de última hora”, enviou o vice-presidente, Hamilton Mourão, para a posse de Alberto Fernandes em 2019.
Lula desceu mais um degrau na picuinha ideológica. O vice-presidente, ao menos, é um representante eleito do povo brasileiro. Sua presença, apesar de não compensar a falta do presidente, ao menos tem alguma carga simbólica. Muito melhor do que mandar o chanceler Mauro Vieira, que não passa, com todo respeito, de um ajudante de ordens graduado do governo.
Diziam que Lula era o contraponto democrático de Bolsonaro. Eu nunca engoli essa. É nessas pequenas coisas que Lula se mostra tão avesso aos rituais democráticos quanto Bolsonaro. Essa era uma oportunidade de marcar a diferença. Como vimos, não somente Lula imitou Bolsonaro, como o superou na incivilidade democrática.
Lembrando aqui os números das eleições argentinas, e que me fizeram cravar Sérgio Massa como próximo presidente da Argentina:
Primárias:
Milei: 30,0%
Massa: 27,3%
Bullrich: 28,3%
Outros: 14,4%
Comparecimento: 69%
1o turno (número entre parêntesis é a variação para as primárias):
Milei: 30,0% (zero)
Massa: 36,5% (+9,2%)
Bullrich: 23,9% (-4,4%)
Outros: 9,6% (-4,8%)
Comparecimento: 78%
Agora no 2o turno os números foram os seguintes (número entre parênteses é a variação para o 1o turno):
Milei: 55,7% (+25,7%)
Massa: 44,3% (+7,8%)
Comparecimento: 76%
O que me havia levado à previsão de Massa presidente foi a migração de votos de Bullrich para Massa das primárias para o 1o turno, e a extrapolação desse movimento para o 2o turno, o que simplesmente não ocorreu. Aparentemente, os eleitores de Bullrich que migrariam para Massa já o tinham feito no 1o turno. Sobraram os que não estavam dispostos a dar mais um mandato para os peronistas, que migraram em peso para Milei.
Mário Covas costumava dizer que o povo sempre vota “certo”, cabendo aos políticos interpretarem os resultados das urnas, não julgá-los. O povo argentino falou através das urnas de forma contundente, dando a Milei uma vitória muito folgada para os padrões atuais de polarização. Cabe aos políticos, inclusive no Brasil, interpretarem esse resultado. Os petistas devem estar com as barbas de molho, o que, por si só, já é uma boa notícia para o Brasil.
Há oito anos, Maurício Macri derrotava Daniel Scioli em uma eleição apertada, 51,7% contra 48,3% dos votos. Macri dava fim, assim, a 12 anos da era Kirshnerista no poder. Pró-mercado, Macri era a esperança da volta de alguma racionalidade macroeconômica ao país. Quatro anos depois, Macri perderia as eleições já no primeiro turno para o kirshnerista Alberto Fernandez, com Cristina Kirshner de vice. Macri, ao contrário de todas as promessas, entregou um país com inflação maior e com um pacote giganteesco do FMI, o maior da história da instituição. A estratégia gradualista de Macri não funcionou.
Loco Milei promete que, se eleito, não vai cair nos mesmos erros de Macri. Entrará com os dois pés no peito do Estado argentino, sem chance de reação. Lembra-me um pouco Fernando Collor, que dizia que iria acabar com os “marajás do serviço público” e tinha uma única bala para matar o dragão da inflação. Não era só retórica: Collor protagonizou o maior calote da dívida pública da história ao promulgar o confisco. Apesar de, do ponto de vista microeconômico, o governo Collor tivesse deixado um legado positivo, com as privatizações e a abertura comercial, do ponto de vista macroeconômico foi um desastre, com o seu calote nos assombrando até hoje. Não fosse o impeachment, certamente perderia as eleições de 1994.
A eleição de Massa, por outro lado, promete ser um pouco mais do mesmo, como se isso fosse resolver alguma coisa. A verdade é que a equação macroeconômica argentina não tem solução, a não ser através de um ajuste profundo do Estado, que deixará muitas viúvas pelo caminho. A estratégia Macri não deu certo, a estratégia Fernandez-Kirshner muito menos. A estratégia Milei ainda não conhecemos. Mas, pelo menos, será algo diferente. Só espero que não termine como Collor.
(este post foi escrito antes de conhecido o resultado das eleições, que deu a vitória a Milei)
Sergio Massa será o próximo presidente da Argentina. De onde concluí isso? Comparando os resultados das primárias com os resultados do 1o turno.
A chave ideológica nos levaria a dizer que Javier Milei tem grandes chances no 2o turno. Afinal, sendo de direita, Milei seria capaz de atrair a maior parte dos votos de Patrícia Bullrich. Somando os votos de Milei e Bullrich no 1o turno, temos 53,9% dos votos válidos, mais do que suficiente para que o candidato “anarcocapitalista” seja eleito. Para ser mais exato, Milei precisaria atrair 60% dos votos de Bullrich e dos outros candidatos para ser eleito. Não parece ser algo difícil, considerando o estado atual da economia argentina. Mas…
Mas não é isso o que a evolução do voto entre as primárias e o 1o turno nos diz. Vejamos.
Primárias:
Milei: 30,0%
Massa: 27,3%
Bullrich: 28,3%
Outros: 14,4%
Comparecimento: 69%
1o turno (número entre parêntesis é a variação para as primárias):
Milei: 30,0% (zero)
Massa: 36,5% (+9,2%)
Bullrich: 23,9% (-4,4%)
Outros: 9,6% (-4,8%)
Comparecimento: 78%
Ou seja, os votos de Bullrich (e dos outros candidatos) migraram para Massa, não para Milei. Os argentinos que expliquem esse comportamento, mas foi isso o que aconteceu. O comparecimento maior indica que os novos votantes escolheram preferencialmente Massa, o que também não é boa notícia para Milei.
Se esse mesmo padrão de migração de votos de Bullrich e os outros candidatos se repetir do 1o para o 2o turnos, Massa deveria se eleger até com certa folga. Mas ainda tem muita campanha pela frente.
A inflação no Brasil, este ano, deve fechar próxima de 5%. Os juros, apesar de estarem caindo, ainda estão muito altos. O Banco Central ainda mantém uma política monetária bastante apertada, pois ainda estamos distantes da meta de inflação, que é de 3% para o ano que vem. No entanto, do outro lado das Cataratas do Iguaçu, a inflação na Argentina está hoje em 140%, e só Deus sabe quanto vai fechar no ano.
Por que essa diferença gigantesca? O que o Brasil fez de certo, que lhe permite conviver com uma inflação civilizada? Ou, por outra, o que a Argentina fez de errado, para estar às portas de uma hiperinflação?
Como Brasil e Argentina acabaram com a hiperinflação
Investigar a história é sempre um exercício discricionário, no sentido da escolha que se faz do ponto de partida da narrativa. Neste artigo, decidi estabelecer o ponto de partida da comparação no início da década de 90, quando ambos os países resolveram o problema da hiperinflação que assolou a ambos na década de 80. Comecemos pelo Gráfico 1, que mostra justamente essa transição.
Não se deixe enganar pela escala! Mesmo em anos em que as barras estão pequenas, a inflação era muito alta para os nossos padrões atuais. Por exemplo, em 1986 (ano do Plano Cruzado no Brasil), a inflação brasileira foi de 80%, enquanto na Argentina foi de 82%. Observe que a Argentina resolve o seu problema inflacionário já a partir de 1991, com o Plano Cavallo (nome do ministro da economia de Carlos Menem) enquanto, no Brasil, este problema só é definitivamente endereçado em 1994, com o Plano Real. Vamos mostrar o mesmo gráfico a seguir, mas iniciando em 1995, quando ambos os países já tinham as suas inflações estabilizadas (Gráfico 2).
Observe que há duas fontes para a confecção deste gráfico, o FMI e um site chamado Trading Economics. Isso ocorre porque a base de dados do FMI não possui informações sobre a inflação da Argentina de 1997 para trás, e também para os anos de 2015 e 2016. O FMI somente coloca em sua base de dados informações que possuam um mínimo de confiabilidade. Aparentemente, não foi o caso da inflação argentina antes de 1997 e nos anos de 2015 e 2016. O site Trading Economics tem esses números, com exceção de 2016. Neste ano, nem com muito boa vontade.
A política cambial dos dois países
Voltemos para a análise. Note como, até o ano 2001, a inflação brasileira foi substancialmente superior à Argentina. Isso aconteceu porque o Plano Cavallo adotou uma dolarização disfarçada, chamada de “Currency Board”. Este mecanismo garantia a total conversibilidade entre o peso e o dólar, tornando a moeda norte-americana, na prática, a moeda de referência da economia argentina. No Brasil, também adotamos uma dolarização disfarçada, mas muito menos rígida: as “bandas cambiais”, em que o Banco Central comprava ou vendia dólares sempre que a moeda brasileira se afastava de um patamar pré-determinado. Esse mecanismo um pouco mais flexível gerou, como contrapartida, uma inflação muito mais alta do que a do nosso vizinho. No Gráfico 3, vemos os câmbios brasileiro e argentino no período que vai de 1995 a 1998, antes que ambos os governos desvalorizassem suas moedas. Podemos observar que o peso permanece em 1,00, enquanto o real se desvaloriza de 0,85 até 1,20.
No gráfico 4, temos a extensão do gráfico 3 até a desvalorização das duas moedas. Observe como a desvalorização do real, de 1,20 para cerca de 1,80, foi fichinha se comparada à desvalorização do peso, que foi de 1,00 até 3,80 em questão de meses. Isso aconteceu porque a economia argentina acumulou tensões durante muito mais tempo do que a brasileira, em um sistema muito mais rígido. Quando explodiu, a potência da explosão foi muito maior.
É dessa época o famoso “corralito”, um esquema de sequestro de dólares que pegou os argentinos de calças curtas, equivalente ao calote do Plano Collor.
Temos, então, já de cara, uma diferença fundamental entre Brasil e Argentina: o governo brasileiro decidiu por um sistema cambial mais flexível, mesmo durante o período do “câmbio administrado”, que durou apenas 4 anos. O Currency Board argentino durou nada menos do que 11 anos, do início de 1991 até o final de 2001, acumulando todo tipo de distorção. Sua saída foi caótica, com o presidente De La Rua tendo que sair de helicóptero do telhado da Casa Rosada e nada menos do que 4 presidentes se sucedendo em pouco menos de duas semanas.
A coisa começa a se estabilizar somente a partir de 2003, com a chegada ao poder de Néstor Kirchner e o início do superciclo das commodities, que irá beneficiar o Brasil, a Argentina e todos os outros exportadores de commodities. No gráfico 5, temos o real e o dólar nesse período, que vai de 2003 a 2011.
Note, no entanto, uma coisa estranha: enquanto o real se valoriza de maneira impressionante nesse período, passando de 3,50 para 1,50 entre 2003 e 2008, o peso pouco se move, permanecendo no patamar de 3,00 durante todo esse período. Ora, era de se esperar um comportamento semelhante, dado que os termos de troca eram favoráveis aos dois países, assim como a todos os outros exportadores de commodities. O peso chileno, por exemplo, saiu de 600 para 450 por dólar nesse período.
Por que isso aconteceu? O câmbio serve como um termômetro da saúde de um país. Se o peso não seguiu a tendência dos países exportadores de commodities, é porque algo errado havia. Se observarmos o que aconteceu após a Grande Crise Financeira (GCF) de 2008, ainda no gráfico 5, essa dicotomia fica ainda mais clara: enquanto o real se recupera da grande desvalorização do final de 2008, o peso começa uma escalada de desvalorização que irá somente piorar dali para frente. Podemos estabelecer este evento (a GCF) como o ponto inicial da deterioração da moeda argentina que dura até hoje, apesar de que, como vimos, a distorção está presente desde o abandono do Currency Board.
No gráfico 6, podemos observar o comportamento do ágio entre o câmbio oficial e a cotação do principal câmbio paralelo, o “blue” (infelizmente, só consegui dados a partir de 2008).
Note como o ágio é praticamente zero até 2011, o que indica que o câmbio oficial flutuava livremente. A partir de 2012, algo começa a acontecer, e o governo da então presidente Cristina Kirchner, que havia assumido no final de 2007, começa a controlar o câmbio. Com isso, o ágio explode, variando em torno de 60% a partir de 2013 até a vitória de Maurício Macri, que assume o governo em 2016. O novo governo libera o câmbio, que flutua livremente, fazendo com que o ágio voltasse para zero. Este quadro permanece assim até que Macri perde as eleições, e o novo governo de Alberto Fernández decide tabelar novamente o câmbio, fazendo com que o ágio explodisse novamente. É nesse ponto que estamos hoje.
Para o brasileiro, passou a ser estranho falar de “câmbio paralelo”. A última vez que o Estadão publicou a cotação do câmbio paralelo foi em abril de 2001, ou seja, há mais de 20 anos, e cerca de dois anos após o governo deixar o câmbio flutuar. Na Argentina, onde o câmbio é administrado pelo governo, o mercado paralelo é o que fornece a real cotação do peso.
As reservas internacionais
O acompanhamento das reservas internacionais fornece uma outra perspectiva do problema externo argentino. Em 2006, a exemplo do Brasil, a Argentina também “se livrou” do FMI. Portanto, vamos acompanhar a evolução das reservas argentinas desde então, no gráfico 7, com e sem os aportes do FMI.
Observe como, a partir de 2011, as reservas, que se encontravam por volta de US$ 50 bi, começam a recuar, até atingir US$ 25 bi em 2014. A partir de meados de 2016, o governo Macri, aproveitando uma onda de boa vontade do mercado internacional de capitais com o seu governo, adota a estratégia de emitir dívida para reforçar as reservas internacionais. Entre abril/16 e maio/18, o governo argentino emitiu US$ 66 bilhões em dívida externa, enquanto as reservas cresceram US$ 20 bilhões nesse período. Só nesta distorção já podemos perceber que havia algo de podre no reino de Buenos Aires. Esse “algo de podre” forçou o governo Macri, em junho/18, a fechar o maior acordo da história do FMI, um stand-by de US$ 56 bilhões. A partir de então, o governo argentino foi sacando desse acordo. Entre junho/18 e agosto/23, a Argentina sacou US$ 50 bilhões deste acordo. Descontando este montante, as reservas argentinas estão negativas em US$ 25 bilhões.
A comparação direta com a trajetória das reservas brasileiras fica prejudicada por conta da diferença de tamanho entre as duas economias. Assim, optei por mostrar a razão entre reservas e o total de importações mais pagamento de serviços de cada país (dados mensais), dado que as reservas servem justamente como uma reserva de emergência para este tipo de gasto. O resultado está no gráfico 8.
Observe como, a partir de 2009, esta relação se deteriora na Argentina, saindo do intervalo de 10-15 meses de importações (como a brasileira), para algo como 5 meses. Com o aumento das reservas feito por Macri, essa relação foi para o intervalo de 15-20 meses (como era a brasileira na época), mas deteriorou-se a partir de então. Note que, mesmo com o aporte do FMI, as reservas argentinas hoje conseguem pagar algo como 5 meses de importações, ao passo que as reservas brasileiras pagam algo como 10-15 meses.
O problema fiscal
Até agora, somente verificamos os sintomas da doença argentina, a inflação e o câmbio. Para entender, contudo, a doença, é preciso abrir o paciente. Ou seja, verificar a sua situação fiscal. É o que fazemos no gráfico 9, a seguir:
Note, em primeiro lugar, que não há estatísticas brasileiras dos resultados das contas públicas na base do FMI antes de 2001. Ocorre que, de fato, estatísticas fiscais do setor público brasileiro consolidado só começam a ser compiladas a partir de 2001. Antes disso, temos estatísticas do governo federal e banco central, em conjunto, a partir de 1991, e separadamente somente a partir de 1999. Temos também estatísticas dos governos subnacionais a partir de 1991, mas sem consolidação com o governo federal. Ou seja, antes de 2001, as contas públicas brasileiras eram bastante opacas, e sabemos que, para qualquer ação de saneamento, antes é necessário ter uma noção da situação real.
Vejamos a situação da Argentina. Durante os anos do Currency Board, a Argentina tinha uma situação fiscal relativamente equilibrada, com baixos superávits e déficits fiscais. Portanto, a saída atabalhoada da paridade cambial, em 2001, deve-se mais aos desequilíbrios externos do que à situação fiscal doméstica. A partir de 2003, assim como o Brasil, a Argentina produziu superávits primários bastante expressivos, aproveitando-se do crescimento econômico trazido pelo superciclo das commodities. O quadro começa a mudar a partir da GCF de 2008. A partir daí, a Argentina começa a produzir déficits fiscais em série e cada vez maiores. Note a diferença para o Brasil, que também tem problemas fiscais, mas somente a partir de 2014 e em escala muito menor. A Argentina não produz superávit primário simplesmente desde 2009, o que nos leva à conclusão de que os problemas atuais se devem não a desequilíbrios externos, mas ao desequilíbrio doméstico. Com o Banco Central argentino tendo que financiar esses gastos, não é à toa que a inflação saiu do controle.
Por que, afinal, o Brasil se diferenciou da Argentina
Até aqui, fizemos um diagnóstico da situação, mas não entramos na discussão sobre os motivos que levaram o Brasil a seguir uma trajetória diferente da Argentina. Como tudo em economia, não há respostas definitivas. Listo, a seguir, algumas hipóteses.
Câmbio controlado: o Brasil teve um período relativamente curto de câmbio controlado, menos de 4 anos, entre 1995 e 1998, ao passo que a Argentina segurou o Currency Board por mais de 10 anos, entre 1991 e 2001. Além disso, o controle brasileiro era mais flexível, permitindo desvalorizações da moeda ao longo do tempo. Assim, a economia brasileira acumulou bem menos tensões do que a argentina nesse período. E o pior: com exceção do breve período do governo Macri, o câmbio argentino nunca deixou de ser controlado pelo governo, ao contrário do câmbio brasileiro, que flutua livremente desde 1999.
Banco Central autônomo: o Banco Central brasileiro sempre contou com mais autonomia que seu homônimo argentino, mesmo antes da aprovação da sua independência formal, em 2021. O nosso Banco Central não pode financiar o governo, comprando dívida pública, em um processo que chamamos de “monetização da dívida”. Na Argentina, até hoje o BC dá uma mãozinha para o Tesouro, comprando títulos emitidos pelo governo. Além disso, o sistema de metas de inflação só funciona quando o mercado acredita que o BC é autônomo, o que não é o caso na Argentina.
Problema fiscal: como vimos no gráfico 9, o problema fiscal argentino é bem maior que o brasileiro, por incrível que pareça. Além disso, dada a opacidade dos dados do governo argentino, não duvido que esses números não sejam ainda piores, escondidos em rubricas que escapam da contabilidade oficial. Aqui, por ruim que seja, temos uma regra que limita os gastos do governo (o novo “arcabouço fiscal”). Na Argentina, não existe algo semelhante.
Note como as três hipóteses acima formam o nosso “tripé macroeconômico” (câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários), a estrutura em torno do qual se mantém a nossa estabilidade macroeconômica.
Hoje os argentinos escolhem o político que vai pegar essa batata quente. Sergio Massa e Patrícia Bullrich são mais do mesmo do que foi feito nos últimos anos pelos peronistas e por Maurício Macri. Javier Milei, por outro lado, é um salto no escuro. Sua plataforma de enxugamento da máquina do Estado vai na direção correta, ainda que seja preciso entender qual será o real apoio político que terá para tirá-la do papel. Por outro lado, a ideia de dolarizar a economia e aposentar o Banco Central vai na mesma direção do Currency Board, que tantas distorções causou na economia argentina na década de 90 e teve um fim desastroso. Faria bem o candidato, se eleito, se dedicar a fazer o feijão com arroz bem feito, o que já é difícil, e deixar as pirotecnias de lado. O Plano Real, que colocou o Brasil nos eixos, não foi um show de pirotecnia, mas antes, foi a construção de todo um arcabouço fiscal e monetário que permitiu ter alguma estabilidade macroeconômica.
Que nossos hermanos possam tirar alguma lição dessa experiência. E que nossos governantes tenham a sabedoria de preservar o que deu certo.
Nenhum governador brasileiro visitou Lula tantas vezes quanto o presidente da Argentina, Alberto Fernandez. Ontem, foi a vez de seu ministro da Economia, Sérgio Massa, na quinta visita de alto nível ao País de um dignatário argentino em 8 meses.
Dessa vez, Massa não saiu de mãos abanando. Obteve uma linha de financiamento às exportações no valor de 600 milhões de dólares, que será garantida pelo Banco do Brasil, que, por sua vez, será garantida pelo CAF – Cooperação Andina de Fomento, uma espécie de BNDES da América do Sul.
O curioso é que esse acordo só foi possível porque a Argentina concluiu a sexta revisão do seu acordo com o FMI, o que permitiu o desembolso, por parte do Fundo, de uma parcela de US$ 7,5 bilhões, dinheiro esse que serviu para quitar parcelas de dívidas com a própria CAF, além de China e Qatar. E o CAF havia emprestado o dinheiro para que a Argentina quitasse parcela da dívida que tinha com o próprio FMI. Ou seja, a Argentina está naquela fase de pagar o saldo do cheque especial de um banco entrando no cheque especial de outro banco.
As reservas da Argentina estão negativas. O que significa que, descontando o empréstimo do FMI e a linha de swap cambial com a China, o governo da Argentina está sem dólares para pagar por importações ou para servir sua dívida externa. É como se alguém fizesse o supermercado com o saldo do cheque especial.
A última renegociação com o FMI, em meados de 2022, teve condições extremamente brandas, sendo elogiada até por Joseph Stiglitz, um desenvolvimentista acima de qualquer suspeita. Pois bem. Mesmo essas condições não foram cumpridas. Nessa última revisão, a meta de chegar ao fim do ano com reservas líquidas positivas de US$ 3 bilhões foi revisada para zero. Ninguém realmente acredita que mesmo essa condição abrandada será cumprida. E o mesmo ocorre com as metas monetárias e fiscais. A verdade é que o FMI, que deveria ajudar países com problemas conjunturais de liquidez, se meteu com um empréstimo gigante em um país com problemas de solvência sem as mínimas condições políticas de resolvê-los (pausa para um merchã: no meu livro Descomplicando o Economês, explico a diferença entre problema de liquidez e de solvência). Lula, como sempre, usa o FMI como boi de piranha, mas a verdade é que nunca o FMI foi tão generoso com qualquer outro país.
Massa foi recebido por Haddad. Ambos representam um pensamento econômico que levou a Argentina aonde ela está agora. A diferença é que Haddad herdou uma economia construída por FHC e depois consertada por Temer. Se dependesse de Dilma, era só uma questão de tempo para chegarmos aonde a Argentina está hoje. Haddad sabe disso, e por isso diz uma coisa mas faz outra: o Brasil de Lula e Haddad tem uma regra de limite de gastos, manteve a meta de inflação em 3% e reajustou os preços dos combustíveis quando precisou fazê-lo. O exemplo da Argentina é suficientemente poderoso para manter os nossos desenvolvimentistas na linha, ainda que o discurso continue a ser de grêmio estudantil. Como diria Guimarães Rosa, Haddad faz o que faz não por boniteza, mas por precisão. Que seja. Melhor assim do que se deixar convencer pelo próprio discurso.
O candidato ao governo da Argentina Javier Milei prometeu dolarizar a economia argentina. O que isso significa?
Na América Latina, Equador, Panamá e El Salvador dolarizaram suas economias. Não tenho informação sobre como esses países estão se saindo, mas são economias muito menores e muito menos diversificadas do que a economia do nosso vizinho do sul. Uma dolarização da Argentina seria um experimento e tanto!
Para pensar no que significa a dolarização, comece pensando no Euro: vários países trocaram as suas moedas por uma só emitida por uma entidade supranacional. Isso significa que a taxa de juros e a taxa de câmbio da moeda “estrangeira” têm uma relação apenas distante com as condições específicas de cada país da zona do Euro. Esses dois “preços” do dinheiro (juros e câmbio) acabam sendo “atraídos” pelas maiores economias da zona (no caso, Alemanha e França), e o restante dos países que lute. No meu livro “Descomplicando o Economês”, conto o caso da Grécia, que teve que enfrentar 5 anos de um brutal ajuste, perdendo 25% do seu PIB, só para caminhar em direção às condições da média dos países da zona do Euro. Voltaremos a este ponto mais à frente.
No caso do Euro, a partir do dia D, os cidadãos puderem trocar seus marcos, francos, pesetas, liras, etc, por euros, ao câmbio vigente no dia da troca. Aqui temos uma primeira dificuldade da dolarização: qual câmbio será utilizado para trocar os pesos argentinos por dólares? A depender da taxa de conversão, a dolarização poderá se transformar em um verdadeiro confisco. Óbvio que todos quererão trocar pelo “câmbio oficial”, mas certamente o governo argentino, pela primeira vez, reconhecerá que o câmbio “blue” é aquele que reflete de maneira mais fidedigna a real situação da economia argentina. Quanto mais depreciado o câmbio, menos dólares serão necessários para fazer a troca.
E aqui temos uma segunda dificuldade: o governo precisa ter os dólares para entregar aos cidadãos em troca dos pesos. No caso do Euro, foi apenas uma troca de base monetária: o BC Europeu imprimiu tantos euros quantos necessários para fazer a troca, de acordo com as diversas taxas de câmbio. No caso de uma dolarização, o governo americano não vai imprimir dólares para o governo argentino. É este que precisa ter os dólares, pois o seu Banco Central não pode emitir dólares. Como as reservas líquidas da Argentina estão negativas, fica difícil imaginar como Milei faria essa troca. A não ser que houvesse um novo acordo com o FMI, que emprestaria os dólares necessários. E aqui entramos no terceiro problema: as condições exigidas para que ocorra uma dolarização.
Voltando ao caso da Grécia, o país precisou fazer um ajuste hercúleo para permanecer no Euro. Bem, o ajuste da Grécia parecerá um passeio no parque comparado ao ajuste exigido da Argentina. Não porque o FMI seja uma entidade do mal, mas porque o BC argentino deixará de financiar o Tesouro, e uma parte significativa das receitas do governo simplesmente desaparecerá. Assim, subsídios, salários de funcionários públicos, programas sociais, tudo isso precisará passar pela tesoura. Além disso, os dólares serão uma mercadoria escassa. O efeito será parecido com o confisco do Collor, que “enxugou” a liquidez do sistema financeiro, provocando uma brutal recessão.
Todo esse processo tem como objetivo levar a Argentina para mais próximo das condições da economia americana. É o BC americano que comandará as taxas de juros e câmbio, ficando o BC argentino somente com a função de supervisão bancária. Quando Milei diz que vai “acabar com o BC”, na verdade ele está se referindo ao efeito necessário da dolarização. Os países da zona do Euro não têm bancos centrais nacionais.
A Argentina já teve uma experiência com uma espécie de dolarização: o “currency board”, que era um compromisso do governo de trocar um peso por um dólar. No meu livro, eu explico essa experiência, as suas distorções e o seu trágico fim, o corralito. A experiência que Milei propõe é ainda mais radical, porque o peso simplesmente desapareceria.
A Argentina, para resolver o seu problema inflacionário, tem duas alternativas: ou encontra forças dentro do seu corpo político e da sociedade para fazer e perseverar nos ajustes necessários no tamanho do Estado, como o Brasil fez a partir de 1993, ou lança mão de um truque como a dolarização, que forçará um ajuste brutal. Boa sorte aos hermanos!
“Casta política, estupida e inútil”. Assim Javier Milei, o vitorioso das prévias argentinas, se referiu ao sistema político tradicional, que vem fracassando na tarefa de estabilizar a economia argentina. Seu plano econômico, além das promessas de “cortar gastos públicos”, envolve a eliminação do Banco Central e a dolarização da economia.
Milei me faz lembrar um político brasileiro que também se apresentava como anti-sistema e que tinha um plano para acabar com a inflação: Fernando Collor. Collor gastou sua única bala, como gostava de dizer, fazendo o confisco dos haveres dos brasileiros. Não funcionou, como sabemos, e o sistema político expeliu aquele objeto estranho.
Em matéria de economia, grandes arroubos voluntaristas não costumam funcionar. Desde o “tem que dar certo!” de Sarney, seguido de vários congelamento de preços, até culminar com o confisco de Collor, os planos “definitivos” esbarram na resposta dos agentes econômicos, que procuram se defender da melhor maneira possível. Enquanto a disfuncionalidade do Estado não é endereçada, todas as pirotecnias servem somente para distrair os incautos. Milei parece ser desse estilo pirotécnico, mas posso estar enganado.
Resolvemos o problema da hiperinflação no Brasil com uma reforma monetária que quase não causou impacto para os agentes econômicos, e com muito trabalho de saneamento do Estado, principalmente no nível subnacional. A LRF só foi possível depois de fechar a torneirinha dos bancos estaduais. E, claro, houve também um aumento brutal da carga tributária, pois não ocorreu propriamente uma contenção de gastos, mas apenas a sua explicitação e, portanto, a base para o seu controle. Hoje temos um nível de controle muito maior sobre as finanças públicas do que havia antes do Real, o que torna mais difícil a vida de governantes que queiram gastar.
Discursos contra “a classe política” não costumam dar muito certo. O grande mérito de FHC foi ter convencido a classe política de que o ajuste era necessário, e tê-lo implementado ao longo dos anos. Longe de ter sido um trabalho perfeito, mas foi na direção correta. Tem uma passagem do Velho Testamento que conta que o profeta Elias estava procurando a Deus, mas este não se encontrava no fogo ou no terremoto, mas na brisa suave. Em economia, é a brisa suave e perseverante que resolve os problemas, e não o fogo ou o terremoto, que destroem tudo.