A grande obra constituinte

O PGR enviou parecer ao STF, contestando a privatização de 100% dos Correios via projeto de lei. Segundo Aras, somente uma mudança na Constituição, através de uma PEC, permitiria a privatização total da estatal.

Fui dar uma olhada na Constituição. Desta vez, devo concordar com o PGR.

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Em seu artigo 21, sobre as atribuições da União, inciso X, a Carta Magna diz que o “serviço postal e o correio aéreo nacional” são competências da União. Poderíamos pensar (e foi a primeira coisa que pensei): “mas não está dizendo que precisa ter uma empresa para prestar esses serviços, a União poderia conceder para a iniciativa privada, mantendo a sua competência, como aliás acontece em vários outros ramos da economia”.

Sim, poderia haver essa interpretação, se os incisos seguintes, XI e XII, não existissem. O problema é que existem, e determinam justamente isso, que atividades de telecomunicações, energia, transportes etc podem ser concedidas para a iniciativa privada. Ora, se os serviços postais e de correio aéreo não foram incluídos nos incisos XI ou XII, é que o deputado constituinte não previu a concessão como uma das possibilidades de a União exercer a sua (in)competência na prestação desses serviços.

Então, para privatizar os Correios, o governo deve ter maioria constitucional. Não é impossível, mas é muito mais difícil do que aprovar um projeto de lei. Parabéns, deputados constituintes, vocês trabalharam direitinho para manter o povo brasileiro refém de serviços ruins.

Natural, bom e antigo

“O lavajatismo há de ser superado pelo natural, bom e antigo enfrentamento à corrupção”.

Fala de Augusto Aras, PGR escolhido a dedo por Bolsonaro, em live de um grupo de advogados criminalistas que ganham a vida explorando os meandros e chicanas do “natural, bom e antigo enfrentamento à corrupção”.

“Lavajatismo” é o termo cunhado por estes mesmos advogados e seus clientes para alcunhar a “sanha persecutória” de procuradores e juízes contra a classe política. A atividade política teria se tornado sinônimo de bandidagem pela ação de procuradores e juízes, e não pela ação dos próprios políticos.

Todos são muito ciosos em louvar as conquistas da operação Lava-Jato. Procuram separar a Lava-Jato do “lavajatismo”. Aras faz coro aos que afirmam que houve abusos e desobediência a princípios fundamentais da Constituição. Imagine só você: condenações que passaram incólumes por 3, e às vezes 4 instâncias do judiciário brasileiro, teriam vício de origem. Talvez precisássemos de uma quinta instância para resolver o problema. Ah sim, já criaram, é o juiz de garantias.

A outros, incomoda o protagonismo político que alguns membros da operação alcançaram, e o uso desse protagonismo para fins judiciais. Queriam o quê? Condenar o político mais popular do Brasil e mais dezenas de políticos e empresários de primeira grandeza sem ter protagonismo político? Como? É a típica ideia que flana suave em saraus de bem-pensantes, mas que, no mundo bruto da política, não faz o mínimo sentido.

A Lava-Jato foi uma excrecência em um país onde o Estado Democrático de Direito está construído de modo a proteger quem tem poder ou dinheiro para contratar advogados criminalistas a peso de ouro. Finalmente temos ninguém menos que o PGR para acabar com essa excrecência, e voltarmos ao “natural, bom e antigo enfrentamento à corrupção”. Tão natural, bom e antigo quanto a própria corrupção.

Carga de trabalho desumana

O PGR defende férias remuneradas de dois meses para os procuradores, pois sua “carga de trabalho é desumana”. Férias essas pagas por nós, obviamente, que temos uma carga de trabalho “humana”.

Essa manifestação de Augusto Aras demonstra que aquela fala do procurador mineiro (a do salário que era uma “miséria”) não era a viagem na maionese de um sujeito desconectado da realidade. Trata-se de uma postura institucional: os procuradores de fato se acham diferentes e, portanto, merecedores de privilégios.

Óbvio que devem existir procuradores que não concordam com esse escárnio. Está mais do que na hora de se manifestarem.

O “mas” depois do apoio

Aras se junta ao time dos que “apoiam” a Lava-Jato com um “mas” depois do apoio.

Reparem que a crítica é sempre genérica. Os supostos “excessos” são sempre assim, “excessos”, nunca fatos objetivos. Se os houvesse, os tribunais superiores já teriam anulado os efeitos da operação.

A crítica mais objetiva que se consegue chegar são os “holofotes”. Já falei sobre isso por aqui. A operação tem uma necessária exposição midiática por dois motivos, um involuntário e o outro, voluntário.

A razão involuntária se deve à própria natureza dos réus. Há um óbvio interesse da mídia quando os principais políticos do País estão envolvidos no maior esquema de corrupção da história. Fico até constrangido por escrever uma obviedade dessas, mas mesmo que Dallagnol quisesse ser mais discreto, não conseguiria.

Mas Dallagnol não queria ser discreto. A razão para isso (o motivo voluntário) é que a força-tarefa tinha consciência de que não conseguiria vencer a corrupção de agentes políticos e empresários dos mais poderosos sem o apoio firme da opinião pública. Era necessário o máximo de exposição midiática para a coisa funcionar. Não fosse isso, a essa altura a Lava-Jato já estaria enterrada em uma vala comum como indigente.

Acusa-se a Lava-Jato de ter “criminalizado” a política. De fato, se há um possível reparo a fazer a Dallagnol é o seu discurso por vezes de tons messiânicos de “limpeza da política”, confundindo atividade parlamentar legítima com corrupção. Mas diante de tanta roubalheira, o distinto público não precisa do Dallagnol para chegar a essa conclusão. Quem “criminalizou” a política foram os políticos em primeiro lugar, não o procurador.

Enfim, vamos ver que tipo de controle o “cabeça branca” Aras vai impor sobre a força-tarefa.

A visão econômica do procurador

Em tese, Augusto Aras foi indicado para PGR por ser um sujeito com visão moderna da atividade econômica, não xiita, que iria destravar as obras necessárias para retomar o crescimento. Isso seria o bastante para compensar suas tendências esquerdistas e anti-lavajatistas.

Pois bem. Em abril deste ano, o futuro PGR assinou nota técnica do MPF, recomendando a franquia mínima de bagagem, uma iniciativa que fecha as portas para as companhias aéreas low-cost e, na prática, agrava a concentração de mercado neste segmento econômico. O presidente C&A para a nota técnica e vetou o artigo, no que fez muito bem.

Esta nota técnica não é de anos atrás, de modo que se poderia dizer que o futuro PGR “mudou de ideia”. Não. A nota é de abril deste ano.

Já li varias vezes por aqui que não devemos nos precipitar. Afinal, é preciso ver como Augusto Aras vai operar no dia a dia. Só será possível julga-lo pelos seus atos na PGR, não pelo seu passado. Com esse raciocínio, absolutamente qualquer um pode ocupar cargos no governo. Por exemplo, quando Mozart Ramos surgiu como nome para o ministério da educação, houve um barulho ensurdecedor nas redes. Ninguém lhe deu o benefício da dúvida, não ouvi ninguém dizendo “bem, vamos ver como ele opera”. Seu passado o condenou.

De onde concluo que o acerto ou erro na indicação de pessoas não se dá pelo currículo, mas pelo aval de Bolsonaro. Se o capitão falou, tá falado. Contestar é torcer contra o Brasil e querer a volta do PT.

“Esperar pelos atos do PGR” é uma falácia. Sempre haverá narrativas convenientes à mão para justificar seus atos, quaisquer que sejam. No limite, será sempre perseguição da mídia.

Então, ficamos assim: teremos um PGR com simpatias à esquerda, garantista e com visão paleozóica da atividade econômica. Mas, não vamos nos precipitar: as pessoas podem mudar radicalmente, mesmo aos 60 anos de idade.

Amigo do amigo

O ex-deputado Alberto Fraga, amigo pessoal de Bolsonaro, foi o padrinho de Augusto Aras na PGR.

Lembro aqui a ordem de prioridades que descrevi outro dia, e que comandam as decisões de Bolsonaro:

1) Parentes/amigos
2) Agenda de costumes
3) Agenda econômica
4) Agenda anti-corrupção

A indicação de Aras segue exatamente esta ordem.