O leitor que lute

Essas notinhas de jornal, muitas vezes, são fruto de uma troca mutualmente vantajosa: o repórter tem acesso a dados “exclusivos”, e o órgão governamental ganha um espaço simpático no jornal. E aí você pergunta: onde fica o leitor nessa troca “mutuamente vantajosa”? Bem, aí já é demais exigir que as três partes ganhem, não é mesmo?

Vamos fazer a pergunta óbvia: qual foi o efeito real desse “grande aumento de desembolso” do BNDES? A julgar pela evolução da produção industrial, zero. Literalmente. A produção industrial cresceu zero nos últimos 12 meses em relação aos 12 meses anteriores. E pior: decresceu 0,2% nos primeiros nove meses do ano em relação ao mesmo período do ano passado. Justamente o período em que os desembolsos do BNDES “explodiram”.

Essa é a análise óbvia a ser feita, mas talvez seja pedir demais para o repórter que precisa estar de bem com o poder para continuar a ter acesso a dados “exclusivos”. O resultado são essas notinhas chapa-branca que passam a ilusão de que o governo está trabalhando.

A cereja do bolo é a menção à CNI, que teria recebido “com entusiasmo” um pacote para “fortalecer o setor”. Bem, só faltava os industriais rechaçarem dinheiro farto e barato do governo. A julgar pelos resultados até o momento, essa “explosão” de recursos do BNDES deve ter parado onde sempre pararam: na linha de lucros das empresas, sem qualquer aumento de produção.

A inflação do governo

Claudia Safatle repercute estudo da CNI sobre a inflação brasileira nas últimas duas décadas (1999-2019). A conclusão é bem interessante.

Os três grupos de preços que mais subiram nos últimos 20 anos foram “serviços médicos e hospitalares” (374%), “energia elétrica” (358%) e “transporte público” (352%). O IPCA nesse período acumulou aumento de 240%.

Nestes três grupos temos o dedo do governo. No primeiro, além dos preços dos planos de saúde serem regulamentados pela ANS, o número de médicos é limitado pela autorização governamental para a prática da profissão. Nos outros dois grupos, os preços ou são diretamente estabelecidos pelos governos (no caso do transporte público), ou o são indiretamente, através da agência reguladora e das regras dos leilões de energia. Ainda no caso de preços regulados, uma parte do aumento dos preços teve a ver com a redução de subsídios por parte dos governos (no caso do transporte público) ou aumento de impostos embutidos (no caso da energia elétrica). Ou seja, o aumento de preços serviu para financiar os governos.

Dizem que se o capitalismo fosse deixado nas mãos dos mercados, viveríamos em uma selva. No caso brasileiro, pelo menos seria uma selva mais barata.