“Os governadores têm de se sensibilizar, têm que dar sua cota de sacrifício”.
Falou em redução de impostos, eu sou o primeiro na fila a aplaudir. O problema é quando essa redução de impostos não vem acompanhada de redução de gastos. Então, a redução de impostos se transforma em aumento de dívida.
A maior parte dos estados está quebrada. O que Lira está sugerindo é que os estados se endividem ainda mais. Tenho uma outra sugestão: que tal o governo federal subsidiar a gasolina, devolvendo para os estados uma eventual renúncia fiscal do ICMS? Ah, não tem dinheiro? Pois é…
Lira estava falando desde a sua base eleitoral, em Alagoas, estado governado pelo seu desafeto Renan Filho, do clã Calheiros. Não por outro motivo, Fernando Collor o estava acompanhando no palanque. Ao pedir “sensibilidade” aos governadores, Lira estava fazendo política paroquial com um assunto nacional de extrema importância. É desse nível de “estadista” que dependem os destinos da nação. Como dizia o Gil do Vigor, o Brasil tá lascado.
Era o dia 16/03/2016, uma quarta-feira qualquer. Final de expediente, já arrumando as coisas para ir para casa, um colega de trabalho me chama a atenção para a TV. A Globo News havia interrompido a programação para dar a bomba: o juiz Sérgio Moro havia levantado o sigilo sobre as gravações do telefone do ex-presidente Lula. Lendo a transcrição ao vivo, o repórter Marcelo Cosme tropeçava nas palavras, porque o conteúdo era uma bomba: Dilma armava para que Lula assumisse um ministério a fim de escapar da Lava-Jato. Era o famoso “termo de posse para ser usado ‘só em caso de necessidade’”, e que seria levado pelo notório “Bessias”.
Saí do escritório e, no meio do caminho, decidi me dirigir para a Paulista. Eu sabia que haveria uma manifestação espontânea lá, depois dessa divulgação. No domingo anterior a Paulista havia visto a maior manifestação popular de todos os tempos no Brasil e o ambiente político estava fervendo.
Chegando lá, já havia uma multidão, cantando “Moro, Moro” e “Lula ladrão, teu lugar é na prisão”. Bons tempos. Mas trago essas reminiscências por outro motivo.
Aquele dia me veio à lembrança quando li que a FIESP voltou atrás no tal “manifesto pela harmonia entre os poderes”. Naquela noite memorável, a fachada em neon da FIESP estampava os dizeres “impeachment já!”. Aquilo me chamou muito a atenção. As ruas já ferviam há um ano, mas somente naquele momento a FIESP assumia uma posição. Como entidade empresarial que depende de Brasília, comandada por um ser político como Paulo Skaf, aquela mensagem na fachada significava que os dias de Dilma haviam se encerrado. A FIESP, assim como o centrão, só vai na bola quando é para bater o pênalti sem goleiro.
O adiamento do tal manifesto significa que ainda tem um goleiro para defender a meta, no caso, Arthur Lira. Mas também significa que a bola está na marca do pênalti. A FIESP não patrocina esse tipo de manifesto à toa.
O ministro da Defesa, Braga Netto, soltou uma nota oficial, desmentindo reportagem de ontem do Estadão, que afirmava que o ministro havia ameaçado a realização das eleições do ano que vem se o voto auditável (impresso) não fosse adotado. A ameaça teria se dado por meio de um interlocutor, que teria “passado o recado” para o presidente da Câmara, Arthur Lira.
Antes de analisar a nota, uma pequena digressão sobre como são feitas as notícias. Não existe matéria em que o repórter acorda pela manhã e diga “acho que vou publicar isso” e invente uma história qualquer. O que pode haver é falha de apuração ou viés na forma de reportar o fato. Mas matérias jornalísticas são baseadas em algum fato. Algo aconteceu.
É neste ponto que entra a nota oficial de Braga Netto. A nota chama a atenção não pelo que fala, mas pelo que deixa de falar. O fato central da matéria do Estadão é a ameaça às eleições de 2022 caso o voto auditável (impresso) não seja adotado. Este é o fato. E, sobre este fato, nenhuma palavra. O ministro prefere rebater algo absolutamente secundário, a forma de comunicação com o presidente da Câmara. Ora, a apuração pode ter sido falha neste ponto. O recado pode não ter sido dado por meio de interlocutor, mas diretamente ou por um pombo-correio ou sinal de fumaça. Mas a ameaça, fato central da reportagem, passa ilesa na nota oficial.
Chama a atenção que a nota termine com uma defesa do voto auditável (impresso), mas não das eleições de 2022, o fato central da matéria. Se Braga Netto tinha a intenção de acalmar os ânimos com essa nota, terá que tentar novamente. A nota soou como ameaça, quase que confirmando o teor da matéria do Estadão.
Por fim, cabe destacar que Arthur Lira, até o momento, não desmentiu o teor da reportagem. Das duas uma: ou ele, por algum motivo, plantou a notícia ou, de fato, recebeu o tal recado de Braga Netto. Na primeira hipótese, bastaria uma nota do ministro da Defesa reafirmando o compromisso com as eleições de 2022. Como vimos, não foi o que aconteceu. Resta a segunda hipótese.
Há uma percepção equivocada sobre o papel do presidente da Câmara dos Deputados a respeito de seu poder como guardião da chave do processo de impeachment. É o que afirma, por exemplo, Rosângela Bittar, uma experimentada jornalista, em sua coluna de hoje. Para a colunista, todos os elementos para um processo de impeachment estão dados, mas Arthur Lira não quer matar sua “galinha dos ovos de ouro”. Portanto, como ele não quer, não acontece, apesar de todos os outros requisitos estarem dados.
Bem, até os jornalistas mais experimentados erram em suas avaliações, e este é um caso.
Claro, regimentalmente, cabe a Arthur Lira, e somente a ele, dar prosseguimento a um dos inúmeros pedidos de impeachment que chegaram à Câmara dos Deputados. Mas o presidente da Câmara (não este especificamente, qualquer um) não é um ditador, que faz o que lhe der na telha. Como político, ele sente o pulso do organismo como um todo e certamente não ficará na frente de uma onda que não tem como segurar.
Ocorre que, ao contrário do que diz a colunista, não estão dados todos os requisitos para o sucesso de um processo de impeachment neste momento. Para ilustrar, gosto sempre de mostrar o gráfico abaixo, com a popularidade líquida (avaliação ótimo/bom menos avaliação ruim/péssimo) dos presidentes ao longo do tempo. Trata-se de uma média das pesquisas de vários institutos.
Podemos observar que Bolsonaro está em seu pior momento de popularidade. Mas isto não significa, nem de longe, que está frágil o suficiente para sofrer impeachment. Observem como Collor e Dilma tinham popularidade líquida muito mais baixa, cerca de 35 pontos mais baixa do que a atual de Bolsonaro. Ou seja, a premissa da jornalista, de que há apoio popular para o impeachment, é discutível.
Mas não é só isso. Não basta que a popularidade esteja no nível das Fossas Marianas. É preciso perder o apoio do Congresso. Claro que, com a popularidade no fundo do poço, a perda do apoio no Congresso é quase que automática. Quase. Temer enfrentou popularidade até mais baixa do que a de Dilma, mas se safou de um processo de afastamento na Câmara. Claro, Temer era Temer, e Bolsonaro é Bolsonaro, de modo que, se a sua popularidade cair, dificilmente escapará de um processo. Mas só para dizer que é possível manter-se, mesmo sem popularidade, como demonstrou Temer.
Mas não é só. A economia conta, e muito. Nos dois casos de impeachmente, o PIB afundou, 4% no caso de Collor, 8% no caso de Dilma. Tivemos uma recessão de 4% no ano passado, mas a recuperação tem sido muito rápida. Além disso, ao contrário de Collor e Dilma, a recessão no governo Bolsonaro não foi causada por decisões econômicas bizarras, como o confisco da poupança ou intervenções estapafúrdias na atividade econômica. A causa foi externa e, se houve alguma iniciativa do governo, esta foi positiva, com a aprovação do auxílio emergencial. Então, esta questão da economia está distante do quadro que tivemos com Collor e Dilma, o que acaba se refletindo em sua popularidade ainda longe do fundo do poço.
Um terceiro ponto é o apoio político. Como diz a colunista, Bolsonaro ainda é uma “galinha dos ovos de ouro” conveniente. Com o atual nível de popularidade, não fica clara a vantagem de se afastar de alguém que topa jogar o jogo da divisão de poder. Bolsonaro, apesar de sua retórica de campanha e no cercadinho, tem sido um jogador racional quando se trata de montar uma base parlamentar, distribuindo nacos de poder aos seus aliados. O que tem sido revelado no Ministério da Saúde nada mais é do que reflexo deste jogo.
Então, para resumir, Arthur Lira é, de fato, o guardião das chaves do impeachment. Mas ele não é representante de si mesmo. Assim como Eduardo Cunha só colocou em andamento o processo de Dilma quando viu que havia condições políticas para avançar, da mesma forma Lira somente avançará se e quando sentir que é o momento. Antes disso, é só torcida organizada.
Seguindo o conselho de Lula e de outras raposas que desfilaram sua sabedoria política nos últimos dias, Bolsonaro se mexeu: criou um gabinete de crise, integrando legislativo e governadores.
Pena que foi tarde demais. Um movimento que teria sido um marco importante na luta contra a pandemia se fosse feito um ano atrás, hoje significa apenas que o presidente virou um “lame duck” faltando ainda 18 meses para o fim de seu governo.
Como sentar-se à mesma mesa com governadores que são tratados como conspiradores que só pensam em apeá-lo do poder? Não à toa, somente sete governadores se fizeram representar no tal gabinete. Há um ano, seria possível alguma coordenação nacional. Hoje, não mais.
Na tarde do mesmo dia da instalação do tal gabinete, o presidente da Câmara, Arthur Lira, alinhado ao presidente e um dos sustentáculos do gabinete de crise, deu o seu recado: “temos remédios fatais” para combater a pandemia. E não era à cloroquina que ele estava se referindo.
Enfim, Bolsonaro está colhendo o que plantou, no que vem se mostrando o seu maior erro político. Tal qual Chamberlain, acreditou na boa intenção do vírus e tentou negociar, com o objetivo de manter a economia funcionando. O vírus, no entanto, seguiu a sua natureza, e atropelou o país com sua blitzkrieg.
Parafraseando Churchill, entre a paralisação da economia e o vírus, Bolsonaro escolheu o vírus. E vai ter a paralisação da economia.
Eliane Catanhêde faz, ao meu ver, uma leitura rasa da eleição na Câmara. Segundo sua análise, e que traduz um sentimento comum, Arthur Lira seria eleito para “trancar” qualquer pedido de impeachment.
Rodrigo Maia está sentado sobre 61 pedidos de impeachment há vários meses. Ele não é um aliado de Bolsonaro, eleito com o propósito de “trancar” pedidos de impeachment. O que o impediu de dar curso a pelo menos um deles? As condições políticas.
A eleição de Lira, se ocorrer, será um sintoma, não causa da não tramitação de um processo de impeachment. Não é que a maioria dos deputados esteja doida para iniciar um processo de impeachment, mas o presidente da Casa a ser eleito vai segurar o processo. Lira será eleito PORQUE a maioria da Casa não quer o impeachment. Pelo menos, não por ora.
A eleição de Lira é garantia de blindagem se e quando as condições políticas estiverem dadas para um processo de impeachment? Duvido muito. O Centrão fazia parte da base de sustentação do governo Dilma, e foram os primeiros a pularem do barco quando sentiram que o vento havia virado. Não será diferente.
Quando muito, a eleição de Lira significará o fim das desculpas esfarrapadas do Planalto para a inação na agenda econômica. Vamos ver.