Eu sei o que você fez no verão passado

O ex-jogador e comentarista da Rede Globo Walter Casagrande está sendo exaltado por todos os bem-pensantes do país por ter colocado a boca no trombone ao comentar a rescisão do contrato de Robinho com o Santos.

Foram muitas e importantes as coisas que Casagrande falou durante um programa na Globo.

Casagrande falou, abre aspas, “o vice-líder é preso com dinheiro na cueca”.

Notem que o comentarista não falou “o senador”. As palavras foram “o vice-líder”, ligando claramente o episódio ao governo. Não vimos a mesma indignação quando um assessor do então deputado estadual José Guimarães, irmão do então presidente do PT, José Genoíno, foi pego, em 2005, com 100 mil dólares nas mesmas partes íntimas. Aliás, não vimos a mesma revolta santa nos episódios do Mensalão e do Petrolão.

Casagrande falou, abre aspas, “a Carol Solberg, por se manifestar politicamente, a CBV faz censura”.

Mas em 2017, em um programa no SportTV, o mesmo Casagrande afirmou a respeito de jogadores que apoiavam publicamente Bolsonaro: “Vivemos numa democracia e todos tem direito de dar opinião, só que é preciso saber do que está falando. Pode apoiar qualquer candidato, ser a favor de qualquer político, mas a partir do ponto que você apoia publicamente, tem de saber por que está apoiando. Porque você é um ídolo e influencia um monte de pessoas.” Ou seja, se não apoia um político de que eu gosto, não sabe do que está falando.

Casagrande falou, abre aspas, “Robinho foi condenado a 9 anos de prisão na Itália. Recorreu, mas está condenado”.

Mas em 2018, não vimos a mesma indignação quando o PT lançou a candidatura de um político condenado não em uma, mas em duas instâncias. Recorreu, mas estava condenado (e preso).

Por fim, Casagrande repetiu o refrão da música de Milton Nascimento: “Não posso aceitar sossegado qualquer sacanagem ser coisa normal”.

Aos ouvidos de quem pousou no país ontem, essas palavras traduzem uma indignação cívica exemplar. Para quem, no entanto, conhece o que Casagrande fez no verão passado, sabe que tudo isso não passa de proselitismo político.


PS.: Alguns comentários a respeito do meu post abaixo merecem um esclarecimento formal.

Não tinha, em hipótese nenhuma, a intenção de relativizar a prática do estupro, ou a crítica que Casagrande fez de tal prática. Reli várias vezes o texto, e realmente não encontrei nenhum elemento que pudesse levar a essa conclusão. O problema, parece-me, foi a crítica à pessoa do comentarista ter se confundido com uma crítica ao que ele falou a respeito do assunto estupro.

O fato é que o próprio Casagrande extrapolou o assunto, citando outros fatos que não tinham nada a ver com o affair, e botando tudo no balaio do “qualquer sacanagem ser coisa normal”. Quando ele fez isso, usando dois outros episódios eminentemente políticos, Casagrande puxou o assunto para a política. Se tivesse se circunscrito ao tema Robinho/estupro, certamente o meu post seria de elogio.

Parafraseando Casagrande, “não posso aceitar qualquer politicagem como coisa normal”. Repito: Casagrande usou um problema sério, que merece nosso total repúdio, para fazer proselitismo político barato.

Use o seu palanque

A atleta Carol Solberg resolveu lacrar em entrevista à Sport TV, e soltou um “Fora Bolsonaro!” ao vivo e em cores. A Confederação Brasileira de Vôlei soltou nota de repúdio e estuda punição. A atleta e seus apoiadores defendem a “liberdade de expressão”, e acusam a CBV de usar dois pesos e duas medidas, na medida em que teriam permitido que os atletas Wallace e Mauricio fizessem propaganda para o então candidato Bolsonaro em uma foto da seleção brasileira de vôlei em 2018. Reproduzo abaixo a foto, a nota da CBV à época e a nota da CBV a respeito da manifestação da atleta Carol.

O que dizer?

Pra começo de conversa, liberdade de expressão é inegociável. Todo ser humano tem liberdade para expressar suas opiniões, desde que não seja apologia a crime. Não posso, por exemplo, defender o assassinato do Lula ou do Bolsonaro, isso está fora da esfera de “liberdade de expressão”.

Pois bem, tendo pacificado este ponto, resta saber se há outras limitações à liberdade de expressão. Sim, há. A palavra “expressão” tem como pressuposto alguém falar e alguém ouvir. Robinson Crusoé tinha uma liberdade de expressão absoluta, mas era inútil, pois não havia ninguém que o escutasse. Exercer a liberdade de expressão só faz sentido se há outras pessoas que escutem a sua opinião.

Esta é a chave para entender a limitação intrínseca da liberdade de expressão: a expressão de sua opinião tem efeitos diferentes a depender do palanque de que você dispõe.

Um exemplo: eu tenho uns 2 mil seguidores nessa página do Facebook. O que eu falo aqui atinge essas duas mil pessoas e talvez um pouco mais, a depender de quantos compartilhamentos são feitos. Esse é o meu palanque, eu falo o que eu quero. Ao mesmo tempo, trabalho em uma empresa de investimentos, onde escrevo os relatórios para os clientes. A empresa tem milhares de clientes. Posso escrever o que eu quero? Obviamente não. O palanque não é meu, é da empresa. Foi ela que construiu essa audiência. A minha expressão, ao me comunicar com essas pessoas, é a expressão da empresa. Os clientes são dela, não meus.

Portanto, a liberdade de expressão é limitada pelo palanque que cada pessoa conseguiu construir. Felipe Neto, por exemplo, fala todas as bobagens do mundo para os seus milhões de seguidores, e a ninguém ocorre limitar a sua liberdade de expressão. Afinal, esse palanque é dele, ele é que decide o que vai e o que não vai falar.

Vamos ao caso da moça do vôlei e a nota da CBV. Atletas, de maneira geral, só estão lá porque existe toda uma estrutura montada na base de patrocínios. Se a Carol gritasse “Fora Bolsonaro!” em sua página no Instagram, a polêmica seria zero. Mesmo porque, poucos teriam ouvido. O palanque construído pela atleta é muito pequeno. O que ela fez? Usou a audiência construída pela CBV para expressar a sua opinião. É óbvio que não dá. A CBV pode sim puni-la, pois é ela que manda no seu palanque.

O paralelo com o caso Wallace/Maurício é adequado, ainda que tenha sido distorcido pela atleta. A CBV não “defendeu a liberdade de expressão” dos dois atletas e ficou por isso mesmo. O que a CBV fez, à época, foi dizer que os atletas podem falar o que quiserem em suas redes sociais, mas não usar o palanque da seleção brasileira para fazer política. Ambos foram punidos com advertência, provavelmente o que vai acontecer com Carol Solberg.

Entidades esportivas não costumam gostar de ceder o seu palanque para manifestações políticas. Por sua própria natureza, a política separa em campos opostos, e a última coisa que essas entidades querem é divisão e boicote de patrocinadores e espectadores. Por isso, senhores atletas, usem seus perfis pessoais para manifestações políticas e evitem usar os campeonatos organizados pelas entidades esportivas. Esses palanques não lhes pertencem.