Devia ter virado a página do jornal antes de ter escrito meu post anterior. Assim, escreveria um artigo só, não dois.
Na página seguinte, outra iniciativa do governo brasileiro para “retomar” o comércio entre Brasil e Argentina: garantia de crédito para exportadores brasileiros, através de um fundo chamado FGE – Fundo de Garantia de Exportações. A ideia é a mesma do BNDES: quem corre o risco de crédito argentino não é o exportador, mas o governo brasileiro, seja via BNDES, seja via FGE.
O comércio Brasil-Argentina despencou porque nossos hermanos enfrentam tremenda dificuldade de acesso a dólares. E os exportadores brasileiros, por algum estranho vício cultural, preferem receber em dólares do que em pesos. De preferência, pagamento antecipado.
Então, o governo brasileiro assume o risco Argentina, e o comércio floresce novamente. A ideia é que isso vai ajudar no desenvolvimento dos dois países, e, com mais crescimento econômico, a Argentina vai conseguir acesso aos dólares necessários para pagar os empréstimos. Como se estivesse tudo certo na economia argentina (e também na brasileira, diga-se de passagem) e só faltasse essa fagulha do comércio exterior para colocar as engrenagens do crescimento para girar.
No final, o FGE, assim como o BNDES, ficará credor dos argentinos, e receberá o pagamento em balinhas.
O BNDES (leia-se recursos do Tesouro Nacional) foi usado extensivamente durante os governos Lula II e Dilma I para financiar obras de construtoras brasileiras no exterior. O governo Temer, em sua tentativa de equilibrar novamente as contas do Tesouro, reduziu bastante o escopo do BNDES, incluindo essas obras no exterior.
Como funcionam esses financiamentos? Simples: uma empresa fecha um contrato de construção com um contratante qualquer, o BNDES paga a empresa brasileira e fica credora da contratante. Assim, o BNDES tornou-se credor de uma série de países.
Pode-se perguntar porque bancos privados não podem fazer esse papel do BNDES. A resposta é simples também: custo. Bancos privados vão cobrar taxas de juros proporcionais ao risco de crédito do contratante. Já o BNDES cobra taxas de juros camaradas. A ideia é viabilizar obras que não tenham viabilidade econômica a taxas de juros de mercado, mas, por gerarem as tais “externalidades positivas” para a economia brasileira, merecem taxas de juros subsidiadas pelo seu, pelo meu, pelo nosso dinheiro.
No caso do gasoduto argentino, o ministro Haddad enfatizou este ponto: esse tipo de financiamento é benéfico para o Brasil, porque viabilizará o transporte de gás argentino para o país. Fico imaginando se realmente não há engenharia financeira que viabilize uma atividade econômica como o transporte de gás. Provavelmente, o risco de crédito do governo argentino é tão alto, mas tão alto, que inviabiliza qualquer investimento.
O BNDES, portanto, ficará credor do governo argentino, que, provavelmente, pagará a dívida com balinhas, que dizer, com SURs, na falta de acesso a alguma moeda de verdade. O BNDES venderá esses SURs para o nosso Banco Central, e esses recursos passarão a fazer parte de nossas reservas internacionais. O governo Lula, assim, cumprira a sua promessa de trazer de volta a felicidade para o Brasil e para a América Latina. Até o dia em que tivermos que usar as nossas reservas internacionais, e descobrirmos, horrorizados, que só tem balinhas lá.
O aliado de Lula na Argentina entrou com um processo de impeachment contra os juízes da Suprema Corte. Não, não foi um discurso em um carro de som ou uma fala no cercadinho da Casa Rosada. Alberto Fernández encaminhou, para o Congresso, um pedido formal de impeachment de todos os juízes do Supremo.
Procurei, na matéria de página inteira, incluindo a reportagem e a análise, os termos “democracia”, “anti-democrático”, “separação de poderes”, “estado democrático de direito” ou “autoritário”. Saí de mãos vazias. Alberto Fernández, assim como Lula, é um verdadeiro democrata. Sua ação contra o Supremo argentino certamente é inspirada pelos mais altos ideais democráticos.
Mas, claro, estou aqui buscando falsas simetrias. Bolsonaro é muito diferente de Alberto Fernández. Um é autoritário por natureza, o outro é um democrata por natureza. As suas naturezas tornam bem diferentes atos semelhantes somente na superfície. Não é o que se faz, mas quem faz.
A favor de Lula, temos que o presidente nunca orquestrou qualquer movimento contra o Supremo, mesmo durante o processo do mensalão, que condenou vários próceres do partido. Não sabemos se por convicção ou falta de ocasião. Mas uma coisa é certa: se ocorresse, seria um movimento dentro dos cânones do Estado Democrático de Direito. Afinal, Lula é um democrata.
O governo Fernandez está aliviado. Depois da divulgação da inflação de novembro, ficou claro que o ano de 2022 vai fechar com inflação abaixo dos 100%, marca psicológica muito ruim.
É o que restou aos argentinos. Mesmo com controle de vários preços, a inflação continua subindo no país. Atingir os 3 dígitos anuais é questão de tempo. Mas, pelo menos, não será em 2022, a ponto de manchar um ano em que os argentinos brilharam nos gramados do Qatar.
Alguns podem estar se perguntando como, com essa crise, os argentinos se destacam pelo número de torcedores na Copa e pela invasão das praias de Santa Catarina. A resposta é simples: esse papel colorido que perde metade do seu valor em um ano já não é a moeda oficial da parcela mais rica do país há muito tempo. Essa parcela usa o dólar como sua moeda oficial, de modo que não sofre com a desvalorização do peso.
No Brasil, na época da hiperinflação, não chegamos a usar o dólar na extensão que os argentinos usam, porque inventamos uma moeda diferente da oficial que protegia os mais ricos da desvalorização. Era a moeda indexada à inflação, acessível somente àqueles que tinham acesso a investimentos bancários.
Tanto no Brasil quanto na Argentina, a inflação castiga a parcela mais pobre da população, que depende da moeda oficial porque não tem acesso a essas moedas alternativas. Uma inflação causada pela monetização da uma dívida pública impagável. Ou seja, o governo é obrigado a imprimir dinheiro para bancar seus gastos muito acima de suas receitas, fazendo com que a moeda se desvalorize.
A ironia cruel é que esses gastos inflacionários são feitos em nome dos mesmos pobres que são castigados pela inflação. Como diz o futuro presidente, “não se cuida dos pobres olhando política fiscal do governo”. Dessa frase, os pobres entendem a palavra “cuidar”, mas não entendem a expressão “política fiscal”. O que, a exemplo da inflação, não deixa de ser uma manipulação cruel da realidade.
Entrevista hoje com o analista político argentino Carlos Pagni. Sua leitura do papel do peronismo na debacle argentina é bem interessante. A ideia é simples: Peron usou de uma vantagem competitiva da Argentina no pós guerra para inundar o país de políticas populistas, mas teve a “sorte” de ser deposto e não pegar as consequências nefastas de um modelo não sustentável. Ficou, assim, na memória do povo, o mito de “melhor presidente da história da Argentina” e, desde então, os argentinos procuram voltar àquele passado mítico.
Getúlio Vargas não teve a mesma “sorte”, e seu governo, apesar de ser reconhecido como “defensor dos trabalhadores”, não se notabilizou por uma especial bonança econômica. Nesse sentido, o nosso Peron é Lula.
Entre 2003 e 2010, Lula foi bafejado pela sorte, com a China crescendo dois dígitos todo ano e provocando a valorização dos preços das commodities. A sensação de riqueza fez o governo Lula entrar em um frenesi de populismo que cobrou o seu preço alguns anos depois. No entanto, Lula, a exemplo de Peron, teve “sorte” ao sair do poder antes da debacle, que caiu no colo da sua sucessora. Ficou, então, o mito de um passado glorioso. É este mito que dá a Lula o seu capital de votos.
Olhando para os nossos vizinhos, espero, sinceramente, que não sejamos vítimas de um peronismo tropical, que fará o país estagnar por décadas.
A tabela abaixo foi tirada da primeira página do caderno de economia do Estadão do dia 04/01/1993. Sim, os jornais publicavam a cotação do dólar paralelo naquela época.
Sempre que via essa tabela, me perguntava porque a polícia não ia atrás de quem fornecia aquela informação para o jornal. Afinal, dólar paralelo é crime financeiro. Que um crime financeiro desfilasse diariamente nas páginas de economia, ao lado de outros indicadores respeitáveis, nos dá um pequeno sabor do que era o Brasil daqueles tempos.
Lembrei disso quando vi o gráfico abaixo, em um relatório de hoje do J P Morgan. O dólar paralelo na Argentina atingiu 150% de ágio sobre o dólar oficial, maior ágio desde o final da década de 80.
O ágio do dólar paralelo é fruto de um dólar oficial fora de lugar. O governo argentino está praticamente sem reservas internacionais, o dólar é mercadoria escassa, mas o preço oficial não reflete isso. O governo Alberto Fernandez não deixa o dólar flutuar porque adicionaria ainda mais gasolina na inflação. Seria uma mistura explosiva, que poderia rapidamente transformar uma inflação alta em uma hiperinflação.
Qual a saída para os argentinos? Equilibrar o orçamento público, de modo a conseguir estancar a monetização da dívida (o Banco Central financiando o Tesouro). Difícil? Sim. Mas como disse Anne Krueger no artigo citado em meu post anterior, adiar a resolução de um problema só serve para agravá-lo.
Difícil identificar porque a situação piorou tanto em tão pouco tempo. Mas é assim que as crises financeiras acontecem. Primeiro lentamente, depois de repente. Há uma espécie de momento-chave, em que cai a ficha dos agentes econômicos, e um processo linear torna-se exponencial.
O Brasil está longe da situação que aflige agora o nosso vizinho austral. Temos grande quantidade de reservas, há compradores para a nossa dívida pública (a um preço salgado, mas há) e um banco central com credibilidade. Mas se me perguntarem em que estrada estamos, diria que estamos na estrada que leva a Buenos Aires. Ainda distantes do destino, mas a estrada é essa. Para dar a meia-volta, os remédios são amargos, mas menos amargos do que daqui a um, dois ou cinco anos, se nada for feito.
Estamos ainda na fase em que a piora se dá lentamente. Em algum momento, se continuarmos a caminhar nessa estrada, chegaremos na fase do “de repente”. E todos se perguntarão “mas o que aconteceu???”. Nada. Teremos apenas chegado ao nosso destino.
O economista Joseph Stiglitz, prêmio Nobel de economia e um dos mais famosos defensores de teorias desenvolvimentistas no mundo, escreve artigo publicado no Valor Econômico de 14/03, comemorando o novo acordo entre a Argentina e o FMI. O economista elogia a nova postura do FMI, que estaria privilegiando o crescimento econômico ao invés da costumeira austeridade para resolver o problema da dívida argentina. Segundo o artigo de Stiglitz, a austeridade se mostrou um veneno que somente piorou a vida do paciente. Agora, a nova abordagem tem muito mais chance de sucesso por não ignorar o componente político, pois atende às necessidades dos argentinos mais pobres.
Vamos começar pelo começo. Tanto economistas do mainstream quanto os desenvolvimentistas vão concordar que não é possível viver eternamente em déficit, a não ser que se encontre um financiador benévolo que cubra as necessidades de caixa sem contrapartidas. Ou, o que é mais comum, que se imprima dinheiro (orçamento monetário) para cobrir o déficit, gerando inflação. O que difere ortodoxos de heterodoxos é como resolver o problema do déficit eterno. Os ortodoxos defendem a redução de gastos. Já os desenvolvimentistas acreditam que o déficit deve ser coberto com as receitas geradas pelo crescimento econômico. E, para fomentar o crescimento econômico, é preciso gastar mais, não menos. Vamos explorar um pouco essa ideia.
Imagine que um país tenha um déficit primário (antes do pagamento dos juros) de 3% do PIB. Este déficit, por construção, não está sendo utilizado para fomentar o crescimento econômico pois, se estivesse, em tese, estaria gerando os recursos para o fechamento desse mesmo déficit. Como o déficit se repete ano após ano, claramente não está funcionando como indutor do crescimento. Se estivesse, repito, o déficit estaria fechando. Então, das duas uma: ou este déficit de 3% deveria ser usado para fomentar o crescimento econômico, ou o déficit deveria ser aumentado para fomentar o crescimento econômico. Manter o déficit em 3% significa retirar recursos de algum lugar para direcionar ao fomento do crescimento. Mas isso significa encontrar gastos estatais que podem ser cortados, o que normalmente esbarra na preservação de “direitos adquiridos” ou em cortes de programas sociais. Como isso geralmente é politicamente inviável, resta aumentar o déficit. Digamos, então, que o déficit seja aumentado de 3% para 4%, e esse 1% adicional seja usado em programas estatais de fomento ao crescimento. Estes programas teriam um “efeito multiplicador”, que gerariam para a sociedade mais do que os 1% investidos. No caso, teriam que gerar 4 vezes mais, para pagar o 1% de déficit adicional mais os 3% de déficit originais. Haja multiplicação dos pães! Poderíamos aumentar ainda mais o déficit, o que diminuiria o efeito multiplicador necessário para que o plano desse certo. Mas aí esbarraríamos em outra questão: a eficiência do investimento estatal.
Para que o esquema todo funcionasse, seria necessário que o governo investisse o déficit em empreendimentos com um retorno excepcional. Sabemos, no entanto, que a eficiência dos investimentos feitos por governos é prejudicada por escolhas políticas que se sobrepõem às escolhas técnicas, falta de agilidade em função das amarras típicas do uso do dinheiro público e corrupção. Portanto, e é essa experiência que temos de programas como o PAC, FIES, fomento da indústria naval e de sondas petrolíferas, campeões nacionais e uma longa lista de etceteras, o que normalmente temos é um multiplicador negativo. Em outras palavras, investimentos governamentais normalmente queimam dinheiro ao invés de multiplicarem dinheiro. Uma boa parte da recessão que nos assolou no biênio 2015/16 teve como origem os investimentos desenvolvimentistas dos anos anteriores, que cobraram o seu preço. Claro, os desenvolvimentistas dirão que o culpado pela recessão foram os esforços ortodoxos feitos em 2015, eliminando gastos que cortaram o oxigênio do crescimento econômico. Mas nem Dilma Rousseff, a rainha dos desenvolvimentistas, aguentou a cobrança dos credores que batiam à porta exigindo taxas de juros maiores se algo não fosse feito. Os credores não costumam entender a lógica do multiplicador. Sigamos.
Existe um pequeno elemento que normalmente é esquecido nas propostas dos desenvolvimentistas: a inflação. Stiglitz cita a inflação “en passant”, concedendo que “pode ser um problema para o funcionamento de uma economia de mercado”.
“Pode ser um problema”, vejam só.
A inflação, como sabemos, é o imposto mais perverso que existe, pois corrói a renda das pessoas na proporção inversa de sua riqueza. Não se trata somente do bom funcionamento dos mercados, que também é o caso. Trata-se de uma questão de justiça social, defendida com tanto denodo pelos desenvolvimentistas. Déficits são inflacionários, investimentos governamentais malfeitos são inflacionários. Não é à toa que a inflação seja invariavelmente o preço cobrado pelas políticas desenvolvimentistas. Mas este é somente um detalhe, tratado “en passant” nesse tipo de proposta. A Argentina tem a quarta maior inflação do mundo, cerca de 50% ao ano, perdendo somente para Venezuela (outra campeã de políticas desenvolvimentistas), Zimbabwe e Sudão.
Voltemos ao novo acordo com o FMI. Este acordo é resultado de uma renegociação do acordo fechado pelo ex-presidente Maurício Macri em 2018, que por sua vez foi fechado para cobrir os empréstimos tomados no exterior para fazer frente ao duplo déficit fiscal e de conta corrente do país, pois o governo Macri se recusou a usar os instrumentos heterodoxos (principalmente imprimir dinheiro) para fechar a conta. Como o programa de austeridade de Macri não funcionou (os desenvolvimentistas dirão que nunca funcionam, os ortodoxos dirão que foi muito pouco, muito tarde), Macri teve que recorrer ao FMI. E, agora, estamos em meio à renegociação dessa dívida. A Argentina pretende usar o dinheiro do novo acordo para pagar o serviço da dívida com o próprio FMI e cobrir o déficit fiscal. A novidade está nas condicionalidades, muito mais leves do que no acordo anterior. Por exemplo, no campo fiscal, existem metas de diminuição do déficit primário ao longo do tempo, mas garantindo um “crescimento real das despesas” de modo a permitir o investimento em infraestrutura e ciência e tecnologia (vide carta de intenções, item 12). São várias outras “condicionalidades” que condicionam pouco. E, como cereja do bolo, a inflação está sendo controlada pela assinatura de um acordo com mais de 150 empresas para garantir aumento de preços no máximo de 2% ao mês em produtos básicos (item 21 do mesmo documento). O FMI definitivamente não é mais o mesmo.
No dizer de Alejandro Werner, ex-diretor do FMI para o hemisfério ocidental, em artigo na Americas Quaterly crítico ao acordo, o problema da Argentina é a “inconsistência entre um ambicioso Estado de Bem-Estar Social e a falta de um acordo de como financiá-lo”. Se isso não for resolvido, todo o resto é paliativo, e não há crescimento econômico que resolva. A questão é saber quanto tempo o FMI vai levar para descobrir que continua em uma barca furada. Stiglitz, em seu artigo, recomenda que o FMI tenha paciência com a Argentina e não desista ao primeiro sinal de “descarrilamento”, ou seja, de não cumprimento das metas de déficit. Afinal, segundo o prêmio Nobel, esse não cumprimento só pode ser devido a choques externos e não a dificuldades políticas domésticas, e o país não pode ser abandonado simplesmente por não ter cumprido metas que estão acima de sua capacidade. Este, afinal, é o sonho de todo desenvolvimentista: encontrar um financiador eterno, que não exige metas para continuar emprestando dinheiro ad aeternum. Ou até o efeito multiplicador funcionar.
Além do Brasil, a OCDE convidou mais 5 países para entrarem no clube privê: Argentina e Peru na América Latina, e Bulgária, Croácia e Romênia, na Europa. Estamos bem acompanhados.
A Colômbia recebeu este mesmo convite em 2018. O Chile, em 2009. E o México, em 1994.Nós poderíamos ter sido convidados na mesma época do Chile. Com a economia em crescimento e com o selo de grau de investimento, o Brasil era o queridinho do mercado global. Mas o governo do PT esnobou o “clube dos ricos”, porque nos imporia “políticas neoliberais”. Afinal, tínhamos a nossa própria fórmula para o sucesso.
Este é apenas mais um capítulo em que o PT representou um atraso de vida para o país. No caso, um atraso de mais de 10 anos. O governo Temer tratou de recuperar o tempo perdido, mostrando, em 2017, interesse no ingresso do Brasil no clube. O governo Bolsonaro reiterou o interesse, resultando no convite formal. Algo que poderia ter acontecido em 2009.
Este é um processo que demora de 2 a 5 anos para ser concluído. Se um governo do PT for eleito, o mesmo viés que nos fez perder o bonde da história no passado pode novamente nos fazer reféns do atraso. Lembrando que foi no governo do pragmático Lula que nós esnobamos a OCDE. Será que o pragmático Lula mudou de ideia?
O presidente da Argentina, Alberto Fernández, apela à “consciência” da comunidade internacional para fechar um acordo com o FMI. Seria cômico se não fosse trágico. Afinal, governos de esquerda costumam demonizar a instituição financeira multilateral, representante, segundo essa visão, dos interesses imperialistas. Mas sabe como é, na hora que falta pão, o pacto com o diabo parece barato.
Qual a dificuldade de um país como a Argentina fechar um acordo com o FMI? Apesar das histórias que se contam por aí, de que até o próprio FMI teria abandonado a tara pela austeridade fiscal, a realidade nua e crua é que, para soltar o dinheiro, o FMI exige do governo argentino um plano de… austeridade fiscal. Difícil, não é mesmo?
Lula se gaba de ter sido em seu governo que pagamos a dívida com o FMI e termos dispensado a sua ajuda de uma vez por todas. É verdade. Mas um pouco de história nos permitirá entender o que, de fato, aconteceu.
Em primeiro lugar, nos será útil entender para que serve o FMI. Não é difícil. Para tanto, basta entender que esse papel pintado que nós, brasileiros e argentinos, chamamos orgulhosamente de real e peso, nossas moedas nacionais, não passam de dinheiro de banco imobiliário para transações internacionais. Não são aceitos em lugar algum (quer dizer, o real é aceito na Argentina, o que é um indicativo do buraco em que los hermanos se meteram). Então, para pagar pela importação de produtos, é necessário ter um papel pintado aceito globalmente. Isso no oficial. No paralelo, os próprios cidadãos do país não confiam mais na própria moeda, e buscam abrigo em um dinheiro garantido por um governo sério. Então, o FMI serve para emprestar dólares, para que o país continue funcionando com alguma inserção internacional.
Agora que entendemos para que serve o FMI, vamos voltar um pouco no tempo. Mais especificamente, para a década de 90. No Brasil tivemos a eleição de FHC e, na Argentina, de Carlos Menem. Em comum, ambos foram políticos de esquerda que implementaram programas de governo “neoliberais”, incluindo privatizações e ajuste fiscal. Ambos os governos também usaram o mesmo instrumento para estabilizar a inflação: o controle do câmbio. Os argentinos, sempre mais sanguíneos, optaram por um sistema radical, o currency board, em que a paridade do austral (a então moeda argentina) com o dólar era garantida em lei pelo próprio governo. Aqui no Brasil optamos por algo mais flexível, mais de acordo com a nossa malemolência: o Banco Central mantinha uma certa paridade do real com o dólar, mas permitia uma desvalorização de cerca de 8% ao ano. Funcionava como uma espécie de currency board, mas sem regra escrita.
No início, as experiências argentina e brasileira funcionaram bem: a inflação caiu a níveis civilizados e a classe média estava contente, podendo viajar para a Disney todo ano com o dólar barato. Mas como não há artificialidade que sempre dure, distorções começaram a se acumular nas duas economias. Como ambos os governos não fizeram a lição de casa fiscal, a inflação acumulada começou a pressionar o esquema do câmbio fixo. Bastava uma fagulha para fazer explodir o barril de pólvora. Essa fagulha veio com as grandes desvalorizações cambiais dos países asiáticos em 1997 e a quebra da Rússia em 1998. Nesse dominó, Brasil e Argentina eram as próximas pedras a cair.
E é exatamente nesse ponto da história que os destinos de Brasil e Argentina se separam. No Brasil, FHC, já no início de seu segundo mandato, decide deixar o câmbio flutuar e implementa o que se convencionou chamar de “tripé macroeconômico”: câmbio flutuante, metas de inflação e superávits primários. Com isso, as distorções causadas pelo câmbio fixo desaparecem, e a inflação passa a ser combatida de maneira ortodoxa, com política fiscal (superávit primário) e política monetária (taxa de juros). Lula pega esse esquema já pronto e dá continuidade por alguns anos. Isso nos deu a oportunidade de cavalgar a ascensão da China com um câmbio competitivo, o que nos permitiu acumular as reservas cambiais que temos até hoje. Esse foi o contexto do “adeus ao FMI” de que tanto Lula se orgulha.
Já na Argentina, tanto Carlos Menem, como seu sucessor, Fernando de la Rua, insistem na continuidade do currency board, apesar das já evidentes distorções causadas pelo sistema. O resto da historia é conhecida: a saída do currency board é caótica, não menos do que a saída de De La Rua pelo teto da Casa Rosada. Dois presidentes caem em seguida, até que Nestor Kirchner é eleito em 2003. À diferença de Lula, Kirchner não tem uma “herança bendita” para administrar, o que lhe deixa livre para implementar a sua agenda “desenvolvimentista” desde o início, coisa que Lula só começará a fazer no segundo mandato e em bases muito mais sólidas, construídas em vários anos de ortodoxia. A Argentina, portanto, não teve condições de surfar a onda da China, e seus problemas em conseguir moeda forte se sucedem desde então.
Essa é a história. Alberto Fernández, legítimo sucessor de Menem, De La Rua, Kirchners e Macri, é mais um presidente argentino de joelhos diante do FMI porque se recusa a (ou não tem as condições políticas para) fazer a lição de casa ortodoxa. E antes que um sorriso superior se desenhe em sua boca, saiba que o Brasil caminha, a passos lentos mas seguros, para o mesmo destino, se continuarmos a fazer de conta que controlamos as contas públicas. A realidade sempre bate à porta. Sempre.