O inimigo é outro

Algum tempo atrás, o câmbio era o inimigo número um dos empresários. O real estava sempre no “nível errado”, impossibilitando o desenvolvimento do país. Hoje, esse papel passou a ser exercido pelo nível da taxa Selic.

Em ambos os casos, os empresários miram em algo que está fora do alcance do governo resolver. Ou melhor, algo que o governo pode resolver, mas não na base da canetada. Os empresários deveriam estar pedindo ao governo que estabeleça as condições necessárias para termos uma taxa de juros mais baixa, principalmente no que se refere ao equilíbrio fiscal. Estamos hoje na situação em que o Banco Central tira água de um barco com um furo no casco que o governo faz questão de alargar. Os empresários deveriam estar pedindo para que o governo tape o buraco, não que o BC pare de tirar a água.

Há alguns anos, ainda no primeiro governo Lula, estava eu conversando com um amigo meu, pequeno industrial, que me disse mais ou menos o seguinte: “o Banco Central precisa baixar a taxa de juros. Um pouco mais de inflação não tem problema, desde que tenhamos um pouco mais de crescimento”. Era a época do BC do Meirelles ortodoxo, que elevou a taxa de juros até 26,5% sem que Lula desse um pio.

Esse meu amigo foi sincero. Implícito no pedido dos empresários está exatamente essa premissa (errada, já veremos) de que “um pouco mais de inflação” é tolerável. Pode notar: em nenhuma dessas manifestações de empresários aparece a palavra “inflação”. No máximo, quando aparece, é para dizer que a inflação não é “de demanda” e, por isso, a ação do BC seria inócua. O que vem a dar no mesmo, ou seja, deixa a inflação correr solta, dado que nada é capaz de contê-la.

Por que a premissa do meu amigo é errada? Simples: não há crescimento econômico sustentável sem uma inflação em níveis civilizados. – Ah, mas 4% é um nível civilizado! Sim, verdade. Mas quem disse que a inflação para em 4%? Quando chegar lá, se o barco ainda tiver um buraco no casco, o BC vai precisar tirar água do mesmo jeito. Caso contrário, a inflação não para em 4%. O trade-off entre inflação e crescimento pode ser verdadeiro no curto prazo, mas não como política permanente. E o curto prazo, como o próprio nome diz, acaba rápido, como já deveríamos saber de cor depois de décadas de políticas populistas.

O alvo de empresários como Luiza Trajano está errado. Se gastassem suas energias para pressionar o governo a fazer a sua lição de casa, tapando o buraco do barco, talvez pudéssemos ter algum resultado positivo. Mas acho que é esperar demais.

Um presente de Natal antecipado

A perspectiva do rating soberano brasileiro foi elevada de estável para positiva pela S&P. A última vez que isso aconteceu foi em 11/12/2019, quando o governo Bolsonaro estava para completar um ano. A perspectiva foi colocada novamente em “negativa” quatro meses depois, em 06/04/2020, por conta das incertezas da pandemia, e por lá ficou até hoje.

A S&P justificou essa ação com base no “pragmatismo da política econômica”, que leva a uma “maior certeza sobre a estabilidade das políticas fiscal e monetária, que podem levar a um maior crescimento econômico”. A agência reconhece que o déficit fiscal ainda está alto, mas “o crescimento do PIB aliado ao novo arcabouço fiscal pode resultar em um crescimento da dívida menor do que o esperado”. Por fim, a S&P afima que “esses desenvolvimentos reforçariam a sua visão sobre a resiliência do framework institucional brasileiro, com políticas econômicas estáveis baseadas em ‘checks and balances’ entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário”. Para efetivamente elevar o rating, a S&P coloca como condição a perseverança em políticas pragmáticas e a aprovação de reformas – como a tributária – que aumentem o PIB potencial.

Bem, o que dizer? Em primeiro lugar, esse anúncio da S&P pegou o mercado de surpresa. Só aí, já vemos que tem alguma coisa errada. As agências de rating são followers, quem antecipa tendências são os mercados. As agências chegam depois, para “carimbar” algo que já aconteceu. Note que a S&P conta com o ovo dentro da galinha, ao supor que o crescimento do PIB e o novo arcabouço fiscal “podem” gerar uma dívida menor que a esperada. Ainda não aconteceu, aliás é consenso de que será difícil com esse arcabouço frouxo, mas a S&P deu o seu “voto de confiança”.

Uma casa de análise gringa expôs a sua perplexidade, em relatório enviado a clientes, nesses termos: “Trata-se de um desenvolvimento positivo, ainda que inesperado, dado que o novo arcabouço fiscal ainda precisa ser aprovado, e o conteúdo final da reforma tributária ainda é incerto. Além disso, tem havido, em meses recentes, uma clara deterioração de políticas microeconômicas e do ambiente regulatório. Em nossa avaliação, elevar o rating e, no fim, recuperar o investment grade, requereria reformas decisivas e políticas macro, micro e regulatórias que suportassem investimentos e aumentassem a produtividade (isto é, elevassem o atual modesto crescimento potencial do PIB), e estabilizassem a dinâmica da dívida. Em nossa avaliação, com exceção da política monetária, o atual mix de políticas macro e microeconômicas e o cenário de reformas ainda estão siginificativamente distantes desse padrão”.

Mas o mais interessante desse anúncio não foi o anúncio em si, mas a reação do ministro da Fazenda. Claro, como pinto no lixo, Haddad desfilou toda a sua satisfação com esse verdadeiro presente dado pela S&P, e não poderia ser diferente.

No entanto, Haddad coroa a sua festa com um pedido que demonstra a sua total, inequívoca e irremediável ignorância sobre os processos que levam à melhora do rating soberano. O ministro da Fazenda pede que o Banco Central se junte ao esforço de recuperação do rating reduzindo as taxas de juros! Não entendeu nada!

A S&P começa dizendo que sua decisão se baseou no “pragmatismo de políticas fiscal e monetária estáveis”. Ora, a atual política monetária, que busca trazer a inflação para a meta, foi elogiada pela S&P! Claro, a agência faz menção inúmeras vezes ao crescimento do PIB, e Haddad, então, do alto de seu apedeutismo, acha que, se o BC simplesmente derrubar os juros, tudo estará resolvido. A S&P em momento algum afirmou isso. A agência citou a continuidade dos esforços fiscais e a reforma tributária como condições para o crescimento e a recuperação do grau de investimento. Como disse a casa gringa em sua análise, a política monetária é a única que está em seu lugar.

Enfim, a S&P deu um presentão para o governo do PT. Mas é preciso saber usá-lo. Há sérias dúvidas com relação a isso.

A política monetária é o coração da política econômica

Estou assistindo a um seminário patrocinado pelo Banco Central, reunindo vários banqueiros e ex-banqueiros centrais do mundo inteiro.

O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, teve a oportunidade de fazer a abertura. Veio com aquela conversinha mole, de que política monetária e política fiscal devem trabalhar em harmonia, são como que os dois braços da política econômica do governo.

Em seguida, começa o primeiro painel, com a participação, entre outros, do ex-presidente do BC argentino durante o mandato de Maurício Macri, Federico Sturzenegger. Recomendo fortemente que assistam à sua curta apresentação, entre os minutos 0:55 e 1:12 (o link está no final do post). Além de ser muito espirituoso (como, em geral, os argentinos são), Mr. Sturzenegger só trouxe verdades. Inclusive, quando falou do desastre que significou a mudança da meta de inflação, momento em que lamentou que Haddad tivesse já abandonado o evento.

Mas o ponto a que queria chamar a atenção na fala do ex-presidente do BC argentino ocorreu logo no início, em que ele refutou a imagem usada por Haddad. Na verdade, disse o ex-banqueiro central, a política fiscal são os dois braços, enquanto a política monetária é o coração do corpo. Confesso que raras vezes ouvi uma imagem tão perfeita.

Dizer que política monetária e política fiscal são os dois braços de um corpo supõe, de maneira implícita, que há um cérebro que comanda os seus movimentos. Ou seja, os braços se movem voluntariamente, obedecendo a um comando central. No caso do Brasil, este cérebro seria, obviamente, os poderes da República, presidente e congressistas.

Não, esta imagem está irremediavelmente errada. A atuação do Banco Central se aproxima à dinâmica do coração, um órgão que funciona sem que o cérebro interfira (ainda bem!). O coração bate mais forte ou mais fraco a depender da demanda do corpo: se o corpo está em repouso, o coração pode bater mais lentamente, se o corpo está acelerado (se os braços estão se movimentando muito), o coração precisa acelerar seus batimentos para prover o sangue necessário à atividade. Não é o cérebro que, voluntariamente, ordena que o coração faça uma coisa ou outra, mas antes o coração está “programado” para que, de maneira AUTONÔMA, responda aos estímulos do restante do corpo (desculpem-me os médicos se a imagem não é perfeita, só quis dizer que o coração não faz movimentos voluntários).

Assim também com o Banco Central: a política monetária somente reagirá aos estímulos do restante da política econômica, principalmente a política fiscal. Não há nada que o Banco Central possa fazer, a não ser garantir que o restante do corpo funcione bem. E o pressuposto para o bom funcionamento do corpo é uma moeda estável. Então, o BC fará o que for necessário para manter a estabilidade da moeda, respondendo de maneira proporcional aos estímulos que vêm do restante do organismo econômico. Note que o BC, a exemplo do coração, não “decide” voluntaria e discricionariamente qual será o nível da taxa de juros. O BC praticará a taxa de juros NECESSÁRIA para manter o restante do corpo econômico funcionando com uma moeda estável.

Claro que, assim como o coração, o BC tem um limite, a partir do qual já não consegue cumprir a sua missão. Quando isso acontece, a política monetária deixa de ter efeito, e a moeda se desestabiliza, desestabilizando todo o organismo econômico.

Como disse Federico Sturzenegger, às vezes é mais fácil aprender com o que deu errado. E muita coisa deu errado na Argentina. Vai lá, assiste, serão os 17 minutos mais bem empregados do seu dia hoje.

Juros: opção ou consequência?

O Banco Central afirma que a culpa pelos juros altos é do governo. O governo afirma que a culpa pelos juros altos é do Banco Central. Quem tem razão?

Mesmo quem tem conhecimento zero de macroeconomia, poderia responder a essa questão usando apenas a lógica aplicada à observação da realidade. Vejamos.

Digamos, por hipótese, que o BC pudesse colocar a taxa de juros onde quisesse, discricionariamente. Se isso fosse verdade, qual seria exatamente a limitação para praticar taxa zero de juros? Ou, como defende Lara Resende, “taxas de juros abaixo da taxa de crescimento da economia”? Os defensores do MMT são muito modestos em suas ambições. Um BC absolutamente discricionário poderia zerar as taxas de juros, se isso fosse do “interesse nacional”, como afirma o ministro da SECOM. Aliás, quando não seria?

Mas a lógica nos leva mais longe: se, afinal, a taxa zero de juros é a opção óbvia de um BC que trabalha sem restrições, para que mesmo existe um Banco Central? O dinheiro poderia ser gerido diretamente pelo Tesouro Nacional. Um BC sem restrições é, por definição, um BC que não tem razão de existir.

No entanto, sabemos que o BC trabalha sob restrições. Na verdade, uma restrição: a inflação. Inflação é um termo ausente em todo esse debate. Desafio o leitor a encontrar essa palavra nos discursos de Lula, Haddad, Galípolo, e todo o Estado Maior e menor do PT. Quando aparece, é de modo lateral, afirmando que se trata de uma “inflação de oferta”, contra a qual o BC não poderia fazer nada (a inflação seria, então, uma espécie de destino), ou para sugerir uma meta de inflação maior, o que não deixa de ser um reconhecimento inconsciente de que a inflação é, de fato, uma restrição.

Assim, afirmar que o BC poderia praticar taxas de juros menores (quanto menores?) é, na prática, afirmar que o controle da inflação não deveria ser uma restrição a ser respeitada. Mesmo aqueles que, honestamente, reconhecem que o controle da inflação deve ser uma meta do BC, mas acham que o BC deveria dar um peso maior para a atividade econômica (“um pouco mais de inflação para um um pouco mais de crescimento”), na prática estão subordinando a inflação ao objetivo de crescimento. E isso é um problema, porque, a rigor, não há limites para a ambição de crescimento. De quanto deveria ser o crescimento do PIB para que, finalmente, voltássemos a controlar a inflação? 3%? 5%? 10%? Por isso que a missão do BC conta com uma meta de inflação mas não uma meta para o crescimento.

Enfim, o arranjo institucional de um BC independente que tem como meta controlar a inflação só faz sentido se as decisões do BC forem limitadas pela inflação. E se as decisões do BC são limitadas, por definição o BC não pode colocar as taxas de juros onde deseja. Se assim fosse, o BC, a rigor, nem precisaria existir. E, se o BC responde à inflação, essa inflação deve ter sido gerada em outro lugar. Onde?

PS.: o BC pode ser obrigado a aumentar as taxas de juros em resposta a um erro de política monetária anterior, e essa é uma das acusações que se fazem aos BCs do mundo inteiro, por terem demorado a reagir aos gigantescos estímulos fiscais dados durante à pandemia. Mas note que essa crítica é justamente a oposta a que o governo do PT faz ao BC hoje, ou seja, o BC deveria ter sido ainda mais durão antes, para não deixar a inflação chegar aonde chegou. De qualquer forma, esta crítica não nega que a origem da inflação não foi a política monetária (taxa de juros), mas a política fiscal (gastos do governo).

Dá para confiar?

O ministro da Fazenda embala a ideia de “descriminalizar” o não cumprimento da meta fiscal fazendo um paralelo com a atuação do Banco Central: afinal, se o presidente do BC não é punido por não cumprir a meta de inflação de determinado ano, por que o presidente da República deveria sê-ló por não cumprir a meta fiscal?

Este paralelo está errado de duas maneiras.

Em primeiro lugar, o BC não controla a inflação. O BC controla a taxa de juros, que, espera-se, tenha efeito na atividade econômica e, por consequência, afete a inflação em um (in)certo horizonte de tempo. O governo, por sua vez, controla suas despesas, uma das variáveis-chave para o controle do resultado fiscal. A outra variável são as receitas, e é por isso que a LRF determina que o governo deve contingenciar despesas se houver frustração de receitas. Esse mecanismo, como sabemos, foi retirado do PL. Pode-se argumentar que as despesas obrigatórias não estão nas mãos do governo, restando apenas as despesas discricionárias, uma margem de manobra cada vez mais estreita. Justo. Entramos aí no segundo erro dessa comparação.

Ao contrário do BC, que busca cumprir uma meta determinada pelo CMN, o governo determina sua própria meta fiscal. Se há dificuldade para cumprir uma meta de superávit primário por conta das despesas obrigatórias, é preciso explicitar essa dificuldade na LDO, prevendo um déficit fiscal. Antes de continuar, um pouco de história.

Em 2015, o então governo Dilma causou imenso mal estar ao enviar um orçamento para o Congresso prevendo déficit fiscal para o ano seguinte. Era a primeira vez que isso acontecia desde 1998, e o reconhecimento de que a era dos superávits primários havia terminado. Na verdade, já havia terminado em 2014, mas a coisa estava disfarçada pelas “pedaladas fiscais”. O mal estar foi tão forte, que o governo enviou outro orçamento, desta vez prevendo superávit primário. A forma de cumprir esse compromisso, ainda em 2015, foi a aprovação de créditos suplementares por fora do devido processo legal, o que serviu de base, além das pedaladas, para o processo de impeachment.

Aí está o poder da LRF. O que Haddad pretende é estabelecer uma meta de faz-de-conta, não cumpri-la, e a coisa ficar por isso mesmo. Afinal, para quê passar o perrengue de ter que assumir, logo de cara, que a tal “meta de superávit primário” é fake? Põe lá a meta claramente inatingível no Powerpoint, continua gastando como se não houvesse amanhã e, no final do ano, simplesmente faz uma cartinha para o Congresso. E todo ano a mesma coisa. Afinal, o papel aceita tudo.

Afirmei que o BC tem apenas a taxa de juros para controlar a inflação. Na verdade, a taxa de juros é apenas o instrumento. O BC controla a inflação com a sua credibilidade. Os agentes econômicos trabalham com expectativas, e essas expectativas estão ancoradas na ação do BC. Se o BC tem boa reputação, todos sabem que a taxa de juros será, mais cedo ou mais tarde, colocada em um patamar que controle a inflação. Para que uma meta fiscal funcionasse “sem punição” seria necessário ter uma autoridade fiscal independente do governo, com poder de controlar o orçamento. Na falta dessa autoridade, ficamos reféns da credibilidade do próprio governo. Dá para confiar?

A resposta política do BC

Quando Lula assumiu, em 2003, o IPCA estava rodando a 12% (chegaria a 17% em meados do ano) e a Selic estava em 25%. Henrique Meirelles, então presidente do BC nomeado por Lula, não teve dúvida: elevou a Selic para 25,5% em 22/01, e novamente, na reunião de 19/02, para 26,5%, mantendo a taxa básica neste patamar até a reunião de 18/06, quando decidiu pela redução em tímidos 0,5%. Isso em um mundo em que a taxa básica nos EUA estava em suas mínimas históricas até então, 1,25%.

Faço um convite: procure alguma palavra de Lula a respeito de taxa Selic neste período. Faço outro convite: procure alguma palavra da claque petista nesse período. Os únicos que reclamavam eram os empresários da FIESP, liderados pelo então vice-presidente José de Alencar. Estes, pelo menos, guardam coerência no tempo, estão sempre reclamando da taxa de juros e do câmbio.

O contraste entre 2003 e 2023 é absolutamente acachapante. Lula deu a senha, e a claque petista vem atacando o BC tal qual matilha de cães em cima de invasor de terreno. Dado que o comportamento do BC hoje é em tudo semelhante ao comportamento do BC em 2003, há que se procurar razões para essa mudança de postura de Lula. Há duas hipóteses não excludentes: 1) Lula tem “novas ideias” a respeito de economia e 2) o presidente do BC não foi escolhido por ele, mas por sua nêmesis, Jair Bolsonaro.

A primeira hipótese contraria a imagem do “Lula pragmático” que povoou a imaginação de boa parte dos economistas e empresários preocupados com o futuro de nossa democracia. O ponto é que Lula nunca teve ideias diferentes. Na verdade, nunca teve ideia alguma sobre economia, a não ser o tosco “o consumo girando a roda do crescimento”. Para sua sorte, deu ouvidos a Antônio Palocci, o único petista do mundo com ideias razoáveis sobre economia. Hoje, o presidente conta com Fernando Haddad, que, ao contrário do que seu apelido de “o mais tucano dos petistas” faz supor, está a anos-luz de Palocci, e não tem a mínima condição ou convicção de mudar o rumo da prosa. Prova disso (mais uma) é a matéria de ontem com Guilherme Mello, secretário de política econômica de Haddad.

Mello reverbera a tese de que o BC está atuando politicamente, deixando a técnica de lado. E ele tem razão, ainda que não da forma como ele pensa. Na cabeça de Lula, e mimetizado por sua claque, está a ideia de que um presidente do BC nomeado por um inimigo político só pode estar atuando politicamente contra o seu governo (hipótese 2 acima). O ponto é que quem trouxe o BC para a arena política foi Lula e sua claque. Explico.

Muitos pensam que o principal (ou único) instrumento de que o BC dispõe para controlar a inflação é a taxa Selic. Ledo engano. Sim, a taxa de juros é o instrumento, mas o principal ingrediente dessa receita é a credibilidade do BC junto aos agentes econômicos. O conjunto da sociedade precisa acreditar que o BC irá fazer a sua lição de casa, que é manter a inflação sob controle.

Pois bem, o que acontece quando Lula e sua claque politizam o BC? O efeito dessa politização é incluir um ingrediente estranho na matriz de decisão do BC. Tecnicamente, o BC até poderia ter elementos para baixar as taxas de juros. Mas como isso não é preto no branco, e ocorreu a politização, os agentes econômicos poderiam questionar se dado movimento foi realizado por motivos técnicos ou políticos. Em outras palavras, se o BC baixou os juros por vontade ou por pressão.

O BC, para manter a sua credibilidade, precisa incluir essa politização em sua matriz de decisão. Isso significa taxas de juros mais altas por mais tempo, porque não pode restar dúvidas de que a decisão de baixar os juros foi realmente técnica. Então, Guilherme Mello tem razão, a decisão foi, também, política. Mas não no sentido que Mello, Haddad e Lula dão ao termo. Quem começou a politização foi Lula. O BC apenas reagiu para preservar a sua credibilidade, como manda o livro-texto. A manutenção da frase em que afirma que pode retomar a alta dos juros vai nessa linha. Este é o típico caso em que a pressão política provoca o efeito inverso ao pretendido.

Existem duas formas de Lula atingir seu objetivo: acabando agora com a independência formal do BC ou ir trocando os diretores até formar maioria de acordo com suas “ideias”. Em ambos os casos, a credibilidade do BC terá desaparecido e, com ela, qualquer capacidade de controlar a inflação.

A inflação é só um detalhe

Há exato um ano, escrevi um post intitulado A Argentina, o FMI e o sonho do financiador perpétuo. Naquele post, comento um artigo de autoria de Joseph Stiglitz no Valor Econômico, em que o Prêmio Nobel saúda o recém-assinado acordo entre a Argentina e o FMI como sendo um “divisor de águas”. Segundo Stiglitz, ao não estabelecer metas muito exigentes para los hermanos, o FMI estaria, finalmente, deixando espaço para o crescimento de países em dificuldades, o que, no final, permitiria cumprir o acordo com muito menos sofrimento.

Naquele artigo, Stiglitz faz uma única menção ao risco inflacionário, afirmando que “pode ser um problema” para economias de mercado. E só. Bem, há um ano, quando Stiglitz escreveu o artigo, a inflação da Argentina estava em 50% ao ano. Hoje está em 100%.

Mas quem está preocupado com a inflação, se o que realmente importa é fomentar o crescimento? E como a Argentina está se saindo nesse quesito? Segundo o último report da OCDE, de novembro do ano passado, a Argentina deve crescer 0,5% em 2023 e 1,8% em 2024. Não parece algo lá muito brilhante.

O Prêmio Nobel também afirmou que as altas taxas de juros estão “exacerbando” a inflação. O presidente da Turquia achava a mesma coisa, e reduziu as taxas de juros na marra em meados de 2019. Na época, a inflação rodava a 10% ao ano. Hoje está em 55%. Not a good experience.

Joseph Stiglitz foi o convidado de honra de um seminário patrocinado pelo BNDES de Aloísio Mercadante e pela FIESP. Não parece terem sido convidados economistas do mainstream. O objetivo era, claro, produzir manchetes como a que abre este post, de modo a aumentar a pressão sobre o BC.

Sinceramente, acho mais que o BC tinha que baixar a Selic para uns 6 ou 7%. Quem sabe Lula esteja certo, e devamos deixar de lado esses ultrapassados livros de economia? Se a inflação subir, paciência. Afinal, tenho como me proteger. E sempre haverá um inimigo externo em quem colocar a culpa.

O astrólogo da economia

André Lara Resende tem o péssimo hábito de pegar uma informação isolada para chegar às conclusões que lhe interessam. Foi assim em seu artigo passado, em que pegou o superávit primário do ano passado para afirmar, sem corar, que a situação fiscal do Brasil está ok. Claro, sem combinar com o ministro da Fazenda, que afirma que recebeu uma herança maldita.

Em artigo publicado ontem no Valor (íntegra no final do post), Lara Resende repete a estratégia. Para afirmar que é o BC que determina a curva de juros, usa um gráfico de um relatório publicado pelo Tesouro Nacional, que mostra o custo de emissão de dívida do Tesouro comparado com a taxa Selic (usaremos este mesmo relatório para desmentir o economista). Quando a taxa Selic cai, o custo de emissão da dívida cai. Quando a Selic sobe, o custo de emissão da dívida sobe. Portanto, é o BC que determina o nível geral das taxas de juros no Brasil, e não somente a taxa Selic. Para chegar a essa conclusão (que, aliás, valeria para qualquer BC do mundo), Lara Resende não lança mão de qualquer instrumento econométrico, como um teste de causalidade de Granger. Segundo o economista, dá para ver a causalidade “a olho nu”. Lara Resende despreza instrumentos matemáticos no trato da ciência econômica, como faz questão de deixar claro em seu texto.

Mas vamos deixar de lado as picuinhas, e vamos nos concentrar no conceito. Como tudo em economia, nada é preto no branco. Banco Central e mercado estão em uma eterna dança, em que um influencia o outro. A curva de juros é fruto das forças de mercado. Mas é claro que os agentes olham para o Banco Central para tomarem as suas decisões sobre as taxas de juros futuras. Como trabalham com distribuições de probabilidades e não com certezas, os agentes ponderam os movimentos do BC (presentes e futuros) com possíveis cenários econômicos derivados desses movimentos do BC. Assim, formam suas convicções e definem as taxas de juros de prazos mais longos. Lara Resende, ao afirmar que os ortodoxos afirmam que a curva de juros não é influenciada pelo BC, está criando um espantalho para desmenti-lo. A tática é velha.

Aliás, o custo da dívida nem é o melhor instrumento para chegar à conclusão que Lara Resende chegou. Como a nossa dívida é formada por uma parcela relevante de títulos atrelados à Selic (cerca de 40% – tabela 2.3 do relatório), é claro que, quando a Selic cai, o custo de emissão da dívida também cai. Além disso, a parcela prefixada tem, em geral, vencimentos curtos (tabela 3.4). E, quanto mais curto for um título prefixado, mais próxima estará a sua taxa da provável trajetória da taxa Selic no curto prazo. Se a taxa Selic estiver caindo, a taxa prefixada de curto prazo será menor, e vice-versa.

Lara Resende se aproveita dessa característica para mostrar meia-verdade. No gráfico 4.3 logo em seguida ao gráfico usado pelo economista, temos a evolução das taxas das NTN-Fs, que são os títulos prefixados mais longos. Podemos observar que sua evolução segue bem menos a taxa Selic do que o custo total da dívida, que tem influência das LFTs e das LTNs (prefixados mais curtos).

Mas o ponto fundamental da discussão é por que Lara Resende fez questão de estressar este ponto. Ora, simples: a sugestão é de que o BC pode, com tranquilidade, reduzir as taxas de juros quanto queira, porque a curva de juros acompanhará a queda, tornando o carregamento da dívida muito mais barato. Para que isso seja crível, no entanto, o economista precisa desvincular o nível de taxa de juros do controle da inflação. E é isso que faz nesse artigo, ao afirmar que não há evidências de que o nível de juros controla a inflação, desmontando, em poucas linhas, todo o arcabouço monetário construído nas últimas três décadas, e que é usado pelos principais bancos centrais do mundo. Claro que Lara Resende não sugere nada para o lugar do sistema de metas de inflação. A inflação seria controlada de algum modo misterioso, que o economista não divide com seus leitores.

Com o BC controlando direta ou indiretamente toda a curva de juros da economia, e com a inflação sendo controlada pelo divino Espírito Santo, nada impediria o BC de reduzir a taxa básica de juros quanto quisesse, diminuindo em muito as despesas com juros, e fomentando o crescimento econômico. Resta saber por que o BC do Alexandre Tombini, que tentou um movimento de redução artificial dos juros durante o governo Dilma, não perseverou no seu intento, voltando a elevar a taxa Selic até 14,25% (!)

É claro que a taxa Selic está muito alta, e isso causa não poucos problemas à economia. A discussão é como o BC pode baixar essa taxa de juros sem perder o controle da inflação. Este é um debate legítimo, em que vários economistas têm visões diversas. No entanto, Lara Resende, por tudo o que já escreveu, não é um debatedor legítimo nessa discussão. Ao afirmar que o BC pode, sem custos, determinar a taxa de juros no patamar que quiser, se desqualifica para o debate. Quando se discute astronomia, não há lugar para astrólogos.


A inflação do chuchu

Haddad afirma que os juros estão em um nível “fora de propósito”.

Lara Resende diz que os juros estão “errados”.

Como nenhum dos dois se dispôs a dizer quais seriam os juros “certos” ou “razoáveis”, nem compartilharam o seu modelo de determinação dos juros, a coisa soa mais a achismo. E achismo por achismo, também tenho meu palpite.

Também acho que os juros estão errados. A julgar pelos resultados dos últimos dois anos e pelo que se encaminha nesse ano de 2023, os juros deveriam ser ainda mais altos. Se o BC se encaminha para o terceiro ano de não cumprimento de meta, é porque praticou juros abaixo do que deveria. No sistema de metas de inflação, é a inflação que determina se os juros estão “certos” ou “errados”. O resto é só achismo de botequim.

Há uma concordância implícita com essa premissa quando se discute a meta de inflação. Mexer na meta só faz sentido se se acredita que o nível das taxas de juros é função da meta. Ou, mais tecnicamente, do desvio da inflação em relação à meta. Sintomaticamente, Lara Resende pouco menciona a meta em suas entrevistas e artigos. Prefere fazer uma espécie de “taxonomia da inflação”: tratar-se-ia de “inflação de oferta”, não “de demanda” e, portanto, infensa à taxa de juros. Assim, segundo o economista, o BC deveria, neste caso, assistir ao processo inflacionário passivamente, pois não haveria nada a fazer. Nos lembra os bons tempos de Mário Henrique Simonsen e sua “inflação do chuchu”, época em que o governo combatia a inflação “de oferta” na base de controle de preços da Sunab.

Voltando à racionalidade do sistema de metas (sistema este, bom lembrar, que manteve a inflação baixa em boa parte dos últimos mais de 20 anos), um aumento da meta poderia até levar a um alívio da política monetária, mas só na primeira rodada do jogo. O diabo é que trata-se de um jogo com infinitas rodadas. Já na segunda, voltaríamos exatamente ao mesmo problema, só que com uma inflação mais alta. Explicando: o que determina a taxa de juros real neutra da economia é a própria economia, não o Banco Central. Assim, se a inflação está acima da meta (qualquer que ela seja), o BC precisa praticar taxas de juros reais acima da taxa neutra – assim funciona o sistema de metas. Com a meta mudada para cima, a taxa de juros nominal também precisa subir. Se, em um primeiro momento, o aumento da meta faz com que as expectativas fiquem abaixo da nova meta, em um segundo momento todas as expectativas migram para a nova meta, e as velhas mazelas brasileiras voltam a empurrar as expectativas para cima da meta. Voltamos ao ponto inicial do jogo, mas com uma inflação mais alta.

O raciocínio acima é complexo, e é difícil de explicar em uma mesa de bar. Mais fácil colocar a culpa da inflação no chuchu da vez.

O futuro presidente do BC se apresenta

Quando achávamos que André Lara Resende já tinha esgotado o seu arsenal de asneiras, eis que somos surpreendidos pela sua aparentemente inesgotável criatividade. Em artigo de ontem no Valor Econômica, o economista nos brinda com mais “verdades” e “fatos” para contrapor o consenso (só faltou dizer “de Washington”).

Lara Resende começa dizendo (e esse é um dos dois únicos “fatos” usados pelo economista para sustentar sua argumentação) que o governo brasileiro produziu superávit no ano passado. Ora, onde estaria o problema fiscal em vista desse resultado? Aliás, Lara Resende precisa combinar o discurso com o ministro da Fazenda, que insiste em dizer que herdou uma situação fiscal desastrosa do governo Bolsonaro. O articulista afirma que os arautos do apocalipse dão as costas a esse fato para continuarem sua missão de propagar o pânico, com o objetivo escuso de manter os juros altos. Claro que explicar para Lara Resende a diferença entre foto e filme é perda de tempo.

O segundo “fato” mencionado por Lara Resende é simplesmente falso: o tamanho da nossa dívida estaria em linha com a de outros países emergentes semelhantes. Fake, nossa dívida é muito maior. Não vou gastar muito tempo aqui, pois esse é fato sabido e comprovado.

Voltando à questão do alarmismo do mercado, o economista volta ao mesmo ponto de outros artigos: seria contraditório o mercado apontar o risco fiscal da PEC da gastança, quando o aumento dos juros produz gastos muito maiores. Segundo esse raciocínio, se estivesse mesmo preocupado com o risco fiscal, o mercado deveria clamar por redução dos juros. Bem, esse tipo de raciocínio pressupõe que já estejamos em “dominância fiscal”, um estado da economia em que a política monetária (taxa de juros) se submete à política fiscal (gastos com juros). O problema é que, quando se chega nesse estágio, o doente já está em fase terminal, e os médicos se dedicam somente a cuidados paliativos, como, por exemplo, congelamento de preços e controle de capitais. A Argentina é um bom exemplo desse estado da economia.

Ainda segundo o economista, haveria dois tipos de “investidores”: aqueles que investem em capital físico e intelectual (que seriam os investidores de verdade) e os chamados “rentistas”, que investem em títulos públicos ”sem risco”. Essa expressão, ”sem risco” é, obviamente, falsa. Existe o risco, que vou chamar aqui de risco “Lara Resende”, de um doidivanas como ele assumir o BC e colocar em prática as suas teses. Se isso vier a acontecer, a inflação vai comer todo o rendimento dos títulos públicos e mais um pouco. Chegará um momento em que ninguém mais vai querer carregar esses títulos “sem risco”, preferindo títulos denominados em moedas de verdade. Novamente, vide a Argentina.

Mas é na descrição do mercado de títulos públicos que André Lara Resende se supera, e atinge o próximo nível do perfeito idiota latino-americano. Segundo o economista, se o governo se tornasse superavitário e a dívida pública desaparecesse, a economia entraria em profunda depressão!!! Afinal, onde os rentistas aplicariam a sua poupança? Nesse sentido, a dívida pública seria um “bem público”, assim como o são escolas e hospitais, por exemplo. A conversa é tão de loucos que fica até difícil argumentar. É óbvio que, se a dívida pública desaparecesse via calote, a economia entraria em depressão. Mas, se o governo efetivamente pagasse a sua dívida, esse dinheiro seria liberado para atividades muito mais produtivas. A taxa de juros seria muito mais baixa e o potencial de crescimento da economia seria muito maior. Isso é tão óbvio que tenho até certa vergonha de explicar.

Por fim, Lara Resende afirma que o BC determina sim a taxa básica de juros, e poderia colocá-la onde quisesse. Até cita o BC japonês, que “determina” toda a curva de juros, não só a taxa básica, para demonstrar todo o poder que um BC possui. É aqui que identificamos o erro fundamental do economista: o BC (e o mercado) não estão preocupados com o “risco fiscal” per si. O risco fiscal só entra na equação porque pode determinar a inflação no futuro. Aliás, inflação que é a grande ausente do artigo de André Lara Resende. O BC determina a taxa de juros para controlar a inflação, e a expansão fiscal só torna esse trabalho mais difícil. Ao contrário do que diz Lara Resende, o BC não pode colocar a taxa de juros onde quiser. Quer dizer, poder pode. Mas as consequências vêm depois.

Com esse artigo, André Lara Resende se credencia como futuro banqueiro central do Brasil, talvez mais cedo do que mais tarde. Suas ideias devem soar como música aos ouvidos de Lula e Haddad. Lara Resende terá, então, a oportunidade de colocar em prática toda a sua sabedoria baseada em “fatos”. E se der errado, sempre haverá um bode expiatório à mão, nem que seja uma distante “herança maldita”. Nisso o PT é craque.