Uma obra de muitas mãos

Esse imbróglio do ginásio do Ibirapuera me lembra o filme Aquarius. No filme, Sonia Braga faz o papel de uma viúva que se recusa a vender o seu apartamento para uma incorporadora, que quer usar o terreno para construir um prédio muito mais alto no lugar. É uma ode à resistência à especulação imobiliária.

O economista Samuel Pessoa escreveu à época um artigo antológico na Folha a respeito desse filme. Entre outras considerações, Pessoa lembra que a atitude da protagonista impediu a geração de muitos empregos na construção civil, além do desenvolvimento de atividades econômicas que gerariam mais impostos, que, no final da linha, poderiam ser usados para mitigar a situação de pessoas mais pobres. Tudo isso, em nome de uma resistência romântica ao “grande capitalismo”.

O Complexo do Ibirapuera está se deteriorando porque o poder público não tem recursos suficientes para mantê-lo. Ou melhor, tem, desde que retire de outras áreas da administração. A reportagem está cheia de aspas de ex-atletas e arquitetos, todos muito preocupados com o, digamos, ataque à nossa “memória esportiva”. Claro, os entrevistados provavelmente não dependem de um emprego na construção civil ou não usam escolas ou hospitais públicos. O projeto do governo do estado é construir uma arena esportiva nova e oferecer a área para a construção de um shopping center e um complexo de escritórios em uma das regiões mais valorizadas da cidade. A resistência vem de quem não depende dos empregos gerados pela iniciativa. Aqueles que dependem nem sabem que continuarão desempregados para que a nossa “memória esportiva” seja preservada.

A má distribuição de renda no Brasil é uma obra realizada a muitas mãos.

Redes sociais, a nova face do velho capitalismo

O professor Eugênio Bucci lançou um livro. Em entrevista ao Estadão (destaquei os trechos mais interessantes abaixo), nos conta um pouco do que vai por aquelas páginas. Ao lado de expressões como “a instância da imagem ao vivo é o portal por onde a totalidade do agora abraça a totalidade do espaço”, repetida pelo entrevistador com mal disfarçado enlevo, Bucci somente repete o seu fatwa sobre as redes sociais, o que já havia sido objeto de artigos do professor.

Segundo o professor da ECA, “nunca os seres humanos foram tão abusivamente explorados como agora”. Os seres humanos escravizados de todas as épocas, o que inclui os prisioneiros dos campos de concentração nazistas e das prisões do Gulag soviético, devem estar se revirando nos seus respectivos túmulos. Até mesmo os proletários de Marx, esses pobres explorados pelo capital, devem estar aliviados de não serem mais os líderes desse ranking da exploração. Agora, os mais explorados de todos os tempos somos nós, os usuários das redes sociais. U-lá-lá!

Bucci faz uma revelação aterradora: os usuários das redes sociais somos “mercadejados”! A palavra “mercadejar” traz uma carga negativa para esse tipo de intelectual, que vê no comércio algo sujo, impróprio da dignidade humana. Para esse pessoal, um outro mundo, com as pessoas trabalhando quanto puderem e consumindo quanto quiserem, é possível. Não à toa, o professor se refere à “ganância do capital” como a fonte de todos os nossos problemas. De fato, essa ganância que permitiu tirar bilhões de seres humanos da miséria e dobrar a expectativa de vida da humanidade ao longo dos últimos séculos é um problema a ser resolvido.

Mas voltemos à “revelação”: somos mercadorias! Uau! E eu achando que o Zucka nos fornecia essa plataforma de graça por ser um grande filantropo, interessado apenas em nos proporcionar alguma diversão. Estou perplecto.

O professor nos conta que há uma grande assimetria: enquanto os algoritmos nos conhecem profundamente, nós não conhecemos nada sobre os algoritmos. Fico pensando o que ganharíamos em conhecer os detalhes técnicos dos algoritmos. Deixaríamos de clicar onde clicamos? Deixaríamos de visitar as páginas que visitamos? Deixaríamos de usar as redes sociais? Na verdade, parece-me que hoje não há ninguém suficientemente ingênuo que não saiba que toda a sua navegação na Internet esteja sendo monitorada para nos vender coisas. O que mais exatamente precisamos saber?

Aliás, essa “assimetria” informacional não é privilégio das redes sociais. Toda empresa de bens de consumo conhece muito melhor o cliente, via pesquisas e imensos bancos de dados (que já existiam antes das redes sociais) do que o cliente conhece a empresa. As redes sociais e o Google somente alavancaram no poder da Internet para levar esse processo de conhecimento do cliente ao estado da arte. Não houve uma mudança de natureza, houve apenas um aumento da velocidade e da quantidade de dados disponíveis.

Bucci sugere como remédios “regulamentação democrática” e “quebra de monopólio”. Fico imaginando que tipo de regulamentação poderia impedir o uso de dados que os usuários topam compartilhar como preço pelo uso da ferramenta. E, caso haja proibição total de uso desses dados, fico imaginando como as redes sociais e os buscadores da Internet sobreviveriam. Na verdade, a própria Internet como a conhecemos ficaria inviabilizada. Voltaríamos a um mundo sem Internet. Conseguem imaginar?

Por fim, não poderia faltar o toque político: a democracia estaria ameaçada! Por quem? Nada mais, nada menos, que os bolsonaristas, que usam as redes sociais para espalhar o ódio e fake news. Como se outras forças políticas não pudessem usar as redes sociais por algum motivo. E como se as redes sociais fossem um fator determinante para abalar regimes democráticos. Não me consta que Hitler ou Stálin contassem com redes sociais.

Enfim, toda a análise do professor Eugênio Bucci está irremediavelmente contaminada pela sua visão anti-capitalista. As redes sociais são somente a mais conveniente e atual desculpa para apontar os males da sociedade consumista em que nos transformamos. O sonho dos Bucci da vida é o outro mundo possível, em que nos livremos da ganância do capital. Não deixa de ser irônico que os cubanos, que experimentaram esse outro mundo possível, estejam agora mesmo pedindo acesso livre às redes sociais.

De onde vêm os empregos

Tenho uma revelação a fazer, e que pode chocar os espíritos mais cândidos: os empregos não são trazidos pela cegonha e nem nascem dos repolhos. Não. Os empregos nascem de um ato pecaminoso: a busca especulativa pelo lucro.

Desculpem-me usar palavras fortes, como lucro, especulação e empresário, mas hoje estou disposto a revelar tudo, a verdade nua e crua. Preparados? Então, vamos lá.

Um empresário tem uma ideia. Por ser um empresário, essa ideia transforma-se em uma empresa. Isso distingue os empresários dos inventores ou cientistas. Estes também têm muitas ideias, mas que não se transformam em empresas. Ficam lá, no mundo das ideias, até que um empresário resolve trazê-las para o mundo real.

Essa é a gênese de qualquer empresa, desde uma padaria até a General Motors. Sim, as empresas também não são trazidas pela cegonha, tampouco nascem de repolhos. É preciso que um empresário coloque em prática uma ideia. Como? Arriscando capital, o seu próprio ou o de terceiros. Qualquer empresa não passa de uma atividade especulativa.

Arriscar capital significa que o capital pode se multiplicar ou pode virar pó. Uma empresa precisa produzir um bem ou serviço (a “ideia”) de modo que seja suficientemente barata para tirar os consumidores de outras empresas que estão igualmente ofertando bens e serviços (outras “ideias”).

Este capital é utilizado para investir em maquinário, edificações, capital de giro. A empresa contrata funcionários (daí nascem os empregos!), se adequa à legislação vigente e começa a funcionar. Tudo certo? Óbvio que não.

Não tenho as últimas estatísticas, mas o índice de mortalidade de empresas no Brasil é altíssimo. Arriscar o capital é estar sujeito a morrer. Por isso, o financiador da empresa, aquele sujeito que aporta o capital, exige um retorno adequado ao risco. Este retorno é o lucro da empresa.

O lucro prometido pela empresa deve ser suficientemente grande para compensar o risco do empreendimento. E agora chegamos ao âmago da questão: como o investidor obtém o seu lucro? Através do pagamento de dividendos. São os dividendos que remuneram o capital de risco que permite trazer ideias para a realidade e gerar empregos. Ou melhor, é a expectativa de futuros dividendos que move o capital de risco.

O que acontece quando os dividendos são taxados em 20%? A expectativa de dividendos futuros deve ser 20% maior para que o mesmo capitalista tope o mesmo risco (na verdade, precisa ser ainda maior, porque o cálculo é “por dentro”, mas vamos deixar as tecnicalidades de lado). Resultado: menos empresas viáveis, menos empregos criados.

Diminuir o imposto sobre o lucro da empresa mitiga o problema, mas cria uma distorção. Em recente entrevista, o secretário da Receita afirmou que não haverá aumento da carga tributária, pois as empresas podem reter lucros, e então não haveria pagamento de imposto sobre dividendos. Segundo o secretário, a empresa reinvestiria os lucros, gerando crescimento e empregos, ao invés de pagar dividendos para esses capitalistas gastarem em iates, mulheres e mansões (essa última parte ele não falou, mas o sentido é o mesmo).

Qual o problema desse raciocínio? Alocação de capital. Quem disse que a melhor oportunidade de investimento é na própria empresa que gera o lucro? Será que não haveria outras oportunidades melhores por aí, que gerariam mais crescimento e emprego? Esta decisão, que é feita pelo investidor capitalista a todo momento, será distorcida pelo imposto sobre o dividendo. Oportunidades fora da empresa terão que ser 20% melhores do que se não existisse o imposto.

Isso nos leva à questão do rendimento dos “super-ricos”. Nas reportagens a respeito do assunto, sempre se repisa o achado de que apenas uma pessoa, em 2019, recebeu R$1,3 bilhões em dividendos sem tributação. Já ficamos imaginando o sujeito em seu iate em Mônaco, indo e voltando ao Brasil em seu jatinho particular e vivendo em sua mansão de mais de 100 aposentos. Tudo isso provavelmente é verdade. A questão é que, para sustentar tudo isso, o nosso bilionário não deve precisar gastar mais do que, digamos, R$50 milhões por ano. E o que ele faz com os restantes R$1,25 bilhões? Simples: reinveste em empresas que vão gerar empregos e, se der sorte, lucros adicionais. Ao taxar esses dividendos, haverá menos dinheiro especulativo para o investimento em empresas e sua consequente geração de empregos.

Antes que me lembrem, é claro que esse mecanismo é concentrador de renda. Taxar o investimento é uma forma de distribuir renda, considerando a hipótese heróica de que o governo não vá gastar grande parte desses recursos sustentando a própria máquina. Então, fica a escolha: não taxar e propiciar um ambiente em que se cria mais empregos e a distribuição de renda é pior ou taxar e diminuir o potencial de criação de empresas e de empregos, mas com melhor distribuição de renda, via auxílios do governo?

Cada sociedade faz as suas escolhas. A única coisa certa é que empregos não nascem de repolhos e não são trazidos pela cegonha.

O espírito do capitalismo

Este é o segundo post sobre o filme indiano Pad Man. Vou abordar aqui o aspecto econômico da história.

Trata-se da incrível história de um inventor indiano que, levado pelo amor que tem à esposa, decide encontrar uma solução para fabricar um absorvente higiênico de baixo custo. A Índia, como sabemos, é um país muito pobre, e somos informados que somente 12% das mulheres indianas têm acesso a absorventes higiênicos. O resto das mulheres precisa se virar com paninhos.

A história começa com o inventor comprando na farmácia um pacote de absorventes, que custa 55 rúpias. Para o indiano médio, trata-se de uma pequena fortuna, impossível de ser mantido como hábito. A esposa do inventor recusa-se a usar os absorventes, pois o inventor tem irmãs que também teriam direito a esse luxo, e não há dinheiro para comprar absorventes para todas.

O inventor, então, resolve estudar o produto. Ele fica admirado como um pouco de algodão embrulhado em um pedaço de papel pode custar tão caro. Ele diz para si: isso eu posso fabricar por uma fração do preço. Começa, então, a sua saga.

O inventor pega um pouco de algodão, embrulha em um certo tipo de papel seda, e entrega para a sua esposa. Esta usa, mas a coisa não funciona: vaza durante a noite, e ela é obrigada a lavar todas as suas roupas.

Bem, não vou aqui contar mais detalhes para não dar spoiler, mas o fato é que aquela “coisa simples”, que aparentemente seria fácil de fazer, na verdade envolve alta tecnologia, fruto de extensa pesquisa e muitos testes ao longo de anos.

Olhe o mundo à sua volta. Tudo, absolutamente tudo o que usamos, que damos como natural que estejam à nossa disposição, é fruto de um longo processo de desenvolvimento tecnológico. A exata composição química, o mecanismo perfeito de funcionamento, o processo mais eficiente de fabricação, tudo isso é resultado de milhões de horas combinadas de muitos e muitos seres humanos, em um processo de erros (muitos) e acertos (poucos) sucessivos e cumulativos. Ao assistir ao filme, duvido que você não ficará surpreso com a tecnologia por trás de um simples absorvente higiênico.

Mas você pensa que chegar ao absorvente perfeito é o ponto final da jornada? Ingenuidade sua e do inventor. Agora começa a verdadeira saga: como fazer chegar o produto ao consumidor final? Pode parecer óbvio isso que vou dizer, mas um produto não se vende sozinho. É preciso ter um modelo de negócios em torno do produto. Uma empresa.

Um inventor consegue inovar, mas aquele invento somente será útil para a humanidade se chegar nas mãos dos consumidores. E somente uma empresa, um modelo de negócios sustentável, consegue atingir este objetivo.

Novamente, olhe em torno de si. Todos os produtos e serviços que você usa chegaram a você de alguma forma. São invisíveis os imensos desafios de logística e mercadológicos que devem ser vencidos para que o produto ou serviço chegue a você a um preço suficientemente atrativo para que um número suficientemente grande de pessoas compre, de modo que a empresa que fabrica o produto sobreviva.

Em determinado momento do filme, o inventor precisa pensar justamente nisso: qual o melhor modelo para fazer chegar um absorvente barato ao maior número possível de mulheres? A solução é bastante engenhosa.

Por fim, a última consideração: o empresário. O inventor do filme não é somente um inventor. É, principalmente, um empresário. Incansável na busca de soluções, obcecado pelo seu objetivo. Ele simplesmente vai passando por cima dos obstáculos que vão surgindo. Existe, claro, o componente sorte, mas, para que a sorte trabalhe a seu favor, é necessário que você trabalhe antes em favor da sorte.

O empresário é a alma do capitalismo. É o sujeito que consegue coordenar pessoas e meios de produção de modo a fazer chegar ao consumidor produtos e serviços que criam valor, a preços que estes podem pagar, mantendo essa operação viva e operante ao longo do tempo. Não é para qualquer um.

Um país é tão mais rico quanto mais o seu espírito empreendedor é incentivado e premiado. O resto é teoria acadêmica.

Quem é o culpado pelo aquecimento global?

Não tive tempo de comentar essa coluna ontem, quando foi publicada no Valor Econômico. Mas merece comentário, pois foi um dos raros momentos de realismo nesse debate sobre as mudanças climáticas.

Humberto Saccomandi, editor de internacional do jornal, manda a real sobre o tema: o controle sobre a emissão de gases de efeito estufa significa “uma economia com produtos mais caros e menos consumo”. É isso.

O colunista não ataca agenda ambientalista, pelo contrário. Diz ser muito necessária. Mas coloca o problema no seu enquadramento correto, que vocês já devem ter lido por aqui nas vezes que abordei o tema: não se trata de um problema restrito a governos insensíveis e empresas malvadonas. Trata-se, antes de tudo, de um problema de demanda. Os indivíduos, eu, você e a Greta, queremos o máximo conforto pelo menor preço possível. A indústria simplesmente oferece o que nós desejamos.

Dentro do capitalismo, a forma de induzir comportamentos é através da precificação, afirma corretamente o colunista. Por isso, combustíveis fósseis deveriam ser mais caros, de forma a induzir a diminuição de seu consumo. Claro que combustível mais caro significa produtos mais caros. E mais caros para todos, ricos e pobres. Humberto cita o caso das usinas nucleares: por apresentarem um grave problema de descarte de lixo nuclear, várias normas foram editadas, tornando a produção de energia nuclear em usinas novas economicamente inviável para a iniciativa privada, o que afastou investidores. Sim, o lucro é ainda um driver importante do sistema capitalista.

Para resolver essa charada, o colunista lança mão do conceito de “economia doughnut”, ou “rosquinha”, proposta pela economista britânica Kate Raworth. Segundo esse conceito, a humanidade precisa reaprender a viver entre os limites de um mínimo de conforto e um máximo de consumo ambientalmente sustentável. Obviamente, é mais fácil falar do que fazer. Procure no discurso de Biden algum trecho dizendo que os americanos precisam se acostumar com menos conforto. Boa sorte.

E este conceito leva a outro nó, também apontado pelo colunista: o mundo é um só, mas obviamente as populações dos países pobres vivem muito abaixo do limiar mínimo de conforto aceitável. As populações dos países ricos, portanto, deveriam não só diminuir o seu nível de conforto por questões ambientais, mas, adicionalmente, para também abrir espaço de consumo para as populações dos países pobres. Como diz o colunista, “um processo de difícil aceitação”.

Aqui termina a coluna de Humberto Saccomandi e começa a minha conclusão. Paul Kruger afirma em sua coluna do New York Times, traduzida hoje no Estadão, que o custo de produção da energia solar caiu 89% desde 2009 e o da energia eólica, 70% no mesmo período. Impressionante, não é mesmo? Mas, no capitalismo, tudo é uma questão de preço. Vocês podem ter certeza de que, no dia em que as energias solar, eólica e todas as outras fontes renováveis de energia forem mais baratas que a energia derivada de combustível fóssil, não teremos mais Cúpulas do Clima. A indústria se converterá espontaneamente para essas fontes, sem necessidade de políticas governamentais. Afinal, lucro é ainda um driver importante do capitalismo.

O preço do ar que respiramos

Os críticos mais acerbos do capitalismo normalmente encrencam com o fato de que tudo tem um preço. “Só falta cobrarem pelo ar que respiramos!”, é a frase que resume a revolta.

Pois bem, a Covid-19 trouxe o incômodo fato de que temos também que pagar pelo ar que respiramos, caso não consigamos, por alguma limitação física, puxar o oxigênio da atmosfera com nossos próprios pulmões.

E, adivinha: para ter disponível esse oxigênio, é necessário investir em fábricas de cilindros de oxigênio, para que a produção atenda à demanda. Além disso, é necessário investir em logística, para que esses cilindros cheguem aos hospitais.

A Economist trás um gráfico interessante esta semana, mostrando a demanda por oxigênio hospitalar ao redor do mundo. Obviamente, os países mais populosos e com mais casos de Covid têm as maiores necessidades, pois a medida está em valores absolutos. De qualquer modo, mostra a dramaticidade da coisa.

Não sou médico, mas dizem que podemos sobreviver 5 semanas sem comida, 5 dias sem água, mas não mais que 5 minutos sem oxigênio. Como diria o Galvão Bueno, o jogo vai ficando dramáááático!

A vida não tem preço, mas sempre custa alguma coisa para ser mantida. E, se custa alguma coisa, não se engane, alguém sempre vai pagar, seja o regime comunista, socialista ou capitalista. Resta saber quem. No final, se ninguém pagar, é a vida que será sacrificada.

Vida digna

“Precisamos garantir vida digna para os brasileiros!”

Com pequenas variantes, este é, de modo geral, o discurso dos políticos brasileiros. E não somente dos políticos. Também é o discurso de todos os que, de uma forma ou de outra, acham que têm a solucionática para toda a problemática brasileira, como dizia o inesquecível Odorico Paraguaçu.

Mas, o que é uma “vida digna”?

Arriscaria dizer que “vida digna” é aquela em que o ser humano tem acesso a todos os bens essenciais à sua sobrevivência. O diabo nessa definição está em definir o que é “essencial”. O que é essencial para mim pode não ser para você, e vice-versa. Além disso, o ser humano tem a incrível capacidade de se acostumar com o seu padrão de vida, de modo que várias coisas se tornam “essenciais” ao longo do tempo. Quem já experimentou uma redução abrupta em sua renda sabe do que estou falando.

Assim, a definição de “vida digna” é algo fluido, que depende da definição do que é “essencial”. No entanto, não por isso vamos deixar de abordar o tema. A propósito, lembro de um caso que ficou famoso na Suprema Corte dos EUA.

Em 1964, o dono de um cinema apelou à Suprema Corte contra uma condenação por exibição de material obsceno. A apelação se baseava na ideia de que é impossível definir a linha que separa o obsceno da nudez artística. O juiz Potter Stewart, embasando seu voto a favor da apelação, saiu-se com a frase que até hoje é considerada o resumo daquilo que não conseguimos definir, mas conhecemos muito bem: “Eu reconheço quando eu vejo” (I know it when I see it), referindo-se a material pornográfico.

Vida digna é difícil de definir. Mas vida indigna é facilmente reconhecível quando se vê.

Em busca de uma definição do que seria essa tal “vida digna”, bati à porta do Dieese, Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Se tem alguém que entende de vida digna são os sindicatos, pensei. Eles não param de defender “vida digna” para os trabalhadores.

O Dieese calcula um “Salário-Mínimo Necessário”, com base, segundo a metodologia, na Constituição de 1988, que define o salário-mínimo como aquele “capaz de atender às suas necessidades vitais básicas (do trabalhador) e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”.

Ok, mas como definir os gastos mínimos em cada um desses itens, de modo a garantir a tal “vida digna” ao trabalhador? Como isso é muito difícil, para não dizer impossível de se fazer, o Dieese usa uma metodologia reversa: calcula o valor de uma cesta básica mínima de alimentos e supõe que esta cesta ocupe um percentual dos gastos totais da família. Vale a pena dar uma olhada nos detalhes.

Para calcular a cesta básica de alimentação, o Dieese usa o Decreto Lei no 399, de 30/04/1938. Sim, você não entendeu errado: o Dieese considera a cesta básica de alimentação definida por uma lei de 1938, a que estabeleceu o salário-mínimo no tempo do Estado Novo. Tem até banha, espertamente substituída por óleo. Mas ok, são detalhes. O que importa vem agora.

Para calcular o “Salário-Mínimo Necessário”, o Dieese considera que o gasto com essa Cesta Básica representa 35,71% do total de gastos do trabalhador. Esse percentual, assim, tão preciso, vem de uma Pesquisa de Orçamento Familiar feita pelo próprio Dieese em 1994. Ou seja, quase 30 anos atrás! Então, ficamos assim: a vida digna do Dieese é calculada com base em uma cesta de alimentos de 1938 e uma pesquisa de orçamento familiar de 1994.

O último valor divulgado desse “Salário-Mínimo Necessário” é de fevereiro/2021: R$ 5.375,05. Este seria o montante necessário para que uma família de 4 pessoas, dois adultos e duas crianças, tivesse uma “vida digna”. Uma renda per capita de R$ 1.343,76. Abaixo disso, a vida no Brasil seria indigna.

De acordo com um trabalho do IBRE-FGV, com base nos microdados da Pnad contínua do IBGE, cerca de 70% dos brasileiros recebiam abaixo deste montante em 2019. Portanto, cerca de 70% dos brasileiros tinham uma vida indigna, segundo o Dieese. Será que é isso mesmo?

Sempre que pensamos em vida indigna, associamos com a vida nas comunidades (antigas favelas). No entanto, segundo levantamento do IBGE, apenas 8% dos domicílios brasileiros encontravam-se no que o IBGE classifica como Aglomerados Sub-Normais (favelas, invasões, grotas, baixadas, comunidades, vilas, ressacas, loteamentos irregulares, mocambos e palafitas – segundo definição do IBGE). Mesmo que esses domicílios tenham em média o dobro dos moradores dos domicílios normais, estaríamos falando de 16% da população brasileira. Restariam, portanto, 54% da população que não mora em domicílios “sub-normais”, mas, mesmo assim, levaria uma “vida indigna”, segundo o Dieese.

Os moradores de domicílios “sub-normais” têm claramente uma vida não digna, segundo os padrões comumente aceitos. E o restante? O que caracterizaria a “não dignidade”?

Podemos elencar alguns pontos:

  • Pegar ônibus/trem lotado, duas horas para ir, duas horas para voltar do trabalho;
  • Esperar anos por uma vaga para fazer cirurgia no SUS;
  • Colocar os filhos em uma escola onde é certeza que sairão sem saber o mínimo necessário de português e matemática para enfrentar um mercado de trabalho extremamente competitivo;
  • Jogar o esgoto na rua ou diretamente no rio (segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, 47% da população brasileira não tinha tratamento de esgoto em 2018; ou seja, muito mais do que os 16% que supostamente moram em domicílios “sub-normais”).

Note que todos esses pontos ou são “de graça”, ou são oferecidos pelo Estado ou seu preposto em troca de uma tarifa. Saúde e educação são “deveres do Estado e direitos do Cidadão”, dizem. E esgoto e ônibus/trem só tem quando o Estado constrói (ou deixa construir) a rede de coleta ou a rede de transporte.

Portanto, a tal “vida digna” não depende só da renda da pessoa. Depende de que o Estado forneça aquilo que prometeu fornecer. Afinal, o Estado brasileiro arrecada 33% do PIB em impostos, a grandessíssima parte, direta ou indiretamente, daqueles que não tem uma “vida digna”.

Os R$ 1.343,76 do Dieese devem ser gastos com saúde (convênio) e educação (escola particular) para garantir a “vida digna” do cidadão. Obviamente não é possível. Sem contar que nem que a pessoa fosse milionária conseguiria construir uma rede de coleta de esgoto em casa ou colocar um trilho de trem. Este papel do Estado é insubstituível.

Por outro lado…

Existem hoje, no Brasil, cerca de 228 milhões de linhas de telefone celular. Ou seja, mais do que uma para cada habitante. Ok, há pessoas com mais de uma linha. Mas, vamos combinar que grande parte dos brasileiros, mesmo aqueles que vivem em domicílios “sub-normais”, dispõe de um celular. Difícil defender que celular faça parte da cesta da dignidade humana.

Você entra em qualquer domicílio “sub-normal” e vai encontrar uma TV. Segundo dados de 2018, somente 2,8% dos domicílios brasileiros não contavam com pelo menos uma TV. Uma penetração muito maior do que a coleta de esgoto, por exemplo.

O que isto significa?

Significa que uma parte relevante da “vida digna” depende não do salário, mas de serviços prestados pelo Estado. Aqueles elementos da “vida digna” que dependem da iniciativa privada, bem ou mal, chegam para a maioria dos brasileiros, mesmo considerando a renda atual média do brasileiro.

Vejamos novamente a definição de salário-mínimo de acordo com a Constituição:

Art 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

….

IV –  salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educaçãosaúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim;

Note que destaquei os itens “educação” e “saúde” como necessidades que devem ser bancadas pelo salário-mínimo. Há aqui uma contradição em termos: nos artigos 196 e 208 da mesma Constituição lê-se o seguinte:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Art. 208.  O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de:

      I –  educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria;

Portanto, se o Estado deve ser o garantidor último da educação e da saúde, não haveria por que os incluir como gastos a serem cobertos pelo salário-mínimo. Até parece que o legislador anteviu o fiasco do Estado como provedor de serviços sociais…

Poderíamos testar dois modelos alternativos, de modo a tentar aumentar a dignidade do brasileiro:

  1. Aumentar a carga tributária para custear melhores serviços sociais ou
  2. Diminuir a carga tributária, aumentando a renda disponível para a população, e deixar que a iniciativa privada forneça serviços sociais

A primeira alternativa conta com casos de sucesso e fracasso. Entre os casos de sucesso sempre mencionados estão os países escandinavos: com uma carga tributária próxima de 45% do PIB, esses países são modelos de bem-estar social. Difícil dizer que seus habitantes não levam uma “vida digna”.

Por outro lado, os países socialistas são, em geral, exemplo do fracasso da centralização estatal no fornecimento de serviços sociais. Os fãs de Cuba não concordarão, e dirão que sua população vive uma “vida digna”. Recomendo que assistam o documentário da Netflix, Cuba e o cameraman, do cinegrafista Jon Alpert, que se tornou amigo pessoal de Fidel Castro. Tudo está lá, de modo que cada um poderá tirar suas próprias conclusões.

O segundo modelo tem menos fãs no Brasil, porque, em geral, somos viciados em Estado. Um simples estudo de viabilidade de terceirização de algumas atividades de postos de saúde se transformou no escândalo da “privatização do SUS”, com direito a comentários furibundos de vários formadores de opinião. De qualquer modo, temos exemplos de países com menor carga tributária onde a população tem, em geral, vida mais “digna” que a do brasileiro. Estados Unidos é um exemplo, onde a carga tributária de 24% do PIB não impede a “vida digna” de seus cidadãos.

Note que há um ponto em comum entre os países escandinavos e os EUA, apesar da grande diferença de carga tributária: trata-se de países ricos. E ricos aqui, ao contrário da tal “vida digna”, é um conceito muito concreto: alta renda per/capita. Será, então, que o que determina a “vida digna” da população é a riqueza do país e não o quanto o Estado recolhe dos cidadãos para lhes dar uma “vida digna”? Vejamos.

Rodei duas regressões utilizando o IDH – Índice de Desenvolvimento Humano como proxy da “vida digna” dos cidadãos. Este índice é formado por três componentes: 1) renda/capita (riqueza), 2) número de anos em que as crianças ficam na escola (educação) e 3) expectativa de vida ao nascer (saúde). Como a renda/capita é um dos componentes do IDH, é natural que encontremos uma correlação positiva e bem significativa entre IDH e renda/capita, como podemos ver no gráfico abaixo:

Este gráfico nos mostra que, para cada US$1.000 de aumento da renda/capita, o IDH aumenta em 0,048. Guarde esta informação.

Como há esses dois outros componentes do IDH (educação e saúde), haverá diferenças devidas a políticas públicas nessas áreas. A questão é saber se a carga tributária tem algo a ver com esses ganhos em educação e saúde. Em outras palavras: se conseguirmos achar uma correlação entre a carga tributária e o IDH ex-renda/capita (o IDH considerando apenas os dois outros componentes), podemos dizer que vale a pena aumentar a carga tributária para aumentar o IDH. É o exercício que faço no gráfico abaixo:

Neste gráfico, correlaciono a diferença entre o IDH real e o IDH hipotético se fosse apenas função da renda/capita de cada país, que calculo usando a equação da regressão do gráfico anterior. Apesar de a correlação ser baixa, o coeficiente tem significância estatística a menos de 1% (p-value = 0,00014%), o que significa que, de fato, aumentando a carga tributária, temos uma tendência de melhora do IDH além daquele dado simplesmente pela renda/capita. Esta melhora é de 0,0015 a mais no IDH dado pela renda/capita para cada ponto percentual adicional na carga tributária.

Mas, não vamos perder a perspectiva. O gráfico anterior havia mostrado que, para cada US$1.000 de aumento na renda/capita, há um aumento do IDH de 0,048. E, no segundo gráfico, observamos um aumento adicional de 0,0015 ao IDH para cada ponto percentual de aumento na carga tributária.

Podemos observar, entretanto, que o aumento da renda/capita é muito mais importante para o aumento do IDH do que o aumento da carga tributária. Cerca de 30 vezes (0,048/0,0015) mais importante. Pode-se melhorar um pouquinho a dignidade do cidadão aumentando a carga tributária e oferecendo serviços, mas aumenta-se muito mais se conseguirmos elevar a renda/capita. O IDH sobe de escada com a carga tributária e de elevador com a renda/capita.

E nem vou aqui entrar no mérito se o aumento da carga tributária atrapalha ou não o crescimento da renda/capita. Vou dar de barato que não atrapalha. Mesmo assim, muito mais esforço se deveria dispender no aumento da renda/capita do país do que no estabelecimento de um Estado de bem-estar social com base em uma alta carga tributária. Os ganhos para o IDH seriam muito maiores. Em outras palavras: a vida do brasileiro seria muito mais “digna” se nos dedicássemos mais a enriquecer do que em montar uma rede de proteção social sem dinheiro suficiente. Mesmo porque, este modelo não parece ter dado lá muito certo.

A angústia de Eugênio Bucci

Eugênio Bucci está angustiado com o valor das Big Techs americanas. Afinal, são necessários 3 anos de tudo o que o país produz para comprar essas empresas (pelo menos ele não cometeu o erro básico de comparar “riquezas”).

Destaquei os últimos 3 parágrafos do seu artigo de hoje. Em grande parte, o artigo descreve as explicações usuais para o valor absurdo dessas empresas. Seria basicamente porque dominam a tecnologia do futuro e manipulam bases de dados gigantescas sobre as pessoas a seu favor (esta última explicação é da The Economist). Bucci concorda com essas explicações, mas acha que estão longe de explicar tudo. Ele guarda os últimos parágrafos para descrever a sua explicação do fenômeno. E é essa que nos interessa, pois traduz uma visão comum a muitos.

Segundo Bucci, essas empresas se aproveitam de uma mutação do capitalismo que vem ocorrendo desde meados do século passado: os bens (“coisas úteis”, segundo Bucci) deram lugar aos “signos”. Por signos ele quer dizer marcas, mensagens. Para Bucci, “o capital virou um narrador, um contador de histórias”. E, segundo ele, isso passou a valer mais do que “as coisas úteis”. As Big Techs teriam se apropriado dessa “industrialização da linguagem” que manipula as pessoas, fazendo-as comprar seus “desejos” e não mais suas “necessidades”.

Bem, é difícil até escolher por onde começar. Mas vamos lá.

Bucci se refere a um fenômeno comezinho: o triunfo da publicidade. As pessoas não compram bens, compram marcas. Marcas estas construídas às custas de muito, muito esforço de propaganda ao longo de anos. Sem contar, claro, a qualidade do produto. Mas enfim, a questão é que não se trata de um fenômeno novo. Bucci mesmo diz que vem de meados do século passado. E porque isso aconteceu? Para tanto, precisamos voltar um pouco mais no tempo.

Na década de 20 do século passado, o PIB/capita americano era de cerca de 500 dólares. Hoje, um século depois, é de quase 60 mil dólares. E estamos falando de PIB real, já descontada a inflação do período. O americano médio enriqueceu mais de 100 vezes em um século. Guarde essa informação.

O psicólogo americano Abraham Maslow elaborou uma teoria sobre as necessidades humanas, que ficou conhecida como “pirâmide de Maslow”. A ideia é simples: as pessoas procuram satisfazer primeiramente as suas necessidades básicas, para depois caminharem para o consumo mais sofisticado. Na base da pirâmide de Maslow temos as necessidades fisiológicas (comer, vestir-se, dormir, fazer sexo) e em seguida caminhamos para outras necessidades: segurança, amor e relacionamentos, autoestima e realização pessoal, nessa ordem. Obviamente, o consumo dos mais pobres se limita à base da pirâmide e, à medida que vai enriquecendo, a pessoa vai galgando a pirâmide.

Voltemos ao enriquecimento do cidadão médio americano (e o mesmo vale para todos os países do mundo, em maior ou menor grau). Somos hoje muito, mas muito mais ricos do que éramos há um século. Pessoas pobres em países emergentes hoje têm uma renda e uma qualidade de vida (em termos materiais) superior aos ricos de um século atrás. A renda per capita brasileira hoje é de cerca de 10 mil dólares, cerca de 20 superior à renda nos EUA há um século.

Nesse processo de enriquecimento, galgamos a pirâmide de Maslow. As necessidades das pessoas mudaram com o tempo. Bucci lamenta que o “capitalismo” excite nas pessoas os seus desejos, deixando de lado suas necessidades. Não lhe ocorre que as pessoas já tenham satisfeitas as suas necessidades, e agora querem mais. Todas essas coisas “não úteis” são, na verdade, bem úteis. Aliás, este não é um processo novo.

Quando surgiu a indústria automobilística, carros não eram uma necessidade, eram um luxo. A humanidade poderia viver sem carros, como viveu durante milênios. Mas, uma vez incorporado ao rol de bens que podem ser comprados, o automóvel passou a ser uma “necessidade”. Isso pode ser aplicado a todas as inovações tecnológicas, desde a invenção da roda. Necessário mesmo não é. Afinal, a humanidade viveu sem isso (qualquer inovação) durante milênios.

Mas Bucci, na verdade, contrapõe a mercadoria em si à “ideia de mercadoria”. Ele dá o exemplo do fabricante de tênis que cuida mais da marca do que do próprio tênis. Claro: tênis é uma commodity, qualquer um pode fabricar. Está ali, na base da pirâmide de Maslow (a necessidade de vestir-se). O que as pessoas querem é subir na pirâmide. Não basta um tênis. É preciso comprar o tênis de tal marca, que tem tal qualidade, que é usado por tal atleta. Pode-se criticar essa atitude, mas não se pode negar que exista, e que faz parte da constituição mesma das pessoas. Queremos sempre mais, somos insaciáveis. Essa é a lógica.

O capitalismo não impôs essa lógica, como sugere Bucci. O capitalismo apenas serviu a essa lógica, por isso o seu sucesso. Na verdade, o capitalismo permitiu multiplicar a renda da população global em dezenas de vezes, e esse enriquecimento fez com que as pessoas passassem a exigir coisas mais sofisticadas do que simplesmente “coisas úteis”. Aliás, como dissemos acima, as “coisas inúteis” se tornam úteis e imprescindíveis com o passar do tempo.

Então, a resposta à pergunta angustiada do jornalista (o que afinal produzem essas empresas para valerem tanto) é simples: essas empresas estão no centro da revolução que está levando a humanidade a subir mais um degrau na pirâmide de Maslow. Isso não é novidade. Foi assim com as ferrovias, com o petróleo, com os automóveis. Todas indústrias que estavam no centro de uma revolução. As Big Techs são apenas mais um capítulo dessa história.

E, para finalizar, chamo a atenção para o último parágrafo, em que o autor diz que “o mundo distanciou-se da razão e do espírito”. Bem, há um século o mundo se envolveu em duas guerras mundiais que resultaram em milhões de mortos, inclusive em campos de concentração. E, não muito antes disso, ainda tínhamos escravidão de seres humanos. Não consigo pensar em nada mais longe “da razão e do espírito”. Ao contrário, ao tornar o mundo mais rico, as novas tecnologias permitem que mais pessoas se dediquem “à razão e ao espírito”. Se você acha que vivemos em um mundo brutal, é porque não conhece o que os nossos antepassados viveram.

Contradições do capitalismo

Milhares de jovens protestando ao redor do mundo contra as mudanças climáticas.

Milhares de jovens reunidos no Rock In Rio, evento que deve ter uma pegada de carbono do tamanho do Corcovado.

E a Globo News cobrindo ambos os eventos com o mesmo entusiasmo.

Deve ser a isso que chamam de Contradições do Capitalismo.

Almoço de graça

Um dia, um milionário qualquer, entediado com o dolce far niente da vida de milionário, teve uma ideia: “vou desenvolver um app que envelhece a cara das pessoas. Todos darão gostosas gargalhadas e eu terei com que me ocupar durante um tempo”. E assim nasceu o FaceApp.

Só que não.

O FaceApp, um aplicativo “gratuito”, nasceu como todos os outros aplicativos “gratuitos”: com a intenção de usar a gigantesca base de dados de usuários que acreditam em “coisas de graça” para fazer negócios.

Os “reis” incontestáveis desse tipo de aplicativo são o Google e o Facebook. Mas estes são apenas a face mais saliente de uma indústria de apps “gratuitos”, onde o produto comercializado é o próprio usuário.

Já escrevi aqui que, se o Facebook quisesse, poderia criar uma versão paga do seu app, em que os dados do usuário pagante ficariam a salvo do comércio. Só não lançou porque, provavelmente, avaliou que a demanda ficaria próxima de zero. Aqui, quem pagaria para usar o Facebook? Ou o FaceApp? Pois é…

Fico realmente surpreso com a surpresa expressa na matéria. Uau, estão negociando com os dados dos usuários! Como se houvesse outra forma de monetizar o app. Parece até que o repórter acredita na parábola do milionário entediado.

A conclusão é uma só, como sempre: não há almoço grátis. Se um app é de graça, você está pagando de uma forma oculta. Não quer pagar? Saia da rede.