A macheza do ministro

O planejamento de qualquer empresa, de qualquer porte, passa, necessariamente, pelo aspecto tributário. Todo empreendedor, ao ponderar se vai abrir ou não um negócio, calcula de quanto será o retorno do capital investido. Obviamente, o quanto será pago de imposto pode ser a diferença entre estabelecer ou não o negócio.

Na selva tributária brasileira, as empresas gastam tempo e dinheiro para encontrar formas de minimizar o imposto pago. Inclusive, a sonegação pode ser uma saída, em que o empreendedor pondera o retorno adicional vis-a-vis o risco de ser multado pela Receita. Os seguidos programas Refis diminuem a percepção desse risco.

Benefícios tributários entram nessa conta. Uma empresa tem uma operação em Manaus porque o imposto menor mais do que compensa os custos maiores. E assim por diante, cada empreendedor que se beneficia de uma isenção faz a conta do retorno sobre o capital considerando aquela isenção. Se não fosse pelo benefício, o empreendedor poderia optar por diminuir o seu lucro, aumentar os seus preços ou, simplesmente, descontinuar o negócio, dado que o retorno passou a não compensar o risco do negócio, ou os preços mais altos o inviabilizam.

Benefícios fiscais introduzem distorções na economia. Empresas inviáveis são viabilizadas, o que diminui a produtividade da economia como um todo. Alguns benefícios são justificados por, supostamente, produzirem as chamadas externalidades positivas, que são aumentos de produtividade que extrapolam a empresa que está recebendo o benefício. O difícil é demonstrar esse benefício. Grande parte das isenções fiscais são aprovadas mesmo é na base da saliva dos lobbies.

O ministro da Fazenda afirmou que vai publicar a lista de todos os CNPJs que se beneficiam de exceções tributárias. Vai precisar de toneladas de páginas do diário oficial: o maior benefício tributário do país é o regime do Simples, que beneficia milhares de empresas no país. No Brasil, o limite de faturamento para uma empresa fazer parte do Simples é de quase 1 milhão de dólares, contra uma média de 27,5 mil dólares para os países da OCDE que possuem políticas semelhantes, sendo o máximo de 115 mil dólares. Há algo de errado que não está certo aqui.

Além disso, essa ameaça de publicar os CNPJs, como se fosse estampar os nomes das empresas em um muro da vergonha, é típico de populistas que querem transferir suas responsabilidades. As empresas estão apenas se aproveitando legalmente de leis aprovadas pelo governo brasileiro. Uma parte relevante dos atuais subsídios foi aprovada nos governos do PT, sempre em busca do Santo Graal do desenvolvimento via incentivos específicos, que os luminares petistas avaliaram como essenciais para o crescimento do país. Agora vem o ministro da Fazenda apontar o dedo, como se essas empresas fossem criminosas. Menos, Haddad, menos.

O fim de benefícios tributários tornaria o país mais produtivo no longo prazo, mas, no curto prazo, pode inviabilizar não poucos empreendimentos. Assim, se Haddad espera arrecadar mais para já eliminando esses benefícios, talvez seja o caso de refazer as contas. Esses CNPJs podem simplesmente desaparecer, e o aumento de arrecadação pode não passar de uma miragem.

Enfim, o ministro da Fazenda quer aumentar a arrecadação de maneira indolor para a sociedade, elegendo alguns inimigos e dando uma de machão. Desconfio que vai bater de frente com a realidade mais cedo do que mais tarde.

Mal informado ou mal intencionado?

Mais um pouco de Haddad, em uma entrevista em que não poupou o leitor de gastar toda a cota de vergonha alheia do dia. Depois de propor um paralelo descabido entre BC e governo (que analisei no post anterior), Haddad avança para o seu tema preferido: o “abuso dos subsídios”. O ministro da fazenda quer estampar, “CNPJ por CNPJ”, as empresas que mamam nas tetas do Estado. Com isso, pretende arrecadar R$ 150 bilhões a mais, ou 1,5% do PIB. Vejamos.

Felipe Salto e Josué Pellegrini coordenaram a publicação de um livro muito útil, “Contas Públicas no Brasil”. O capítulo 8, Gastos Tributários e Subsídios na União, de autoria do próprio Pellegrini, abre a tal “caixa-preta” que Haddad afirma existir com relação aos subsídios. Abaixo, eu colo os gráficos e tabelas do capítulo. Os números mais recentes são de 2019, mas já dá para ter uma ideia.

A soma de gastos tributários e subsídios era de 4,9% do PIB em 2019. Em dinheiro de hoje seria algo como R$ 500 bilhões, não R$ 600 bilhões como Haddad menciona. Cabe destacar que esse percentual chegou a 6,6% do PIB em 2015, no auge das “políticas desenvolvimentistas” do PT. O governo Temer reduziu esses gastos em mais de 1,5% do PIB sem precisar bater com a mão no peito se dizendo muito macho e sem publicar CNPJs.

Mas é na lista de gastos tributários e subsídios que podemos tentar entender até onde vai a macheza do ministro. O que ele pretende cortar? Entre os gastos tributários, no regime do Simples, que é o maior gasto, ele já disse que não vai mexer. Isenções do IR da pessoa física, segundo maior gasto, também não (são CNPJs, lembra?). O próximo da lista são entidades filantrópicas. Ele vai pra cima das igrejas e hospitais? Quarto maior item, zona franca de Manaus, também está fora. Quinto maior gasto, agro. Boa sorte, ministro. Sexto maior item, mais isenções da pessoa física, fora. Sétimo maior item, desoneração da folha, que o ministro também já disse que não vai mexer. Até aqui, já foram 75% dos gastos tributários, sobram mais ou menos 1% do PIB em diversos programas, incluindo setor automotivo, MEI e PROUNI. Vamos ver.

Com relação aos subsídios, a maior parte refere-se a contratos passados, que continuam custando caro para a União, a maior parte deles assinados durante os governos do PT, como o PSI, o Minha Casa Minha Vida, o FIES e os empréstimos do BNDES. Ou seja, não tem como não pagar.

Das duas uma: ou Haddad está muito mal informado, ou está querendo dar um passa moleque na sociedade. Não sei o que é pior.

Escolhas

O problema de fundo nessa história da taxação dos sites chineses é a enorme, brutal, diferença de carga tributária entre as empresas chinesas e brasileiras.

Brasil e China têm renda per capita semelhante. Ambos são considerados países de renda média. A carga tributária chinesa, no entanto, é muito menor que a brasileira. Segundo a OCDE, a carga tributária do Brasil é de quase 32% do PIB, enquanto a da China é de apenas 20% do PIB. Como se nivela essa diferença? Claro, com imposto sobre importação.

Em um lance de relações públicas, a Shein anunciou a “criação” de até 100 mil empregos, por meio de parcerias no setor têxtil. Ou seja, a Shein abriria mão de sua vantagem competitiva para produzir, no Brasil, as mesmas mercadorias que produz na China e vende aqui dentro sem imposto de importação. Acredite quem quiser.

Uma das poucas vantagens de ser mais velho é ter memória. Em 2011, início do governo Dilma, esse número mágico de “100 mil empregos” foi anunciado pela Foxconn, fabricante taiwanesa de iPhones e iPads.

Na época, o ministro da Ciência e Tecnologia, Aloísio Mercadante, estava radiante com a promessa, assim como Haddad hoje. Adivinha quantos empregos foram criados? Pois é. Eu conto essa história neste post.

Somos um país que fez uma escolha: alta carga tributária para bancar uma generosa previdência social (a previdência representa quase metade de todos os gastos do governo). Para um país jovem e de renda média, essa é a fórmula da baixa competitividade global. O resultado é que os brasileiros vivem reféns de um sistema que precisa taxar o consumo de maneira desproporcional, tornando nossos produtos os mais caros do mundo. Quando surge um site chinês que vende e entrega sem o imposto, o brasileiro avança como se fosse um oásis no deserto. Não deixa de ser injusto: afinal, esse mesmo brasileiro usufruirá da previdência generosa, sem pagar por ela.

A Shein vai criar 100 mil empregos assim como a Foxconn criou: só na promessa. Não tem lógica econômica em produzir no Brasil, enquanto o chinês puder exportar sem imposto.

Deixando escapar os jabutis

Todos já descobriram o segredo de polichinelo desse novo “arcabouço fiscal”: o ajuste depende do aumento da arrecadação. Como não haverá novos impostos e nem aumento de alíquotas, resta saber como esse aumento de arrecadação ocorrerá. Transcrevo abaixo a fala do ministro, durante o anúncio do arcabouço.

Nós temos que fazer quem não paga imposto, pagar. E nós temos muitos setores que estão demasiadamente favorecidos com regras que foram sendo estabelecidas ao longo das décadas, e que não foram revistas por nenhum controle de resultado. Muitas caducaram do ponto de vista de eficiência, que vão ser revogadas, e nós vamos, ao longo do ano, e já começando na semana seguinte à apresentação do arcabouço, nós já vamos encaminhar para o Parlamento as medidas saneadoras que vão dar consistência para o resultado previsto nesse anúncio. Nós contamos, portanto, que, aqueles setores que estão muito beneficiados, ou setores novos que sequer estão regulamentados (falava-se muito lá na Câmara e no Senado sobre essa questão das apostas eletrônicas, que vai ser regulamentado), mas esse é um item, esse é um item de uma lista extensa de benefícios indevidos, de fraudes, de todo tipo de coisa que vocês possam imaginar, que vão ser revistas pra fechar os ralos que a gente chama de patrimonialismo brasileiro. Nós vamos ter que enfrentar a agenda contra o patrimonialismo e acabar com uma série de abusos que foram cometidos contra o Estado brasileiro, contra a base fiscal do Estado brasileiro ao longo dos anos. Isso não vai penalizar absolutamente ninguém que está com seus tributos em dia, mas sim há um esforço mundial, mundial, isso não é do Brasil, isso é um caso mundial, de acabar com os abusos que grandes empresas muitas vezes cometem contra os seus Estados nacionais que deram origem a elas. Está cheio de problema, que nós já mapeamos, uma equipe aqui da Receita e do Tesouro, passando em revista a legislação pra que nós soubéssemos identificar onde é que estão os grandes problemas, os chamados grandes jabutis. Não estamos falando dos pequenos jabutis, estamos falando dos grandes jabutis. Esses jabutis realmente é uma manada, um dos maiores rebanhos existentes hoje nesse país é a quantidade de jabuti que foi entrando no sistema tributário e que tornou esse modelo caótico. E isso não tem nada a ver com a reforma tributária que está em curso, que vai sanear outros tantos problemas.”

O plano, portanto, é enfrentar os diversos lobbies presentes no Congresso, para que setores econômicos beneficiados com incentivos fiscais deixem de sê-lo. O problema desse tipo de iniciativa, além dos lobbies, é como os agentes econômicos vão reagir ao fim dos subsídios. Três coisas podem ocorrer:

1) A empresa diminui a sua margem de lucro, mantendo o mesmo volume de vendas, o que aumenta o imposto arrecadado ou

2) A empresa mantém a sua margem de lucro, aumentando o preço do produto, o que pode fazer, a depender da elasticidade, com que diminua a demanda, o que pode ocasionar, inclusive, uma diminuição do imposto arrecadado. No limite, a empresa pode até desaparecer, pois o ponto de equilíbrio entre oferta e demanda com uma rentabilidade razoável pode não ser atingido ou

3) A empresa encontra outra maneira de operar, dentro dos meandros caóticos do sistema tributário brasileiro, mantendo seus lucros sem mexer nos preços dos seus produtos ou serviços.

Sempre que se mexe com impostos, é preciso contar com a defesa dos agentes econômicos, que sempre buscarão formas de maximizar seu lucro. E, no limite, cessarão de fornecer o produto ou serviço. Por isso, qualquer ajuste fiscal que tenha como base aumento de arrecadação é muito incerto. Este será o caso, como na piada, em que o ministro deixa escapar os jabutis.

Preparem seus bolsos

Estã aí, na íntegra, a entrevista concedida pelo “assessor econômico” do PT, Guilherme Mello. A não ser pelo plano concreto de por um fim à regra do teto de gastos, o resto são somente generalidades bem intencionadas.

O economista da Unicamp não revela qual a regra que substituirá o teto. Sua desculpa é de que não quer “queimar a largada”, mencionando algo que pode, depois, ser bombardeado no Congresso. Ok, ainda que um eventual governo Lula não vai conseguir escapar do bombardeamento de qualquer ideia.

De qualquer modo, não há muitas alternativas. Tirando o teto de gastos, restam somente outras duas regras possíveis: limite de dívida e superávit primário. Limite de dívida é uma fria, pois depende do nível de juros, que não está sob o controle do governo. E superávit primário é, hoje, uma regra mais dura do que o teto de gastos, pois produzimos déficit estrutural. A não ser que se aumente significativamente a carga tributária. E é esse, provavelmente, o “segredo de polichinelo” que o economista do PT não quer revelar antes das eleições.

Todo mundo quer dinheiro para coisas nobres, como investimentos e gastos sociais. A má notícia é que a atual carga tributária não comporta todos os desejos dos brasileiros, e nem tampouco os financiadores da dívida brasileira estão dispostos a aumentar a sua exposição ao governo brasileiro. Os governos Temer e Bolsonaro, bem ou mal, optaram por tentar controlar as despesas. Um governo do PT tentará aumentar a carga tributária. Preparem seus bolsos.

Lula é diferente de Boric e Petro

O Brazil Journal, um blog dedicado a finanças e economia, publicou um artigo analisando a escolha dos ministros da fazenda pelos recém-eleitos presidentes do Chile e da Colômbia, Gabriel Boric e Gustavo Petro. Boric nomeou Mario Maciel, ex-presidente do BC e um dos formuladores da regra de superávit primário estrutural em vigor no Chile. Petro acaba de nomear José Antônio Ocampo, PhD por Yale e que, apesar de ter ideias desenvolvimentistas, aparentemente preocupa-se também com o equilíbrio fiscal.

O artigo então continua, perguntando qual é a de Lula? Será que seguiria o exemplo de suas contrapartes de esquerda no Chile e na Colômbia e também nomearia um nome mais alinhado ao mainstream econômico ou apostaria todas as fichas em algo mais radical, a lá 1o mandato de Dilma Rousseff? A sinalização até o momento, estressa o artigo, é na direção da 2a opção. Todas as manifestações de Lula, até o momento, são no sentido de demonizar o capital e todas as reformas que procuraram equilibrar as contas públicas ou aumentar a produtividade da economia. Segundo o artigo, “la garantia soy yo” é a única sinalização de Lula até o momento para o mundo empresarial e financeiro.

Creio que, antes de comparar Lula com Boric ou Petro, é necessário entender a diferença da situação entre o potencial próximo presidente brasileiro e as suas contrapartes do Chile e da Colômbia, além da óbvia constatação de que os três são de esquerda.

O artigo constata que um movimento óbvio de Boric e Petro é o aumento da carga tributária nos seus países para financiar programas sociais. No Chile, o governo já apresentou uma proposta de aumento de impostos no valor de 4,1% do PIB, enquanto na Colômbia, o recém-nomeado ministro da fazenda escreveu recentemente artigo defendendo um aumento da carga tributária de 3% do PIB. O mesmo poderia fazer o próximo presidente brasileiro?

Segundo a OCDE, a carga tributária de Chile e Colômbia é de, respectivamente, 19,3% e 18,7% do PIB. No Brasil, segundo o mesmo levantamente, a carga tributária é de 31,6%, a maior da América Latina e comparável a países como Nova Zelândia e Reino Unido, e apenas 2 pontos percentuais a menos do que a média da OCDE. Se aumentasse a carga tributária em 3 pontos percentuais, o Brasil alcançaria países como Canadá e Portugal. A decisão de aumentar a carga tributária no Chile e na Colômbia é relativamente fácil. No Brasil, nem tanto.

Mas a coisa não para por aí. Segundo o FMI (previsões para 2022), o Chile tem uma dívida bruta de 38% do PIB e seu déficit nominal (despesas do governo + juros da dívida) é de 1,5% do PIB. A situação da Colômbia é um pouco pior: dívida bruta de 60% e déficit nominal de 4,5% do PIB. Enquanto isso, a dívida bruta do Brasil é de 92% do PIB com déficit nominal de 7,5% do PIB. Ou seja, o Brasil precisaria estar subindo a carga tributária em 3 pontos percentuais só para igualar o déficit da Colômbia ou em 6 pontos percentuais só para igualar o déficit do Chile. Em resumo: saímos atrás no grid de largada para aumentar gastos sociais e o nosso carro é ben mais pesado. Não à toa, Chile e Colômbia são investment grade e, portanto, gozam do privilégio de poderem, pelo menos por enquanto, pagar taxas de juros mais baixas do que o Brasil sobre suas dívidas.

Mas a situação de Lula é diferente de suas contrapartes do Chile e da Colômbia ainda sob um outro aspecto: enquanto Boric e Petro são novidades, Lula é velho conhecido do mercado brasileiro. Boric é o primeiro presidente de extrema esquerda em um país que alternou governos de centro-esquerda e de centro-direita desde que Pinochet deixou o poder. Petro é o primeiro presidente de esquerda na Colômbia. Ambos precisam pisar em ovos para ganhar a confiança dos mercados neste primeiro momento. Lula não. Lula conta com um histórico de grande sucesso na administração da economia (vamos, por ora, esquecer o desastre Dilma).

Lula se aproveita dessa memória para ampliar a ambiguidade sobre a sua futura agenda como presidente. Enquanto diz “la garantia soy yo”, não perde oportunidade de deixar clara a sua visão tacanha sobre o processo econômico. Em minha série sobre a economia brasileira na era PT, mostro como o desastre Dilma foi gestado no segundo mandato de Lula. Estava tudo lá, mas o desastre somente se consumou quando o dinheiro acabou.

Portanto, ao contrário de Boric e Petro, Lula, durante a campanha e se eleito, conta com um voto de confiança do mercado. Não precisará, portanto, ganhar uma confiança que falta a Boric e Petro. E isto poderá se traduzir em iniciativas pouco ortodoxas já no início de seu governo, quando então os participantes do mercado começarão, aos poucos, a desfazerem a imagem que têm de Lula do 1o mandato. O pior é que, como vimos, não há margem de manobra. Qualquer iniciativa diferente de um grande e profundo programa de reformas estruturais está fadado a aprofundar muito rapidamente o buraco em que estamos.

O populismo é árvore frondosa

Editorial do Estadão repercute matéria do mesmo jornal, dando conta do aumento do custo da eletricidade nos últimos 7 anos, muito acima da inflação média.

A eletricidade, assim como a maior parte dos bens de consumo no país, é altamente taxada. É a escolha que fizemos: taxar o consumo ao invés de taxar a renda, como acontece nos países mais desenvolvidos. A taxação sobre o consumo é mais regressiva do que sobre a renda, pois alcança igualmente pobres e ricos. Todos pagam o mesmo imposto, pois não há diferenciação de preços por tipo de consumidor.

No caso da eletricidade, no entanto, há sim diferenciação de preços. Consumidores rurais, de energia solar e de baixíssima renda contam com subsídios, distribuídos por entre aqueles que não têm direito à tarifa diferenciada. Estes subsídios funcionam como um imposto adicional. Se estivessem no orçamento ao invés de na conta de luz, poderia significar um desconto de 9% na conta. Mas é mais fácil aprovar um subsídio que ninguém vê do que achar espaço no orçamento.

Além disso, estamos pagando a conta de populismos do passado. A MP 579, com a qual a então presidente Dilma Rousseff baixou as contas de luz em 20% em 2013, não passou de um exercício de prestidigitação: o custo da eletricidade não baixou um real, foi apenas adiado com juros e correção. Ainda estamos pagando essa conta, na forma de encargos na CDE, Conta de Desenvolvimento Energético, um nome desenvolvimentista para o cemitério aonde aportam todos os esqueletos do setor.

E a CDE já está preparando mais covas, com os jabutis aprovados pela MP da privatização da Eletrobrás. Construção de termoelétricas em lugares estapafúrdios e reserva de mercado para pequenas hidroelétricas prometem novos encargos a serem pagos pelo consumidor de eletricidade do futuro.

No Brasil, o populismo é árvore frondosa, que abriga sob sua sombra governos de todas as cores.

Bodes expiatórios convenientes

O presidente da Petrobras, general Silva e Luna, publica hoje artigo explicando o preço da gasolina. Dos R$ 6,10 na bomba, apenas R$ 2,00 seriam “culpa” da empresa. Para os restantes R$ 4,10, os “culpados” são os intermediários (R$0,60), a mistura do etanol (R$ 1,00) e os impostos (R$ 2,50). Desses R$ 2,50, R$ 1,65 correspondem ao ICMS. E é aí que o presidente da maior empresa brasileira abandona a análise técnica e começa a fazer política. Como um analista distante, pontifica que os impostos são “excessivos”. Os impostos dos outros, claro.

Bolsonaro, que Silva e Luna emula nesse artigo, vem usando os governos estaduais como bode expiatório para o preço dos combustíveis. Faz sentido? Vejamos.

Em números redondos, a arrecadação do ICMS nos primeiros 4 meses desse ano foi de R$ 200 bilhões. Usando uma regra de três simples, podemos estimar em R$ 600 bilhões a arrecadação anual com esse imposto estadual. Os combustíveis representam mais ou menos 15% desse total, ou R$ 75 bilhões. Se os governos estaduais abrissem mão do ICMS sobre combustíveis, esta seria a arrecadação perdida. É isso que o governo federal está sugerindo.

Vamos voltar um pouco para os fundamentos do sistema arrecadatório brasileiro. A Constituição de 88 estabeleceu que os estados financiariam as suas atividades com impostos incidentes sobre o comércio, e os municípios com os impostos incidentes sobre os serviços. São justamente os impostos que tornam as mercadorias mais caras. Não somente os combustíveis ficam mais caros, mas eletricidade, comida e uma longa lista de etceteras.

Já a União tributa com impostos que ficam mais “escondidos” nos balanços das empresas: basicamente o IPI, PIS/Cofins, os impostos sobre a folha de pagamento e o IR sobre o lucro. A LDO de 2022 prevê cerca de R$1,3 trilhões de arrecadação desses impostos mais o IR sobre a pessoa física. Portanto, o dobro da arrecadação do ICMS. Esses impostos também pesam sobre os combustíveis, pois oneram a atividade da Petrobras, mas não “aparecem” na nota fiscal.

E mais: os estados usam essa arrecadação para pagar professores, polícia e uma longa lista de serviços mantidos pela esfera estadual. E não têm o poder que a União possui de se endividar. A LDO de 2022 prevê um déficit de R$ 170 bilhões na esfera federal, que será coberto com emissão de dívida. Os estados não podem fazer isso. O que Bolsonaro sugere para cobrir o rombo de R$ 70 bilhões com a suposta não cobrança de ICMS sobre combustíveis? O governo federal arcaria com as despesas correspondentes? Qual a sugestão?

O Brasil tem, de longe, a maior carga tributária entre as economias emergentes, para não dizer pobres. Se o nome do tributo é ICMS, IPI ou IR, pouco importa. O fato é que o governo, em suas três esferas, é o grande sócio oculto do brasileiro. Bolsonaro e seus bate-paus querem nos fazer crer que os únicos culpados são os governadores. Não são. Ou, pelo menos, não são só eles. A única conversa séria possível sobre o tema é racionalizar os gastos do Estado brasileiro. Mas isso dá muito trabalho. Bolsonaro e Silva e Luna, que viveram à custa de nossos impostos a vida inteira, preferem usar truques de ilusionismo, jogando a culpa em bodes expiatórios convenientes. Acredita quem quiser.

O efeito sobre a carga tributária do novo IR sobre empresas e dividendos

O governo mandou para o Congresso um projeto de lei para reformular o imposto de renda. Afirma que o projeto é neutro com relação à carga tributária, ou seja, não há aumento ou diminuição de imposto, somente uma redistribuição.

Analisei o projeto. Podemos dividir as iniciativas em duas categorias: aquelas que aumentam o imposto e aquelas que diminuem o imposto. Vamos listá-las:

Iniciativas que aumentam imposto:

  • Tributação de 20% sobre dividendos de empresas e fundos imobiliários
  • Limitação do uso do formulário simplificado para declaração do IR
  • Pagamento de bonificação em ações não poderão ser deduzidos pelas empresas- Vedação de dedução de juros sobre capital próprio para cálculo do imposto
  • Novas regras de tributação de ganho de capital em venda de empresas
  • Tributação sobre a rentabilidade de fundos exclusivos

Iniciativas que diminuem imposto:

  • Redução da alíquota das empresas de 34% para 29%
  • Aumento da faixa de isenção do IR para pessoa física
  • Unificação das alíquotas sobre investimentos, em 15%
  • Atualização de valor dos imóveis (alíquota cai de 15% para 5%)
  • Come-cotas anual ao invés de semestral
  • Compensação de resultados negativos entre investimentos de naturezas diferentes

Realmente, é difícil afirmar que este conjunto de iniciativas vai aumentar ou diminuir a carga tributária. O governo não forneceu o memorial de cálculo dessa estimativa.

Uma estimativa relativamente fácil de fazer é o efeito sobre a arrecadação da pessoa jurídica, considerando somente a mudança de alíquota e sobre o pagamento de dividendos. Hoje, temos o seguinte (o exemplo a seguir assume distribuição de 100% do lucro como dividendos):

  • Lucro: 1.000
  • IR (25%): (250)
  • Lucro líquido: 750

Depois da reforma, teríamos o seguinte:

  • Lucro: 1.000
  • IR (20%): (200)
  • Lucro líquido: 800
  • IR sobre dividendos (20%): (160)
  • Dividendos depois do IR: 640

Então, antes da reforma, o acionista receberia 750 e, depois da reforma, 640. Uma redução de 14% sobre a receita do acionista.

Já o governo arrecadava antes 250, e passou a arrecadar 200+160=360, um aumento de 44%. A arrecadação do IR da pessoa jurídica totalizou R$ 157 bi nos últimos 12 meses, até abril. Portanto, temos um aumento potencial da arrecadação, pelo conjunto dessas duas medidas, de aproximadamente 70 bi (44%x157), ou quase 1% do PIB. O conjunto das outras medidas deveria significar uma redução de arrecadação nessa mesma magnitude, para que o projeto fosse neutro para a carga tributária.

Uma coisa é certa: o governo não mandaria um projeto que significasse diminuição da carga tributária. Deve ter alguma gordura, para que possa haver negociação. Minha aposta é que a carga tributária vai aumentar. Não tem outro jeito de colocar a dívida pública em trajetória declinante sem aumentar impostos, dado que não queremos cortar despesas. A não ser que contemos com inflação mais alta, como ocorreu neste ano.

O colo do pobre é onde sempre a coisa acaba

Qualquer sistema tributário justo deveria prever a mesma alíquota incidindo sobre cada real de valor agregado por uma atividade econômica, qualquer que seja a sua natureza. Se diferenciação houvesse, deveria existir para favorecer os consumidores de renda mais baixa. Este deveria ser o princípio de qualquer sistema tributário progressivo.

O setor de servidos está estrilando com os projetos de reforma de tributária que estão em estudos. A alíquota única significará aumento da carga tributária para as empresas desse setor e diminuição para as empresas do setor industrial. A conclusão é óbvia: se uma alíquota única prejudica o setor de serviços, isso só pode significar que o sistema atual privilegia esse setor.

Faz sentido continuar privilegiando o setor de serviços? Vejamos.

A Cebrasse, cujo presidente foi ouvido na reportagem, é uma central de sindicatos. Visitando seu site, podemos ter uma ideia da natureza das empresas representadas: escolas particulares, lava-rápidos, associações de dentistas e médicos, segurança privada, terceirização de mão de obra para condomínios, serviços para o transporte aéreo, empresas de turismo, pet shops, etc. Veja se nessa lista existe algum serviço consumido por favelados ou sertanejos do interior do Nordeste. Vale subsidiar esse setor?

Isso sem contar que uma parte relevante das empresas do setor estão no regime do Simples, o que já representa um senhor subsídio e que, infelizmente, não será tocado pela reforma. O choro é pelas grandes empresas do setor.

Em outro ponto da reportagem, o presidente da Confederação de Serviços defende a CPMF para desonerar a folha de pagamentos. Sempre uma solução para passar para o pobre a conta do serviço consumidos pelos mais ricos.

O presidente da Cebrasse diz que “a conta está estourando no colo” do setor. Sim, verdade. Chegou a hora de desonerar os produtos da cadeia de produção industrial e onerar os serviços consumidos preponderantemente pelos mais ricos. Chega de a conta estourar no colo dos mais pobres.

P.S.: eu trabalho no setor de serviços.