E o Estadão, quem diria, caiu no conto da “soberania nacional”.
Li ontem a entrevista do dono da Azul (citada no editorial) criticando a MP de Temer que libera o capital estrangeiro no controle das aéreas. Fiquei com vontade de escrever, mas outros assuntos tomaram meu tempo. Com esse editorial, no entanto, percebi que a patacoada da “soberania nacional”, que pensava estar circunscrita à esquerda dinossáurica, tomou conta do bastião do liberalismo brasileiro. A coisa ficou séria.
Em primeiro lugar, um argumento “ad hominem”: o único que criticou a medida foi o dono da Azul. Americano naturalizado brasileiro, é um fundador “em série” de companhias aéreas nos EUA. Por ser brasileiro, pode deter até 100% do capital da Azul. Mas a origem do seu próprio capital certamente não é 100% “nacional”. O que, por si só, já mostra a idiotice de se tentar carimbar a origem do capital.
Essa idiotice fica clara, por exemplo, quando analisamos o caso da TAM. Ou melhor, Latam. É público e notório que a TAM é controlada pela Latam, aérea de origem chilena. Mas por um arranjo societário, o capital da TAM ainda é controlado pela família Rolim Amaro. Tudo pra inglês ver.
Por que o dono da Azul estrilou? Simples: seus competidores diretos, principalmente Avianca, mas também a Gol, poderão ter injeções importantes de capital, reforçando suas operações no Brasil e tornando mais dura a concorrência. Simples assim.
Vamos agora aos argumentos diretos. O Estadão, ecoando as objeções do dono da Azul, coloca dois argumentos contra a abertura para o capital estrangeiro: 1) a “assimetria” de condições das empresas brasileiras em relação às estrangeiras e 2) a perda da tal “soberania nacional”.
Com relação à assimetria, é justo o oposto. Ao permitir a capitalização das empresas locais, se elimina uma fonte de assimetria em relação às companhias estrangeiras. Agora, pelo menos, Gol e Avianca poderão contar com mais capital para fazer frente à competição propiciada pelo acordo de “céus abertos” com os EUA.
O dono da Azul, reverberado pelo Estadão, mistura laranjas com bananas: diz que já existe uma assimetria forte porque, por exemplo, os pilotos daqui não podem voar tanto quanto os pilotos dos EUA. Pergunto: o que tem a ver o cã com as calças? Seria como um perneta ser convidado a correr contra atletas com as duas pernas e, ainda por cima, ser proibido de usar uma prótese. As aéreas brasileiras são pernetas, e o capital estrangeiro é a prótese.
Mas a “soberania nacional” é a cereja que toma conta do bolo todo. Sério, soberania nacional? O dono da Azul apenas fala da tal “soberania”, como se fosse um conceito autoexplicativo, como por exemplo “neoliberalismo” e “fascismo”. Está no rol dessas palavras de ordem da esquerda pré-histórica, e que dispensa maiores explicações. Mas o Estadão não nos deixa na mão: o editorial nos dá um exemplo do perigo que é deixar tudo nas mãos dos alliens. Imagine você que, um dia , uma empresa dessas simplesmente decida ir embora. Como ficaremos nós, os brazucas, sem avião pra voar? Muito perigoso isso.
O Estadão deve pensar que empresa aérea é como médico cubano. Não gostou do nariz do presidente, arruma suas malas e vai embora. Assim, do dia para a noite.
Alguém precisa explicar para o editorialista do Estadão como funciona o mercado. Sem dúvida, uma empresa estrangeira pode fazer suas malas e ir embora quando quiser, se não encontrar retorno para o seu capital aqui. Isso pode acontecer, e acontece, em qualquer ramo. Como funciona? A empresa é vendida para outra, que a absorve. Os clientes continuam atendidos.
– Ah, mas o atendimento piora né?
Sim, provavelmente. Isso porque aquele nível de atendimento anterior não se pagava, não remunerava o capital adequadamente. Não existe milagre no mercado, existe “you get what you pay for”.
Talvez o Estadão prefira que uma empresa aérea vá embora porque faliu, como é o caso da Avianca, aí sim deixando na mão os seus clientes. Tudo em nome da “soberania nacional”.
Como a defesa da “soberania nacional” não faz o mínimo sentido econômico, só posso pensar que o Estadão esteja com receio de que, em caso de guerra com as “potências estrangeiras”, os governos imperialistas ordenem às companhias aéreas de seus países o imediato fim das operações em terras tupiniquins. Ok, vamos sacrificar o serviço ao consumidor em nome de uma paranoia? O governo Temer disse que não. E, mais uma vez, acertou.