A poderosa indústria

Um grupo de médicos escreve artigo hoje condenando a nova onda do momento entre os jovens: o cigarro eletrônico. Segundo eles, a indústria tabagista, não contente em já ter matado milhões de pessoas no passado, agora volta a atacar com outro vício envolto em glamour e amparado por lobbies poderosos junto aos legisladores.

Dentre os autores do artigo, chamou-me a atenção o nome de Drauzio Varella. Não me era estranho. Dei um google, associando o nome à maconha, e não foi difícil encontrar o que eu lembrava vagamente: o mesmo médico que condena o cigarro eletrônico é um ardoroso defensor da cannabis para fins recreativos. Por exemplo, em uma participação no podcast Podpah há menos de dois anos, Varella afirma que maconha não mata, e omite seus danos à saúde na vida adulta, condenando o seu uso somente por crianças.

Para quem quer ver incoerência no posicionamento do médico, peço que experimente trocar a chave de interpretação dos fatos. O artigo publicado hoje não condena propriamente o vício, mas a PODEROSA INDÚSTRIA por traz do vício. Existe um pequeno grupo de indivíduos maus, aqueles que lucram com a indústria tabagista, que estimulam a garotada a fumar, levando muitos à morte. O artigo é todo sobre a indústria e seu poderoso lobby.

É um pouco também como ocorre com a peroração sobre as mudanças climáticas: só não avançamos porque há uma PODEROSA INDÚSTRIA petrolífera que busca defender os seus lucros a todo custo. Pouco importa a demanda por cigarros ou por combustíveis fósseis, são as indústrias e seus acionistas os culpados pelo vício.

O caso da maconha é diferente. Não há uma PODEROSA INDÚSTRIA por traz, com ações na bolsa detidas por capitalistas inescrupulosos. Nada disso. A maconha é artesanal, você pode, inclusive, plantar na sua sacada. Junte-se a isso o glamour de ser algo proibido e voi lá! Temos a combinação perfeita da transgressão chique.

Varella e seus colegas propõem a proibição pura e simples da comercialização do cigarro eletrônico, com o aumento da fiscalização, como se a demanda simplesmente desaparecesse por um passe de mágica. A proibição somente acrescentaria ao vício o glamour da transgressão, como ocorre hoje com a maconha.

Quando a maconha for amplamente legalizada (e isso acontecerá mais cedo ou mais tarde), uma PODEROSA INDÚSTRIA se formará para explorar mais esse ramo econômico. Alguns anos depois, estudos demonstrarão que a maconha faz muito mal à saúde e até mata, e artigos serão escritos pelos sucedâneos de Varella para condenar a PODEROSA INDÚSTRIA em sua ânsia de lucrar com a desgraça alheia. Não se trata do que, mas de quem.

Risco sistêmico e intervenção governamental: o capitalismo em cheque

Em toda crise bancária, é o mesmo lenga-lenga: quando a coisa pega, o sistema financeiro não sobrevive sem o socorro do governo. Neste momento, todo liberal-selvagem precisa ajoelhar no milho keynesiano, e admitir que, no final do dia, o capitalismo não sobrevive sem uma mãozinha do governo.

Mas será isso mesmo?

Para entender por quê essa imagem é falsa, precisamos entender o que é um banco.

Esqueça o banco que vende fundos de investimento e seguros. Isso aí qualquer um pode fazer. Vamos nos concentrar na essência da atividade bancária, que consiste em tomar dinheiro de um lado e emprestar do outro.

Antes de avançar, vamos distinguir o banco do mercado de capitais. No mercado de capitais, não existe a intermediação dos bancos. Quando você compra um título público, uma debênture, um CRI (Certificado de Recebíveis Imobiliários) ou um Fiagro (Fundo de Investimento no Agronegócio), você está emprestando dinheiro diretamente para uma empresa, conforme a figura 1. O banco pode até atuar como um intermediário, mas ele recebe uma comissão pelo serviço, nada mais. O seu risco é a empresa não conseguir pagar esse empréstimo. No mercado de capitais, a relação é direta entre o investidor e o tomador de empréstimo. Essa relação é representada por um título de dívida.

No sistema bancário, por outro lado, os bancos são os responsáveis por tomar os empréstimos e emprestarem para as empresas e para os indivíduos. É o que podemos observar na figura 2: você investe no banco, comprando CDBs, Letras Financeiras, Caderneta de Poupança, ou simplesmente deposita seu dinheiro na conta corrente. O banco, por sua vez, pega esse dinheiro e empresta para as empresas, assinando um contrato de empréstimo.

Qual a diferença do primeiro para o segundo esquema? Simples: no primeiro, o seu risco de crédito (de não receber seu dinheiro de volta) é o governo ou a empresa. No segundo, o seu risco de crédito é o banco. Pouco importa o que o banco vai fazer com o seu dinheiro, desde que ele seja devolvido quando devido. Vamos, então, examinar mais de perto como o banco funciona. Para tanto, veja a figura 3.

O banco recebe um capital inicial (no exemplo, são R$ 8. Com esse capital, o banco tem a permissão de tomar emprestado e emprestar R$ 100, segundo a regulação brasileira (isso é uma simplificação grosseira, só para entender o processo). Esse índice de 8% é o chamado Índice de Basiléia. Trata-se de uma regra prudencial, para limitar a alavancagem dos bancos. Porque, em tese, não haveria limite para o montante que os bancos poderiam tomar emprestado e emprestar. Só que, quanto maior for o montante, maior o risco. O capital mínimo serve justamente para cobrir o risco de inadimplência.

Imagine, por exemplo, que dos R$ 100 que o banco emprestou, receba de volta somente R$ 95. Os R$ 8 do capital seriam suficientes para cobrir esse prejuízo de R$ 5. Os acionistas precisariam capitalizar o banco em R$ 5 para retomar o capital mínimo prudencial, mas o pagamento dos credores (o pessoal que depositou dinheiro no banco) não dependeria dessa capitalização.

Agora, vamos ao exemplo concreto do Silicon Valley Bank, que quebrou nessa semana. Veja a figura 4 (os números são fictícios, somente para entender a natureza do problema).

O SVB recebeu depósitos dos seus clientes (na maioria, start ups de tecnologia) no valor de $ 100. Com esse dinheiro, comprou títulos, também no valo de $ 100. Até aí, tudo certo. No entanto, como sabemos, as taxas de juros subiram de quase zero para quase 5% no último ano. Quando isso acontece, esses títulos (todos com taxas prefixadas), se desvalorizam. No exemplo, se desvalorizaram 30%, o que não deve estar muito distante da realidade. Assim, ocorreu um descasamento entre ativos (os títulos que o banco comprou) e passivos (os credores do banco). Quando o banco anunciou que estava chamando uma nova capitalização (os $ 8 não seriam suficientes para cobrir o rombo), uma onda de desconfiança tomou conta dos depositantes (a maioria não coberta pelo FDIC, o FGC deles), o que causou uma corrida de saques, inclusive facilitados pela própria tecnologia embarcada nos celulares. Obviamente, não haveria dinheiro para todos, por causa do descasamento (havia $ 100 depositados, mas somente $ 70 em ativos), o que fez o Fed decretar o fechamento do banco, cobrir todos os depósitos com o seguro do FDIC e estender uma linha de crédito emergencial para todos os bancos que enfrentassem a mesma dificuldade.

É neste último ponto que se apegam os que acusam o capitalismo de funcionar apenas até a página 2. Quando o bicho pega, todo mundo corre para o colo do governo.

Ocorre que bancos não são um negócio como outro qualquer. Quando a Americanas apresentou um rombo de bilhões (ninguém sabe ainda o real tamanho, pois a empresa ainda não publicou balanço), o governo não saiu correndo para socorrer a empresa. O lugar da empresa de varejo que se vai é ocupado pelos seus concorrentes, e vida que segue. Os fornecedores terão perdas, os funcionários perderão seus empregos, mas é questão de tempo para que fornecedores e funcionários encontrem lugar na concorrência. E, mesmo que não encontrem, isso não coloca a economia como um todo em risco.

Banco, por outro lado, é um negócio diferente. Vejamos a figura 5.

Podemos observar que há uma espécie de teia ligando bancos, tomadores de empréstimos e depositantes. Um desses nós que porventura falhe pode causar um efeito dominó, em que outros pontos do sistema falham porque o nó anterior também falhou. Além disso, o sistema todo funciona na base da confiança: mesmo que não haja realmente um problema, se a desconfiança cresce, pode ocorrer uma corrida de saques que tem o potencial de desestabilizar todo o sistema. Foi basicamente o que ocorreu com o SVB. O Fed entrou para tranquilizar os depositantes, ao garantir que outros bancos do sistema não iriam seguir pelo mesmo caminho.

O sistema financeiro funciona como a corrente sanguínea no corpo humano. Qualquer interrupção em uma artéria importante pode levar a consequências sistêmicas, que podem terminar na morte de toda a economia. O crédito, que é o encontro entre tomadores e doadores de dinheiro, é a base de todo o sistema econômico capitalista. E esse sistema está baseado em uma teia sensível, alavancada, que só funciona na base da confiança.

Por isso, é necessário que, quando algum ponto desse sistema se mostre instável, a autoridade monetária do país intervenha, sob pena de retrocedermos séculos, para uma economia sem crédito. E porque precisa ser a autoridade monetária (governo) a intervir? Por que o sistema não consegue atingir estabilidade por si próprio? Simples: a emissão do dinheiro de um país é monopólio do governo. Portanto, é o governo que, em última instância, precisa garantir a confiabilidade do sistema monetário. Nenhum agente privado possui este poder. A moeda fiduciária é baseada na confiança dos agentes no governo. E este precisa agir quando o sistema se torna instável por qualquer motivo.

Isso não significa, obviamente, que, então, o governo deveria intervir em toda e qualquer âmbito da atividade econômica. Pelo contrário. A iniciativa privada, via de regra, produz melhor bens e serviços. E no caso dos bancos, empresta dinheiro melhor também. Mas, quando se trata de proteger o sistema financeiro e, em última instância, a economia, o governo é insubstituível por sua própria natureza de emissor e garantidor último da moeda. Daí a extrapolar para o conjunto da atividade econômica, vai uma distância estelar.

A Lei de Newton aplicada à economia

Esse caso do novo limite de juros para o crédito consignado é um dos raros exemplos, raríssimos mesmo, em que uma ação governamental tem efeito imediato sobre as decisões dos agentes econômicos. No caso, a relação de causa e efeito foi óbvia e à vista de todos: a oferta cessou imediatamente após o estabelecimento do preço em patamar artificial.

Nem sempre é assim. Aliás, quase nunca é assim. Decisões governamentais no âmbito econômico costumam levar meses, ou mesmo anos, para mostrar todas as suas consequências. Isso acontece porque a economia segue a lei de Newton (a toda ação segue uma reação de igual força na direção contrária), mas com defasagens temporais. Os agentes econômicos não são bolinhas rígidas em uma mesa de bilhar. Antes, são seres humanos que tomam decisões em ambientes de incerteza e com informação incompleta. Alguns são mais rápidos, outros são mais lentos, outros ainda simplesmente tomam a decisão errada. Mas isso não impede que, ao fim e ao cabo, as decisões governamentais tenham o seu efeito (benéfico ou deletério) sobre o ambiente macroeconômico.

Essa defasagem entre ação e reação dá margem às narrativas. Como não é óbvia a ligação entre uma decisão e seus efeitos, cada um conta a história que quer. Por exemplo, a grande recessão de 2015-2016 teria sido fruto da Lava-Jato e da queda dos preços das commodities. Nada a ver com as seguidas intervenções do governo Dilma no funcionamento dos mercados e com a verdadeira usina de cremação de dinheiro representada pelos empréstimos do BNDES e pelos projetos da Petrobras.

Como distinguir entre narrativa e a verdadeira lei de Newton? Pelos resultados de longo prazo. É famosa a foto tirada do espaço, mostrando o contraste entre Coreia do Norte e Coreia do Sul à noite. É a demonstração visual da superioridade do capitalismo sobre o comunismo como gerador de riqueza. Claro, hoje ninguém (a não ser alguns lunáticos) defende o comunismo da forma como a Coreia do Norte o adota. E, complemento, ninguém (a não ser alguns lunáticos) defende uma total ausência do governo no sistema econômico. O debate se dá a respeito do nível de intervenção que o governo deveria adotar no sistema capitalista, e de que modo essa intervenção deveria ocorrer.

A resposta é observar como os países capitalistas mais bem sucedidos alcançaram seu sucesso no longo prazo. Uma organização como a OCDE, por exemplo, reúne esse tipo de experiência, colocada à disposição para aqueles países dispostos politicamente a seguir por esse caminho. Lula e o PT desdenham esse tipo de experiência, justamente porque a OCDE propõe uma governança que limitaria a ação do governo. Preferem seguir o roteiro que já não vem funcionando há décadas, aproveitando-se das defasagens temporais entre causa e efeito para achar bodes expiatórios quando a coisa, novamente, não funciona.

A redução dos juros do consignado não foi só uma “trapalhada”. Foi um modus operandi. A natureza do governo do PT foi fielmente representada por essa decisão. A “trapalhada” foi somente escolher uma ação que teve uma reação imediata, não dando tempo para se criar uma narrativa (ainda que alguns balbuciaram algo como “ganância dos bancos”). Lula exigirá, das próximas vezes, mais cuidado em não deixar tão evidente as consequências nefastas das decisões de seu governo.

Grandes luxos, pequenos luxos

Muitos anos atrás, quando eu ainda era um jovenzinho em início de carreira, lembro de um diretor da empresa onde eu trabalhava comentando sobre o absurdo que era, no Brasil, pessoas andarem de Ferrari. Aquilo seria um acinte diante da pobreza da maioria dos brasileiros.

O que me chamava a atenção era que o próprio diretor dirigia um Toyota Camry novinho, carro equivalente a alguns anos do meu salário. Para ele, no entanto, o carro que ele dirigia era “normal”, o exagero seria a Ferrari.

Todos temos um estilo de vida mais ou menos compatível com a nossa renda. O jornalista André Trigueiro, por exemplo, quase certamente dirige um carro e mora em um apartamento compatíveis com a sua renda, que deve ser muito, mas muito superior ao que os brasileiros mais pobres poderão um dia sonhar em ter.

Mas isso não impede que o jornalista, assim como muitos outros burgueses com consciência social, condenem a “Ferrari” do momento: o churrasco “folheado a ouro” que os jogadores degustaram no Qatar. Seria uma ofensa, diante de tantos brasileiros que passam fome.

Se perguntados, esses críticos certamente diriam que, se eles próprios tivessem condições financeiras de comer o tal bife dourado, não o fariam, em respeito aos mais pobres. Não percebem que eles mesmos têm condições de fazer isso, aqui e agora. O seu estilo de vida está vários degraus acima do da maioria dos brasileiros, de modo que é fácil descer a escada e abrir mão daquilo que, para a os brasileiros mais pobres, não passa de luxos inalcançáveis. Sim, eu sei que não é fácil. Nos acostumamos com um certo padrão de vida, e achamos tudo muito necessário. O andar de cima é que tem luxos, nós não.

Condenar o “churrasco de ouro” serve para massagear a consciência social de uma classe média que se incomoda com o fato de ser classe média e que não consegue abrir mão de seus pequenos luxos. Os pobres mesmos, esses em nome dos quais a classe média bem-pensante aponta o dedo, provavelmente não estão nem aí para o que os jogadores estão comendo no Qatar. Aliás, é possível, até, que achem muito justo que profissionais que ganharam a sua fortuna honestamente tenham sim esses luxos. Afinal, fariam exatamente o mesmo se pudessem.

O consumidor quer só consumir

Reportagem sobre a cada vez mais onipresente Shein, que já ultrapassou a Amazon em número de downloads nos EUA. A matéria começa com a descrição de um verdadeiro “assalto” a uma loja da Shein no Texas, que me lembrou a liquidação anual da Magazine Luiza (ainda existe isso?)

Mas, claro, grande parte da matéria se dedica às “polêmicas” que cercam a loja chinesa: “remuneração justa”, “preservação do meio-ambiente”, “incentivo ao consumismo que degrada o planeta”.

No entanto, apesar de tudo isso, a Shein é um fenômeno. E é um fenômeno justamente junto àquela geração que, nos convenceram, está mais preocupada com o meio-ambiente, a geração Greta, aquela que vai mudar o mundo.

Esta aparente contradição, no entanto, pode ser facilmente explicada. O ponto é que a clivagem a respeito da pauta ambiental não é de idade, mas de renda. Somente as classes A e B, que já têm as suas necessidades de consumo mais ou menos resolvidas e podem gastar um pouco mais em “consumo consciente”, podem se dar ao luxo de se preocuparem com o meio-ambiente. Da classe C para baixo, que se preocupa em sobreviver, consumo consciente significa gastar o mínimo possível para morar, comer e se vestir. Qualquer que seja a idade. Para esse público, empresas como a Shein são uma benção.

Claro que os executivos da Shein são espertos. Ao longo da reportagem, são citados comunicados da empresa que fazem chegar ao grande público a preocupação da Shein com eventuais “desvios de conduta”. Como se fosse possível vender os produtos que vende pelo preço que vende sem atuar na fronteira do aceitável, ambiental e socialmente falando. Mas colocar-se como uma empresa “preocupada” não custa nada, a não ser alguns comunicados, que servem para deixar seus clientes com a consciência tranquila.

O incrível sucesso da Shein é prova cabal de que a preocupação com a sustentabilidade passa longe da maioria das pessoas, que simplesmente buscam os melhores produtos pelos menores preços. Achar que as empresas ou os governos podem liderar uma cruzada pela sustentabilidade sem considerar o consumidor na equação é auto-iludir-se.

O limite do ridículo

Está rodando nas redes bolsonaristas um comparação produzida pelo Luciano Hang (também conhecido como Véio da Havan), mostrando dois mapas da América do Sul, um de 1965 e o outro de 2022. No primeiro, o Brasil aparece com participação de 27,43% do PIB sul-americano, enquanto que, no segundo, a mesma participação está em 50,12%, quase o dobro.

Mas o detalhe, digamos, cômico, da comparação é a cor do mapa: em vermelho, todos os países com governos de esquerda, em preto os países com governos de direita e em azul o Brasil. Detalhe, a orientação ideológica é a do governo ATUAL. Ou seja, atribui-se o que quer que seja que se queira concluir com esses mapas aos governos atuais, quando se trata de uma evolução dos últimos 57 anos. Ou seja, uma coisa sem pé nem cabeça.

Fui dar uma checada nos dados. O Banco Mundial mantém a base de dados de onde foram tiradas essas informações. Reproduzi, com os mesmos dados, a evolução da participação do Brasil no PIB sul-americano desde 1965 até 2021 (este é o ano correto, não 2022, como aparece no mapa). O gráfico está a seguir.

Podemos observar que o Brasil atinge 50% de participação do PIB sul-americano em 1975, após o “milagra econômico”. O mesmo governo militar derrubou essa participação a 40% em 1985, quando entregou o poder aos civis. De 1985 a 1994, temos fortes oscilações, provavelmente causadas pela hiperinflação. Vamos lembrar que se trata de PIB em dólares, o que é muito influenciado pelo câmbio usado. A partir de 1995, temos uma estabilização em 55%, interrompida pela desvalorização cambial de 1999, para ser retomada a partir de 2002.

Mas o mais engraçado vem agora: o melhor momento da participação brasileira no PIB sulamericano ocorre a partir de 2007, segundo mandato de Lula, quando estabiliza em 55%, chegando a quase 60% em 2011, provavelmente em função da forte valorização do real nesse ano. A partir de 2012, e até 2019, a participação fica mais ou menos estável em 55%, recuando para os atuais 50% nos dois últimos anos, justamente o período do governo Bolsonaro.

Então ficamos assim: a participação do Brasil no PIB sulamericano ficou em 55% durante praticamente todo o governo do PT, e só recuou para 50% quando Bolsonaro assumiu. Aliás, a participação de 2021 é a pior desde 2001.

Obviamente, não quero dizer com isso que o governo do PT foi melhor do que o governo Bolsonaro, em termos econômicos. Mesmo porque, essa série de participações no PIB sulamericano não faz o mínimo sentido para tirar qualquer conclusão que preste. Meu único ponto é que tem um limite para o ridículo. O PT também faz esse tipo de mistificação, mas normalmente eles são mais competentes.

Certamente Luciano Hang não toca suas empresas com esse tipo de interpretação das estatísticas econômicas. Bem, espero que não.

Falta a fase 2 do plano

Já disse aqui que tenho um amigo que se converteu ao bom mocismo esquerdista. Sendo classe média alta, tem insistido no fato de que a distribuição de renda no país é muito injusta, que deveríamos taxar fortunas, que o capitalismo não funcionou para distribuir riqueza e outras coisas do tipo. O último samba de uma nota só é o programa de renda mínima do Suplicy. Segundo meu amigo, é a solução para o problema da distribuição de riqueza no país.

Sempre que converso com esse meu amigo, não consigo deixar de lembrar de um episódio do South Park, em que os garotos entram em uma caverna de duendes em busca de orientação sobre como as empresas funcionam.

Os duendes, por sua vez, estão colocando em prática um plano infalível para fazer lucro:

Fase 1: Acumular cuecas

Fase 2: ?

Fase 3: Fazer lucro

Os garotos não entendem bem como acumular cuecas gera lucros, mas os duendes estão convencidos de que vão lucrar muito com o negócio, mesmo não tendo ideia de qual é a fase 2 do plano.

Esquerdistas-raíz, também conhecidos como comunistas, têm um plano bem definido, em que sabem bem qual é a fase 2:

Fase 1: Instalar uma ditadura

Fase 2: Expropriar os meios de produção e produzir tudo de acordo com “as necessidades do povo”.

Fase 3: Povo feliz, cada um produzindo conforme sua capacidade e consumindo conforme sua necessidade.

Bem, vimos onde foi parar a antiga União Soviética, e onde estão hoje Cuba, Venezuela e Coreia do Norte. Os comunistas descobriram, da pior maneira possível, que a fase 2 não leva até a fase 3.

Mas existem os esquerdistas-bom moços. Não são trogloditas como os comunistas, não pensam em instaurar uma ditadura e nem expropriar meios de produção. Seu plano é bem mais fofo:

Fase 1: Implementar um programa de renda mínima (aqui pode ser qualquer programa social)

Fase 2: ?

Fase 3: Todos se tornam mais ricos e felizes

A fase 1 não parece tão ridícula quanto “acumular cuecas”, mas o efeito prático é o mesmo. A ideia é de que existe um caminho mágico entre o programa social e a riqueza das pessoas, como se o dinheiro necessário brotasse das cuecas dos duendes.

Este tipo de pensamento mágico é o que faz com que a esquerda esteja sempre pensando em “um outro mundo possível”, enquanto nunca passamos da Fase 1 no mundo concreto onde vivemos. Isso acontece porque a Fase 2 é muito complexa: envolve produzir mais com menos recursos, melhorar a qualidade do capital humano, atrair investimentos produtivos, diminuir a burocracia que impede o empreendedorismo e uma longa lista de medidas que poderiam fazer o dinheiro brotar para financiar o plano.

Tudo isso, no entanto, é um tanto “neoliberal” e, portanto, não conta com a simpatia do bom-mocismo esquerdista. Melhor é gastar energia na Fase 1, juntando cuecas.

O capital empoçado dos bilionários

Manchetes como essa abundaram na imprensa depois do tombo das empresas de tecnologia. Os bilionários ficaram mais pobres. O tom é de mal disfarçada satisfação.

Tenho um amigo que me confidenciou nessa semana que acha muito errado essa concentração de riqueza nas mãos de poucos e tantos passando fome. Que esse dinheiro, ao invés de ficar empoçado, deveria ser colocado para trabalhar ou, no mínimo, para mitigar o sofrimento dos mais pobres.

Esse meu amigo é economista e trabalha no mercado financeiro, então não faz o estereótipo do estudante de sociologia maconheiro, que vive de ditar regras de como o mundo seria melhor se os outros fizessem a sua parte. Por isso, acho que o seu ponto de vista talvez seja compartilhado, de maneira menos ou mais envergonhada, por outras pessoas que, sinceramente, não entendem como bilhões se acumulam nas mãos de tão poucos e ninguém faz nada a respeito disso. Assim, resolvi escrever este post, como uma resposta estruturada ao meu amigo (nem sei se ele vai ler) e a todas essas pessoas.

Em primeiro lugar, a concentração de riqueza não é um fenômeno de hoje. Na verdade, esse problema já foi muito pior em um passado remoto, bem antes do capitalismo, quando reis e nobreza realmente concentravam a (pouca) renda produzida. O surgimento da classe média – largas fatias da população com renda média – é um fenômeno relativamente recente, contemporâneo ao surgimento do capitalismo. Portanto, estamos reclamando de barriga cheia. Aliás, como igualmente acontece em vários outros campos em que as conquistas civilizatórias são tomadas como direito divino, e não como o que são, conquistas que não seriam alcançadas sem a devida mobilização de capital físico e humano.

Aqui entra a segunda parte da resposta ao meu amigo: o capital dos bilionários não está “empoçado”, inerte, ocioso. Muito pelo contrário: este capital, assim como a poupança de cada um de nós, está investido. Grande parte da riqueza desses bilionários está investida em sua própria empresa. Ou seja, a sua riqueza é formada pelas ações de suas empresas. Essas empresas geram valor para a sociedade. Caso contrário, valeriam zero. O preço de uma ação é dado pelo valor agregado pela empresa percebido pelos investidores. Este valor é medido pelo lucro do empreendimento. As empresas estão no mercado disputando o capital dos poupadores. Os bilionários poderiam se desfazer de suas ações e investir em outros empreendimentos com mais futuro. No limite, poderiam comprar títulos do governo, que não têm risco. Aliás, esta é uma tentação grande para os investidores brasileiros, que têm à disposição títulos do governo que pagam uma das maiores taxas de juros do mundo. Por que arriscar?

Os bilionários tiveram a “sorte” de poder investir em suas próprias empresas logo no início, quando não valiam nada. Na medida em que a empresa foi crescendo, o capital investido foi se multiplicando. E a empresa só cresce se agrega valor para o seu cliente, a ponto de pagar os custos da operação e ainda gerar lucro. Caso contrário, vai habitar o populoso cemitério das empresas que não deram certo. Para cada Zuckerberg bilionário, há milhões de empresários que não foram para frente. Há um risco, e não é pequeno.

Mesmo o dinheiro que não está investido em suas próprias empresas não está ocioso. É investido em outras empresas ou em títulos do governo. Ou seja, servem para financiar as beneméritas ações que os governos fazem com o nosso dinheiro. Aliás, não deixa de ser curioso que os mesmos que demonizam os bilionários são normalmente aqueles que esperam que os governos mitiguem os sofrimentos dos mais pobres. Com que dinheiro? Ah sim, dos bilionários. Ou seja, esse dinheiro “empoçado” está servindo para financiar as ações dos governos.

Mas o que este meu amigo gostaria mesmo é de um imposto que fizesse um corte na fortuna desses bilionários, carreando esse dinheiro para os cofres do governo. Ou seja, ao invés de tomar emprestado via títulos públicos, esse dinheiro “a mais” seria confiscado via impostos. Claro que a linha de corte para a taxação dos mais ricos teria que ser mais alta do que a fortuna desse meu amigo, que certamente está entre os 1% mais ricos do Brasil. Afinal, ricos são sempre os outros. Mas digamos que essa questão da linha de corte fosse resolvida. O ponto é: qual seria a mágica para manter o espírito empreendedor, dado que o grande prêmio seria tomado pelo governo, e todos estariam destinados a serem classe média? Regimes socialistas tentaram fazer isso, com os resultados conhecidos.

Para terminar, vou além: a concentração de capitais é benéfica para a sociedade. Somente a concentração de capitais permite que exista poupança. E somente com poupança é possível ter investimentos. Se todos tivessem somente o necessário para sobreviver, não haveria poupança, não haveria investimentos, não haveria novas empresas (que supõe colocar o capital em risco e, eventualmente, perdê-lo) e, no final, não haveria progresso.

O governo pode tentar substituir a poupança privada, investindo o dinheiro dos impostos. No entanto, conhecemos a eficiência desses investimentos. Portanto, é preciso ter sobra de capital privado para arriscar em novos empreendimentos. Não existe capital “empoçado”, ocioso, a não ser na cabeça de quem não conhece a dinâmica do capitalismo.

Vale do silício: mocinho ou vilão?

Meu amigo Guilherme Morais chamou-me a atenção para a coincidência: dois artigos, em páginas consecutivas do Estadão de hoje, falando sobre o mesmo tema (a “especulação” do chamado Vale do Silício) de maneiras completamente opostas.

O primeiro destaca a condenação de Elizabeth Holmes por fraude.

Para quem não conhece, Mrs. Homes fundou, aos 19 anos de idade, a Theranos, uma empresa, ops, startup que se propunha a diagnosticar uma série de doenças utilizando apenas algumas gotas de sangue. O artigo, escrito por um jornalista da Associated Press, pergunta se o caso poderia servir para “passar uma mensagem preocupante para uma cultura do Vale do Silício que costuma se perder na própria arrogância”. Ou seja, o jornalista condena a auto-promoção dos empreendedores que, supostamente, enganam investidores incautos em uma “estratégia de excessos”.

Já o segundo artigo, do colunista de tecnologia Pedro Doria, vai na direção oposta: sugere que, ao invés de tentarmos copiar o modelo chinês ou coreano de crescimento, baseados em diretrizes estatais e que realmente não inovam, deveríamos tentar reproduzir a cultura do Vale do Silício, com a sua eterna destruição criativa e que verdadeiramente gera inovação.

Quem está certo? Pedro Doria, por certo. O caso de Elizabeth Holmes é um exemplo de fraude. Apenas uma fração dos empreendimentos do Vale do Silício que fracassam é fraudulento. A grande maioria fracassa porque foi mau executado. Para os investidores, no final do dia, tanto faz se o empreendedor é uma fraude ou incompetente. O resultado final é o mesmo, a perda do investimento.

Mas os investidores em startups sabem que a maior parte de seus investimentos nesse tipo de empresa será perdido. Trata-se de investimento de alto risco. Está-se em busca do novo Google ou Facebook, aquele investimento que vai se multiplicar por milhares de vezes. E, por isso, se topa perder dinheiro com as Theranos da vida. Faz parte. A condenação de Elizabeth Holmes não muda uma vírgula essa equação.

Quanto à coluna de Pedro Doria, vemos no Brasil o surgimento de várias empresas de tecnologia que já valem mais de US$ 1 bilhão e que passam por debaixo do radar do planejamento estatal, aquele que distribui subsídios e incentivos fiscais para “gerar emprego e renda”. O que seria preciso para incentivar ainda mais esse tipo de atividade? Recentemente tivemos a aprovação do marco das startups, o que já foi um avanço, incentivando o investimento nesse tipo de empresa. Mas o grande gargalo, ao que parece, é encontrar mão de obra especializada. E aí, o buraco é bem mais embaixo.

Um colchão por domicílio

Eugênio Bucci escreve hoje um artigo de comover o mais duro dos corações revolucionários. Eu ia destacar um trecho ou outro, mas resolvi reproduzi-lo por inteiro, pois se trata de uma peça única, sem costura.

O artigo trata da população de rua de São Paulo e aborda três aspectos: a glamourização de quem mora na rua, a eleição de culpados e a omissão dos “bons”.

A glamourização ocupa a maior parte do artigo. É de uma poesia que nos faz pensar se realmente aquelas pessoas necessitam de ajuda. São muito ordeiros, conversam como se estivessem em uma cidadezinha do interior e a moça é uma Cleópatra perdida na cidade grande. Temos muito a aprender com eles. Quase chegamos a pensar que a sua felicidade não merece ser interrompida.

No entanto, esse quadro idílico é abruptamente comparado com o gueto de Varsóvia. Sim, porque as situações são realmente muito comparáveis: lá, como aqui, temos um ditador que ordena arbitrariamente que famílias inteiras se mudem de suas casas para um determinado bairro. Reductio ad hitlerum detectado.

E quem seria esse ditador malévolo, que condena famílias inteiras à felicidade de morar na rua ou ao indizível sofrimento de viver em um gueto? (Eu realmente fiquei confuso com esse paradoxo). O suspeito de sempre: o sistema financeiro, que é o suco concentrado do capitalismo. Ah, esses hitlerizinhos que só pensam em seus lucros, gerando os sem-teto por algum processo não explicitado no texto. Nem precisa, porque está claro que o capitalismo é o mal.

O texto foi construído pelo articulista para arrancar suspiros dos seus pares em saraus regados por um bom vinho ao calor de uma lareira em uma casa alugada através do Airbnb em Campos do Jordão ou em um bar transado na Vila Madalena, onde, como sabemos, se tem a fórmula para acabar com todos os problemas do mundo: substituir o capitalismo selvagem por um outro mundo possível.

Aqui termina minha análise do texto e começa minha análise da situação. Como não sou poeta, a análise irá vazada em bullet points, como todo bom financista da Faria Lima faria:

– A população pobre vive nas periferias e nas favelas. O problema da população de rua extrapola a questão da pobreza, envolve drogas e doenças mentais. Está longe, muito longe, da glamourização que a esquerda faz da pobreza.

– A última informação que eu tenho, em conversa com uma assistente social da prefeitura, é que sobram vagas nos abrigos. Há uma relutância de dormir nesses abrigos por vários motivos. Não há como forçar as pessoas a deixarem as ruas. Qualquer iniciativa nesse sentido seria taxada pelos Buccis da vida como “higienização”. Já vejo um artigo comparando os abrigos a câmaras de gás.

– A esquerda normalmente torce o nariz para iniciativas, geralmente de cunho religioso, visando a mitigação dessa situação. Qualquer ação nesse sentido esconde a chaga do capitalismo e adia a verdadeira transformação da sociedade em um outro mundo possível. É preciso que essas pessoas continuem onde estão, de modo a lembrar a todos, o tempo inteiro, o quão cruel é o sistema em que vivemos.

– Por fim, meu usual suspeito para essa situação: pessoas como Bucci, que vivem do salário pago com o imposto cobrado dos descamisados, e que subsidia uma universidade para os filhos da classe média, para que estes aprendam como o sistema capitalista é perverso e, depois, escrevam artigos que arranquem suspiros do mais empedernido revolucionário.

Termino com uma música da Rita Lee que sempre me vem à mente quando leio artigos desse tipo:

“Me cansei de lero-lero / dá licença mas eu vou sair do sério / quero mais saúde / me cansei de escutar opiniões / de como ter um mundo melhor / mas ninguém sai de cima / desse chove-não-molha / eu sei que agora / eu vou é cuidar mais de mim” 🎶