O Ó do Borogodó

Essa é o ó do borogodó, literalmente.

O titulo da matéria é enganoso: o bar não vai necessariamente acabar, ele simplesmente vai precisar mudar de lugar. Eu sei, é uma dor de cabeça e tals. Mas o proprietário está no seu direito de dispor de sua propriedade, no caso, o imóvel. Ou não?

Digamos que a prefeitura decida que o bar não pode ser despejado. Qual seria o ânimo de outros proprietários alugarem seus imóveis para bares e restaurantes que poderiam, no futuro, reivindicarem o mesmo tratamento? O efeito será a falta de imóveis para esse tipo de comércio. Eu, fosse proprietário, evitaria esse risco de agora em diante.

Não sei quanto custa uma ida ao Ó. Uma visita a barzinhos da Vila Madalena não costuma sair por menos do que R$ 100 por pessoa, ainda mais com o couvert artístico. Ou seja, a frequência é de gente bonita, muito ligada na cultura raiz do país, desde que seja em espaço gourmet. Para manter esse privilégio, vão impedir que centenas de empregos para pessoas de baixa renda sejam criados na construção de um prédio no lugar, além de impedir que a prefeitura arrecade impostos que poderiam ser usados em programas sociais. Tudo em nome do direito de ouvir música em um só e determinado lugar.

Tenho certeza de que um assunto recorrente nas mesas do Ó é a desigualdade de renda, e de como as elites do país são agarradas aos seus privilégios. Privilégios que têm muitas facetas, algumas tão sutis que nem os privilegiados notam.

Agora vai?

Em 6 de junho último, por ocasião do lançamento do programa de descontos para a compra de automóveis e caminhões, escrevi o seguinte:

“Já o programa para ônibus e caminhões tem uma pegada ESG: os beneficiários precisarão sucatear seus veículos usados. Pergunto: quem, com um ônibus ou caminhão em estado de sucateamento, tem dinheiro para comprar um veículo 0km, mesmo com algum desconto? Não conheço esse mercado, mas parece um pouco puxado.”

Bem, mesmo para quem não conhece esse mercado, parece de bom senso que quem tem um pau véio não tem dinheiro para saltar para um caminhão zero, e quem tem o dinheiro para comprar um caminhão novo, não tem um pau véio. Mas talvez seja muito exigir bom senso desse governo.

Mas não vão desistir: o programa Renovar, responsável pela superoferta de caminhões no mercado na década passada, será ressuscitado. Agora vai.

Desincentivos econômicos

Tenho um colega de trabalho (vou chamá-lo de Arturo, nome fictício) que é early adopter de novas tecnologias. Ainda mais quando prometem ser mais baratas do que as velhas tecnologias. Por isso, não resistiu à tentação de instalar o novo app de compartilhamento de transporte da Prefeitura de São Paulo, o MobizapSP (vou chamar de Mobi daqui em diante, só para facilitar). Tive oportunidade de escrever a respeito em um longo post alguns dias atrás.

Antes de contar a experiência do Arturo, devo dizer que também instalei o app. Foi uma experiência. Só não tive que informar o tamanho do meu calçado, mas foi quase. O número de perguntas quase me fez desistir. Mas fui paciente (e confiante na Política de Proteção de Dados da empresa), e cheguei ao fim. Pude, finalmente, verificar a usabilidade do app. Não tenho palavras. Por isso, só vou reproduzir uma avaliação que está na loja da Apple: “Parece um trabalho de faculdade feito por meia dúzia de amadores”.

Mas meu colega não se intimidou com essas dificuldades menores. Na quinta-feira passada, dia de greve no metrô, tentou chamar um Mobi. Um motorista aceitou mas, em seguida, cancelou. Não tendo mais tempo para continuar tentando, desistiu. Detalhe: quando o motorista aceita, o app já cobra o cartão de crédito. Quando o motorista desiste, o app estorna o lançamento. O Uber e a 99, como sabemos, só cobra quando se chega ao destino.

Ontem, segunda-feira, meu colega resolveu tentar novamente. Sorte! O motorista aceitou e não cancelou! O problema é que o app não permite saber onde está o motorista, e também não dá uma previsão de quando ele chega. Arturo, que não se dá por vencido facilmente, esperou pacientemente. E não é que o motorista chegou mesmo! Foram “apenas” 24 minutos de espera, no escuro, sem informação alguma.

Antes de continuar, vale mencionar que a corrida solicitada teria o preço de R$ 18,14. A mesma corrida, pelo Uber X, estava em R$ 39,93. Tarifa dinâmica, beibe! No Mobi não tem nada disso, aqui é a mesma tarifa sempre, faça sol, faça temporal, com greve ou sem greve de metrô. Inegavelmente, Arturo estava bem satisfeito de poder economizar essa grana.

Entrando no veículo, Arturo logo perguntou ao motorista se era a primeira vez que usava o app. Sim, era. O motorista, assim como meu colega, estava testando o serviço. Tinha deixado ligado o dia inteiro, e aquela tinha sido a primeira chamada do dia. O motorista, seu Evaristo (nome fictício), disse que o app não fornece o endereço de quem pediu o carro, só mostra um bonequinho. “Se passar sem querer, já era!”, foi a conclusão do seu Evaristo. Meu colega perguntou se ele tinha visto a mensagem do chat (Arturo tinha mandado uma mensagem perguntando se o motorista estava a caminho). “Não, não vi”. Ao contrário do Uber, o Mobi não mostra para o motorista as mensagens quando chegam, é preciso que o motorista abra o chat… Além disso, o app não mostra quanto tempo falta para chegar ao destino.

O percurso todo levou 23 minutos. Considerando o tempo entre atender ao chamado e o final da corrida, foram 47 minutos. O motorista levou, em 47 minutos, R$ 18,14 para casa (sim, esse foi o valor que apareceu para o meu colega, mas ele descobriu, no final, que esse é o valor do motorista. A cobrança foi de R$ 20,37. Ou seja, para saber o valor de sua corrida, precisa dividir o valor que aparece por 0,89. Bizarro).

Voltemos. Foram R$ 18,14 por 47 minutos. Considerando que, no anda e para do trânsito, foram uns 2 litros de gasolina, líquido sobraram uns R$ 8. Obviamente, por mais que a comissão do Uber seja maior, em horários de pico não tem comparação, a remuneração do motorista é maior. Portanto, o Mobi não tem tarifa dinâmica, mas também não vai ter motorista aceitando corrida em horário de pico. Já é difícil com Uber, imagine com um app que paga quase zero.

Em períodos normais, as tarifas se igualam, e então os motoristas irão aceitar mais corridas pelo Mobi, por que a comissão do app é menor. Mas aí, entra a usabilidade. Entre duas tarifas semelhantes, os usuários vão preferir usar o Uber, que tem uma experiência de usuário muito melhor. Então, temos praticamente um conjunto vazio: em horários de pico, os motoristas preferem o Uber; em períodos normais, os usuários preferem o Uber.

Fico cá imaginando a quantidade monstruosa de dinheiro que será necessário para desenvolver algo minimamente semelhante ao Uber ou 99, com anos de desenvolvimento acumulado. O consórcio que ganhou a licitação vai precisar fazer várias rodadas de capital para manter o negócio em pé. Haja investidor-anjo. A não ser, claro, que o consórcio tenha outros interesses na Prefeitura.

Meu colega, tendo gostado da experiência de ontem, resolveu repetir a dose hoje. Com o Uber X a R$ 44,92, chamou um Mobi, que estava cobrando os mesmos R$ 18,14 de ontem, mas o motorista aceitou e cancelou. Tentou mais uma vez, idem. Uma terceira, a mesma coisa. Foram, no total, 14 tentativas (sim, Arturo é uma pessoa perseverante). O seu Evaristo, pelo jeito, não topou levar o Arturo para casa de graça novamente. Assim como nenhum dos seus colegas. Ainda não inventaram um ser humano que não reaja aos incentivos econômicos.

Pense bem antes de responder

Ainda sobre a isenção de tarifa de bagagem aprovada ontem pela Câmara, notinha no Estadão descreve em detalhe as consequências não intencionais da medida.

Por incrível que pareça, as ações das cias aéreas subiram ontem. Os analistas apontaram dois motivos:

1) As empresas vão assumir que 50% dos passageiros despacharão bagagens para calcular os novos preços das passagens aéreas. Como esse número é conservador, pois normalmente apenas 30% dos passageiros despacham bagagens, as empresas terão lucro maior.

2) Ao incorporar o despacho de bagagem ao preço da passagem, a medida dificulta a vinda de empresas “low-cost”, garantindo o “triopólio” atualmente vigente.

A notinha peca somente por não considerar a elasticidade da demanda ao preço da passagem. Será que o número de passageiros será o mesmo com uma passagem mais cara? Pode ser que sim, mas seria necessário considerar também este fator na análise.

Agora, a pergunta que não quer calar: se essa medida é boa para os passageiros e é boa também para as empresas, os deputados fizeram bem em aprová-la? Pense bem antes de responder.

Os empresários agradecem

Estou estupefacto. Não é possível, deve haver algum engano. Quer dizer então que a ajuda dada aos empresários para que eles contratassem empregados ficou com os próprios empresários??? Quem diria!

Pode parecer que sou contra empresários. Nada mais longe da realidade. Amo os empresários. E os amo justamente porque eles fazem isso que fizeram: maximizaram os seus lucros. O problema não está nos empresários. O problema está no governo, que, por interesse político, não foca corretamente esses programas de ajuda.

O que aparentemente aconteceu foi o seguinte: o auxílio foi tão desproporcionalmente grande, que uma parte relevante dos empresários não precisava realmente daquele auxílio, porque poderiam manter seus negócios funcionando normalmente. Mas como o dinheiro estava lá e as regras foram flexibilizadas, fizeram o que qualquer um faria: pegaram o dinheiro.

Foi mais ou menos o que aconteceu com o FIES aqui: o programa foi tão grande, com regras tão flexíveis, que as faculdades inscreviam no FIES mesmo alunos que já estavam matriculados, só para se livrar do risco de inadimplência. Resultado: inchaço do programa e um rombo que ninguém sabe como será pago.

E por que os governos fazem isso? Para aparecerem bonitos na foto. O governo Biden, assim como o governo Lula no caso do FIES, podem bater no peito e exibir números grandiosos de seus programas de ajuda. Os empresários agradecem.

A qualidade de nossa infraestrutura é proporcional à qualidade de nossas instituições

Como sabemos, a encampação da Linha Amarela pelo município do Rio de Janeiro foi decidida pelo prefeito anterior, Marcelo Crivella. Qual brucutu, passou literalmente o trator sobre as cancelas do pedágio da via. Eduardo Paes, ao contrário de seu predecessor, vende-se como um gestor moderno, que sabe que não há atalhos para a prosperidade, a não ser trabalho duro e respeito pelos contratos. Seu partido, o DEM, cultiva a imagem de um partido liberal, market friendly.

Qual não foi meu espanto ao me deparar com o seguinte tuíte, publicado em 07/03/2021

E não é que Eduardo Paes também exige uma “tarifa justa e não absurda” e vai seguir em frente com a encampação?

Tomado de irresistível curiosidade, fui atrás da história da Linha Amarela. Para tanto, pesquisei nos arquivos do Jornal O Globo.

A linha do tempo da Linha Amarela começa em 1994, quando ocorre a licitação dos três trechos da via. O trecho que nos interessa é o de número 2, que inclui o túnel da Covanca. Em reportagem de 02/06/1994, o Globo comemora: “A construção do trecho principal da Linha Amarela […] sairá a custo zero para a Prefeitura. O consórcio […] arcará com os custos da obra e de manutenção, em troca da exploração do pedágio na via”. Parece claro, não? Mas veremos que nem sempre o que parece claro continua claro ao longo do tempo.

Um esclarecimento: o consórcio vencedor foi substituído mais tarde pela OAS, através de sua controlada Lamsa, que explorava a via até a encampação.

Em reportagem de pouco mais de um mês antes (28/04/1994), podemos conhecer alguns detalhes financeiros do projeto.

O pedágio, portanto, estava previsto para ser de 1 dólar, lembrando que estamos ainda antes do Plano Real e, portanto, tudo se media em dólares. Mas, claro, isso era antes de as obras começarem…

Em 30/12/1994, César Maia, então prefeito, com o auxílio de seu secretário de Obras, Luiz Paulo Conde, e do subprefeito da Barra e Jacarepaguá, Eduardo Paes, dá início às obras. Como vemos, com exceção de Marcelo Crivella, todos os prefeitos do Rio nos 30 anos seguintes estão juntinhos na empreitada.

Na reportagem a seguir, o pedágio previsto passou a ser de R$1,00, a ser cobrado a partir da inauguração, prevista para o final de 1996. Este valor é equivalente à paridade do Real com o dólar, estabelecida a partir de 01/07/1994.

Em março de 96, já ficava claro que não seria possível terminar a obra a tempo de inaugurar até o final do ano. Reportagem do dia 14/03/1996 nos conta que César Maia quer porque quer inaugurar até o final do ano, ainda dentro do seu mandato. Como a prefeitura demorou muito para retirar as famílias que moravam em favelas no caminho da via, a OAS teve que compensar o tempo perdido contratando mais pessoas e acelerando as obras, o que certamente foi objeto de aditivo ao contrato.

Em maio, outras duas reportagens mostram que os custos já estavam 50% maiores do que os previstos no edital e que o pedágio inicial previsto já havia aumentado em 47%. O IGP-M (indexador do contrato à época) desde julho/1994 teve variação de 37,82%. Ou seja, grande parte desse reajuste se deveu mais à inflação do que ao aumento dos custos. Para que ficasse somente em 47% de aumento, o tempo de concessão foi aumentado para 13,5 anos.

Apesar de todas as controvérsias em torno dos custos, técnicos do BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento – acompanharam de perto as obras, pois uma parte do dinheiro utilizado pela OAS veio dos cofres da entidade, nesta que foi a primeira parceria com uma empresa privada feita pelo banco de desenvolvimento. Em reportagem de agosto de 1996, somente elogios por parte do banco.

As obras, que deveriam estar prontas no final de 96 a tempo de serem inauguradas por César Maia, sofreram vários atrasos e a via não foi inaugurada dentro do mandato do prefeito. Os problemas foram, digamos, de diversas ordens.

O prefeito em fim de mandato encomendou uma auditoria ao Clube De Engenharia. As conclusões ficaram prontas somente no mês seguinte, já no mandato do prefeito recém-eleito Luiz Paulo Conde, que, como já vimos, era o secretário de obras de Maia. Foram publicadas em reportagem de 28/01/1997, que é bem completa, e vale ler para entender por que a obra saiu tão mais cara. Em resumo, para quem não tiver paciência de ler: projeto muito simplificado, que não deu a real dimensão dos custos da obra no seu edital. Desnecessário dizer que tudo isso influencia o custo do pedágio.

A Linha Amarela já vinha sendo aberta ao tráfego aos poucos, mas a cobrança de pedágio somente começou em 02/01/1998, com o preço de R$ 1,90.

Vejamos então: o pedágio, que inicialmente estava previsto para ser de R$ 1,00 a valores de 01/07/1994, passou a ser de R$ 1,90 em 01/01/1998. Uma variação de 90% contra IGP-M do período de 56,72%. Portanto, este aumento de 90% embute custos adicionais à inflação do período. Lembrando que foi tudo aprovado pela prefeitura e Tribunal de Contas do Município. E este preço somente foi possível porque o prazo de concessão foi aumentado de 10 para 13,5 anos (a contar de 02/01/1998), caso contrário a tarifa teria que ser ainda maior.

O início da cobrança do pedágio, claro, ensejou reclamações, como nesse trecho de reportagem do dia 25/01/1998:

Claro que, e este ponto é muito importante, ninguém é obrigado a usar a Linha Amarela. Os caminhos alternativos, por dentro dos bairros, continuaram abertos. Tanto é assim, que houve uma diminuição do tráfego na via a partir do momento em que o pedágio começou a ser cobrado.

Então, a Linha Amarela não é um “direito adquirido”, que deve ser fornecido a todos os cidadãos. Trata-se de uma alternativa muito conveniente, e que tem um custo. Ninguém é obrigado a pagar este custo, há outras alternativas menos convenientes. Cada um deve fazer o seu próprio cálculo de custo-benefício.

Mas, sigamos.

Depois do início da cobrança, não houve muito mais destaque para o pedágio nas reportagens. Passou a ser um elemento da paisagem. O pedágio da Linha Amarela foi majorado da seguinte forma nos anos seguintes:

15/08/1999: de R$ 1,90 para R$ 2,00 (aumento de 5,26% contra um IGP-M de 12,08% no período – o IGP-M era, na época, o indexador do contrato).

17/04/2000: de R$ 2,00 para R$ 2,40 (aumento de 20% contra IGP-M de 10,40% no período). Este aumento superior ao IGP-M se deu para compensar o atraso anterior e mais o início da cobrança do ISS de 5% sobre as tarifas, conforme podemos ver na reportagem abaixo. Voltaremos a falar desse ISS mais à frente, mas por ora fica claro que nem todo o pedágio vai para a concessionária.

Aliás, observem novamente a decisão do consumidor: “não tenho alternativa”. Na verdade, tem: enfrentar engarrafamentos na Zona Sul. A conveniência custa caro.

E esta conveniência ficaria ainda maior a partir de 27/06/2000, com a inauguração da ligação entre as Linhas Amarela e Vermelha. E o melhor: sem aumento do pedágio!

Mas, se a concessionária investiu na obra, como não vai aumentar o pedágio? Qual a mágica? Simples: o período de concessão foi aumentado de 13,5 para 25 anos. Normalmente é assim que se faz para não onerar o usuário com a construção de benfeitorias em concessões. Então, quando alguém questionar por que uma concessão que, inicialmente, era de 10 anos e passou a ser de 37 anos, a resposta é: para manter o preço do pedágio baixo.

No entanto, mesmo não tendo aumentado o pedágio, as reclamações continuaram. Tanto que foram objeto de reportagem no dia 13/07/2000. A reportagem é curtinha, vale a pena ler toda:

A comparação é com o pedágio da Ponte Rio-Niterói: enquanto o pedágio da ponte é de R$0,107 por quilômetro, na Linha Amarela é de R$0,120 por quilômetro. Mas o diretor da concessionária chama a atenção para um ponto importante: a Ponte Rio-Niterói foi construída pelo Estado, enquanto a Linha Amarela foi construída com dinheiro da concessionária. Então, o pedágio precisa pagar não somente a manutenção, como também o custo da construção. Outra lição: quer um pedágio mais barato? O poder público constrói o equipamento com dinheiro do orçamento (tirando de outras prioridades do município ou do Estado) e depois concede somente o trabalho de manutenção. Ah, não tem dinheiro? Pois é…

As queixas levaram ao primeiro golpe populista na Linha Amarela:

César Maia ganhou a eleição em 2000 e voltou à cadeira de prefeito da Cidade Maravilhosa. Seu primeiro ato foi reduzir o valor do pedágio da Linha Amarela de R$ 2,40 para R$ 2,00 (valor vigente até 17/04 do ano anterior) com uma canetada.

O novo-velho prefeito questionou vários pontos, entre os quais o indexador do contrato (assinado por ele mesmo!), a extensão da concessão e a qualidade dos serviços. Mas o ponto abaixo foi o que mais me chamou a atenção:

Quer dizer, a concessionária deveria ter poder de polícia para proteger a via. Sem comentários.

De qualquer forma, esta primeira intervenção mostra porque o custo das concessões brasileiras é alto: a tarifa precisa embutir o risco jurídico. Com essa intervenção, a concessionária deixou de arrecadar o pedágio durante um período, além de precisar gastar dinheiro e tempo com advogados para procurar suspender o decreto, dinheiro que poderia ser utilizado para remunerar o seu capital. Este dinheiro para contingências judiciais, não se engane, está embutido no preço dos pedágios e tarifas cobrados em todo o Brasil.

Em 28/03/2001, o secretário de obras anunciou o resultado de auditoria levada a cabo pela Prefeitura a respeito das obras da ligação entre as Linhas Amarela e Vermelha, segundo a qual houve superfaturamento por parte da Lamsa, a concessionária. Estas obras é que serviram de base para a extensão do período de concessão.

Obviamente a concessionária negou as acusações, afirmando que todas as obras foram acompanhadas e aprovadas pela gestão anterior, de Luiz Paulo Conde.

A justiça devolveu para a concessionária o direito de cobrar o pedágio normal a partir de 03/05/2001, enquanto o imbróglio não se resolvia. Afinal, não se reduz uma tarifa, assim, na canetada, precisa ter respaldo jurídico.

Pelo visto, a iniciativa do prefeito não deu em nada, porque a concessionária anunciou novo aumento de pedágio no dia 24/11/2001, de R$ 2,40 para R$ 2,69, com base em uma liminar da justiça (dado que a concessionária e o município estavam em litígio, a concessionária passou a pedir permissão para aumento diretamente à justiça).

Este aumento representa uma reposição de 12,08%, contra um IGP-M acumulado no período, desde o último reajuste, de 18,27%. Isso sem contar o tempo em que o pedágio não foi cobrado. Essa diferença se deve ao fato de que o pedágio deveria ter sido reajustado em janeiro daquele ano, então os 12,08% referem-se ao cálculo até aquele momento. Ou seja, esse novo pedágio já nasce defasado…

No entanto, em 14/06 do ano seguinte (2002), prefeitura e concessionária entram em um acordo para baixar a tarifa para R$ 2,50 através da troca do indexador, de IGP-M para IPCA. Em troca, a prefeitura retira o carimbo de “inidônea” sobre a OAS (controladora da Lamsa).

Ou seja, a construtora deixou os anéis para preservar os dedos. Não houve prova de irregularidades, mas a prefeitura usou de seu, digamos, “poder persuasivo”, fazendo chantagem sobre a controladora (que ficaria de fora de todas as licitações do município) para induzir uma mudança no contrato (e retroativo!!!).

Depois disso, prefeitura e concessionária passaram a viver em paz pelos 12 anos seguintes. O pedágio foi reajustado quase que anualmente nas seguintes ocasiões:

  • 10/07/2003: de R$ 2,50 para R$ 2,90 (reajuste de 16,00% contra IPCA de 17,06% desde o último reajuste)
  • 01/12/2004: de R$ 2,90 para R$ 3,20 (reajuste de 10,34% contra IPCA de 9,34% no período)
  • 07/01/2006: de R$ 3,20 para R$ 3,40 (reajuste de 6,25% contra IPCA de 6,21% no período)
  • 01/01/2007: de R$ 3,40 para R$ 3,50 (reajuste de 2,94% contra IPCA de 3,14% no período)
  • 02/01/2008: de R$ 3,50 para R$ 3,65 (reajuste de 4,29% contra IPCA de 4,45% no período)
  • 01/01/2009: de R$ 3,65 para R$ 3,85 (reajuste de 5,48% contra IPCA de 5,90% no período)
  • 01/01/2010: de R$ 3,85 para R$ 4,00 (reajuste de 3,90% contra IPCA de 4,31% no período)

Este último reajuste foi o primeiro autorizado pelo então prefeito Eduardo Paes. Aos reclamantes, o prefeito esclareceu o que segue:

Aliás, reportagem de 05/04/2010 dá conta que o prefeito Eduardo Paes anunciou mais uma obra encomendada para a Lamsa. Em troca, estendeu a concessão por mais 15 anos, até 2037.

Depois disso, os reajustes continuaram, mas desta vez acima da inflação. Como mostra a reportagem abaixo, de 31/12/2011, estavam contidos no acordo de extensão da concessão de 2010. Eduardo Paes fez um mix de extensão do período de concessão com aumento do pedágio acima da inflação durante 5 anos.

  • 01/01/2011: de R$ 4,00 para R$ 4,30 (reajuste de 7,50% contra IPCA de 5,91%)
  • 01/01/2012: de R$ 4,30 para R$ 4,70 (reajuste de 9,30% contra IPCA de 6,50%)
  • 05/01/2013: de R$ 4,70 para R$ 5,00 (reajuste de 6,38% contra IPCA de 5,84%)
  • 02/01/2014: de R$ 5,00 para R$ 5,50 (reajuste de 10,00% contra IPCA de 5,91%)
  • 03/01/2015: de R$ 5,50 para R$ 5,90 (reajuste de 7,27% contra IPCA de 6,41%)

Claro que tantos reajustes acima da inflação (nos últimos 5 anos o pedágio havia aumentado 47,50% contra um IPCA de 34,54%) iria suscitar algum tipo de reação. Não deu outra: em 25/06/2015, a Câmara de Vereadores do Rio aprovou uma lei que permitia a não cobrança do pedágio para quem usasse a via em um intervalo de duas horas.

O prefeito Eduardo Paes vetou, mas a Câmara derrubou o veto em 16/09/2015: foram 27 votos a 1, o que demonstra que a ignorância é uma força invencível quando revestida da capa da justiça.

Em 2016, último ano de Eduardo Paes à frente da prefeitura, não foi concedido o reajuste previsto em contrato. Paes, portanto, deixa para o seu sucessor, Marcelo Crivella, o pepino de um reajuste monstro, dado que a inflação em 2015 e 2016 havia sido bastante alta.

Crivella estreia o seu governo já mostrando a que veio. No primeiro dia de seu mandato, isenta as motos de pagarem pedágio para usar a via. O texto do decreto é um mimo:

Ou seja: a prefeitura quebra o contrato, e é à concessionária que resta o ônus da prova de que há “desequilíbrio econômico-financeiro” com a isenção. Ora, se há um contrato que prevê cobrança de pedágio de ônibus, carros e motos, e reajuste anual pelo IPCA, é óbvio que há um desequilíbrio se o contrato não é cumprido. Por definição. Não há que “provar” nada. Imagine se cada um resolvesse não cumprir contratos livremente firmados porque se sente prejudicado e impusesse que a outra parte “provasse” que está sendo prejudicada pela quebra do contrato. É o fim da picada!

É claro que Crivella também não concedeu o reajuste de janeiro de 2017, que só voltou a ser reajustado em 13/04/2017 com base em uma liminar obtida pela concessionária. A tarifa passou a ser de R$7,00, um reajuste foi 18,64% contra um IPCA de 18,77% desde o último reajuste.

Depois disso, a prefeitura concedeu um último reajuste contratual sem que a concessionária precisasse ir até a justiça. A tarifa, que passou a valer a partir de 10/01/2018, foi elevada de R$7,00 para R$7,20, um aumento de 2,86% contra um IPCA de 1,97% no período.

A partir daí, começa de verdade a saga Crivella vs. Lamsa.

Em 25/07/2018, Crivella já avisa que o gato da Lamsa subiu no telhado:

Em 21/12/2018, a prefeitura suspende a cobrança de pedágio em um dos dois sentidos da via por 19 meses, para ressarcir “irregularidades” encontradas em uma auditoria feita pelos técnicos da própria prefeitura. Destaco abaixo dois trechos da reportagem, verdadeiras pérolas de raro valor.

No primeiro trecho, o prefeito Crivella apela ao judiciário para que não se intrometa, dado que foi uma “decisão estudada”. Vou tentar ver se cola essa de “decisão estudada” na próxima vez que eu não pagar a conta de luz, por exemplo. E o respeito à independência entre os poderes? Como se o judiciário não tivesse o dever de julgar uma quebra de contrato!

O segundo trecho refere-se à fala do vereador César Maia, defendendo a segurança jurídica. Como se não tivesse sido César Maia, quando prefeito pela segunda vez, o autor da canetada que derrubou a tarifa de R$ 2,40 para R$ 2,00 em janeiro de 2001, no primeiro ato de seu mandato. Ah, como esse mundo dá voltas…

No dia seguinte, 22/12/2018, a concessionária conseguiu uma liminar que reverteu o decreto do prefeito.

Mas Crivella não se deu por satisfeito e voltou à carga: no dia 01/02/2019, a prefeitura voltou a suspender o pedágio em uma das duas direções da via, novamente com base em uma auditoria. Destaco abaixo um trecho da reportagem, muito bacana:

Fico cá imaginando os motoristas que economizaram no pedágio doando esse dinheiro para a prefeitura, para que esta possa criar vagas nas creches e construir mais hospitais. O discurso populista chega a ser engraçado.

Aproveitando o ensejo, a Lamsa voltou a entrar na justiça para fazer valer o reajuste contratual, no que foi bem-sucedida: um desembargador determinou o aumento da tarifa de R$7,20 para R$7,50 a partir do dia 15/02/2019, um aumento de 4,17% contra uma IPCA de 4,08% no período.

Em 25/10/2019, Crivella sobe o tom e anuncia o cancelamento da concessão. Destaco abaixo um trecho da reportagem:

Este é um tema que merece uma pequena análise aqui, pois costuma causar confusão: a previsão de tráfego e o reequilíbrio financeiro de contratos de concessão.

Em primeiro lugar, a comparação que o ex-prefeito usa é estapafúrdia. Basta ver o que ocorreu nesse ano de pandemia: o número de veículos diminuiu em todas as vias brasileiras em relação a 2019. Mas, mesmo que não tivesse ocorrido a pandemia, os termos de um contrato de concessão normalmente não se dão em termos de “aumento” ou “diminuição” do tráfego. É óbvio que o tráfego tende a aumentar com o tempo. A questão normalmente colocada é em quanto vai aumentar. O contrato pode ter uma cláusula que indeniza a concessionária se o aumento do tráfego ficar abaixo do que o contrato previa, e vice-versa. Geralmente, esta indenização se dá por ajustes, para cima ou para baixo, no valor do reajuste da tarifa cobrada.

No contrato da Linha Amarela, aparentemente, não havia tal cláusula. Então, neste ano de 2020, a Lamsa arcou sozinha com o prejuízo, não tem direito a um aumento do pedágio para compensar a perda de tráfego. E, por outro lado, ganha mais se há mais tráfego, não há redução de pedágio por conta disso.

O ponto principal dessa discussão é que HÁ UM CONTRATO. Se as cláusulas desse contrato não foram bem feitas, vai reclamar com quem celebrou o contrato, a empresa não tem nada a ver com isso. Ou melhor, tem: ela tem o direito de receber o determinado pelo contrato. E, caso se queira mudar alguma cláusula, deve haver negociação com ressarcimento da parte prejudicada pela mudança, não canetada.

Mas, sigamos. Agora chegamos ao ápice da truculência populista: a derrubada das cancelas em 27/10/2019:

No dia seguinte a concessionária, como sempre, obteve liminar para voltar a cobrar o pedágio. Mas como algumas cancelas haviam sido destruídas, não pode fazê-lo de maneira plena.

Em 05/11/2019, a prefeitura sanciona lei para encampar a concessão. Isso, contra uma liminar da justiça. Ato contínuo, ordena a retirada das cancelas.

Registro: a lei foi aprovada pela unanimidade dos vereadores cariocas em dois turnos de votação em apenas uma semana. Então, não é um caso de populismo apenas do prefeito. César Maia, vereador e pai da criança, não compareceu à votação.

O interessante é que essa lei prevê um fundo para indenizar a concessionária caso, na justiça, se chegue à conclusão de que a empresa saiu prejudicada pelo fim antecipado da concessão. Fico imaginando com que dinheiro a prefeitura constituiria este fundo. Alguém teve a ideia de transferir imóveis de propriedade da prefeitura, e que estão hoje em nome do Fundo de Previdência do Município. Se eu fosse funcionário do município, começaria a ficar preocupado com minha aposentadoria…

Um desses imóveis é a Cidade das Artes, avaliada em R$ 1 bilhão.

O Tribunal de Contas do Município, por sua vez, lembrou ao prefeito o óbvio: sem o pedágio, é a Prefeitura que deve pagar pela manutenção da via. E, cadê o dinheiro?

Depois de muitas idas e vindas judiciais, no dia 13/11/2019 finalmente o TJ do RJ devolve a concessão para a Lamsa, que retoma a cobrança do pedágio.

Quase um ano depois, em 16/09/2020, finalmente Crivella encontra um juiz terrivelmente evangélico que lhe dá razão: o presidente do STJ, ministro Humberto Martins.

Bem, de nada adiantou a tentativa canhestra do prefeito de ganhar os corações e mentes dos cariocas com o pedágio de graça na Linha Amarela: perdeu a eleição para Eduardo Paes.

O atual prefeito começou seu mandato tentando negociar uma redução do pedágio com a empresa. A falta da cobrança do pedágio já começava a sangrar o caixa da prefeitura, que deixou de arrecadar R$ 5 milhões de ISS desde a encampação de Crivella. É o que nos mostra a reportagem abaixo, de 27/01/2021:

No dia 04/03, o presidente do STF, Luís Fux, concede liminar para que a Lamsa retome o controle da concessão. Desde então, prefeitura e concessionária estão brigando pela volta do pedágio. Essa briga está longe de terminar.

Chegamos então no tuíte do atual prefeito, que repito a seguir:

Pelo visto, não “deu certo” as negociações com a concessionária, que obviamente sabe que está respaldada no contrato. Eduardo Paes, então, no melhor estilo populista, vai também para o pau. E, se o país tiver ainda algum resquício de segurança jurídica, vai perder. Quer dizer, ele não, a população carioca, que vai pagar a conta no final. Como sempre.

Conclusão

Este imbróglio da Linha Amarela é paradigmático dos problemas que envolvem a construção de infraestrutura no Brasil.

A ideia de fazer uma parceria com a iniciativa privada para a construção de infraestrutura parece ser, em princípio, muito boa: o dinheiro privado é usado para a construção, e somente os usuários diretos daquele equipamento serão responsáveis pelo seu pagamento ao longo dos anos.

Claro que todo equipamento de infraestrutura envolve também benefícios indiretos, que chamamos, em economia, de “externalidades positivas”. No caso específico da Linha Amarela, imóveis se valorizaram, o tráfego por dentro dos bairros diminuiu, negócios que dependem da velocidade de deslocamento foram beneficiados, diminuiu a poluição do ar (em relação ao que seria sem a obra) etc. Caberia ao poder concedente fazer um balanceamento entre o dinheiro que vai colocar na obra para pagar por essas externalidades positivas e o dinheiro usado pelo investidor privado, que será cobrado diretamente do usuário do equipamento.

Mas este tipo de consideração é normalmente secundário. O fator determinante é o tamanho do caixa público disponível. No limite, para ter pedágio zero, o Estado poderia construir e administrar a via. Neste caso, todos os munícipes pagariam pela via, usando ou não, sendo beneficiado indiretamente ou não. Mas, como sabemos, há inúmeras outras prioridades, muitas delas obrigatórias por lei, e não sobra dinheiro para investimentos em infraestrutura. Então, recorre-se ao caixa privado.

Outro ponto a se considerar é que, se não houvesse o investimento privado, aquela alternativa conveniente não existiria. Portanto, não há uma espécie de “direito adquirido” ao uso daquela via. O tal “preço justo” passa justamente por essa premissa: o carioca seria titular de uma espécie de “direito adquirido” a usar a via, não pagando por esse direito mais do que o “justo”. O ponto é que a oferta somente existe porque houve o investimento privado, calçado em um contrato de construção. Por mais que seja “injusto”, o pedágio está de acordo com o contrato. E se não fosse o contrato, a via não existiria. Se o pedágio está caro, resta sempre a alternativa de não usar a via. A conveniência tem o seu preço.

Também temos que considerar a precariedade dos projetos de infraestrutura no Brasil. Projetos malfeitos resultam em aditivos posteriores, pois os custos são subestimados. Assim, a estimativa de tarifa inicial mostra-se inferior àquela que será cobrada posteriormente. É óbvio que as empresas se aproveitam dessa falha para ganhar as licitações com preços irreais. Mas a culpa de projetos malfeitos é do poder licitante, não das empresas.

Por fim, o ponto principal: a insegurança jurídica. Meu saudoso pai dizia: “o combinado não sai caro”. Um contrato é uma combinação entre dois agentes responsáveis e dispostos a arcar com as consequências (mesmo as não antecipadas) de suas decisões. Contratos para a construção de infraestrutura, por sua própria natureza, envolve vários governos ao longo do tempo. Um contrato não pode ficar à mercê do governante de plantão. Por isso existe a justiça, que arbitra a aplicação do contrato. Mas não arbitra de forma arbitrária, mas sim sobre os termos do contrato. Caso contrário, entramos em um regime arbitrário, em que tudo pode acontecer.

O efeito desse tipo de arbitrariedade é o aumento da taxa de retorno exigida pelos agentes privados. Trata-se de um círculo vicioso: os governos agem de maneira arbitrária, os agentes privados cobram mais caro para compensar a arbitrariedade, as tarifas ficam altas, aumentando a chance de intervenção arbitrária. É óbvio que este não é um ambiente propício para investimentos em infraestrutura.

O preço a ser pago é menos infraestrutura no futuro, ou infraestrutura mais cara. Se a encampação tiver sucesso, os cariocas terão uma combinação das duas: o pedágio continuará “caro” para o nível do serviço que será oferecido, que cairá de maneira visível. Quem viver, verá.

A linha do tempo do imbróglio Linha Amarela

Em um artigo longo como este, penso ser útil uma linha do tempo com os principais acontecimentos. São fatos, nada mais do que fatos, que nos ajudarão a separar a realidade da narrativa política. Narrativa esta que pode chegar às raias da desfaçatez, como nessa declaração do ex-prefeito Crivella, em que posa de defensor do “sagrado respeito aos contratos” quando dedicou seu mandato a estuprá-los, em nome de um genérico “combate à corrupção”. Se corrupção houve, que se prove nos tribunais. Há formas dentro da lei de se rever contratos viciados.

A linha do tempo a seguir tem o objetivo de mostrar que, se houve corrupção, a prefeitura do Rio foi totalmente conivente, sacramentando os seus termos em contrato. Não somente a Lamsa deveria ser punida, como também os ex-prefeitos César Maia e Eduardo Paes, que assinaram os contratos e seus aditivos, além do TCM, que aprovou-os todos.

DataPrefeitoEvento
01/06/1994César MaiaLicitação vencida pelo consórcio Convap, que foi depois substituído pela OAS. O pedágio previsto era de US$1,00 por uma concessão de 10 anos. Com o início do Real um mês depois e a paridade com o dólar, esse pedágio inicial passou a ser de R$1,00.
30/12/1994César MaiaInício das obras. O término está previsto para o fim de 1996.
02/01/1998Luiz Paulo CondeInício da cobrança do pedágio, no valor de R$1,90. Contra o R$ 1,00 de 01/07/1994 temos um aumento de 90%, contra IGP-M de 56,72%, uma diferença de 21,24%. Em outra reportagem é citado aumento de 47% nos custos. Para ficar em somente 21,24% de aumento real, a concessão foi estendida para 13,5 anos, ou seja, até 02/07/2011. Tudo isso aprovado pela prefeitura e Tribunal de Contas do Município.
15/08/1999Luiz Paulo CondePedágio vai de R$ 1,90 para R$ 2,00 (aumento de 5,26% contra um IGP-M de 12,08% no período). Note que não foi respeitado o período de 1 ano para o reajuste.
17/04/2000Luiz Paulo CondePedágio vai de R$ 2,00 para R$ 2,40 (aumento de 20% contra IGP-M de 10,40% no período). Este aumento superior ao IGP-M se deu para compensar o atraso anterior e mais o início da cobrança do ISS de 5% sobre as tarifas.
27/06/2000Luiz Paulo CondeInaugurada a ligação Linha Vermelha – Linha Amarela. Para compensar a concessionária pelas obras, a concessão foi estendida para 25 anos, ou seja, até 02/01/2023.
02/01/2001César MaiaAo invés de conceder o reajuste contratual, o prefeito derruba o pedágio de R$2,40 para R$2,00, questionando a extensão da concessão.
03/05/2001César MaiaLiminar permite a volta do pedágio para R$ 2,40.
24/11/2001César MaiaPedágio vai de R$ 2,40 para R$ 2,69 (aumento de 12,08% contra IGP-M de 18,27% no período).
14/06/2002César MaiaPedágio cai de R$2,69 para R$2,50 em “acordo” com a concessionária para a mudança do indexador, de IGP-M para IPCA. A controladora, a OAS, havia sido classificada como “inidônea”. A classificação foi retirada depois do acordo.
10/07/2003César MaiaReajuste de R$ 2,50 para R$ 2,90 (16,00% contra IPCA de 17,06% desde o último reajuste)
01/12/2004César MaiaReajuste de R$ 2,90 para R$ 3,20 (10,34% contra IPCA de 9,34% no período)
07/01/2006César MaiaReajuste de R$ 3,20 para R$ 3,40 (6,25% contra IPCA de 6,21% no período). Finalmente se inicia uma série de reajustes de acordo com o prazo previsto no contrato.
01/01/2007César MaiaReajuste de R$ 3,40 para R$ 3,50 (2,94% contra IPCA de 3,14% no período)
01/01/2008César MaiaReajuste de R$ 3,50 para R$ 3,65 (4,29% contra IPCA de 4,45% no período)
01/01/2009Eduardo PaesReajuste de R$ 3,65 para R$ 3,85 (5,48% contra IPCA de 5,90% no período). Apesar de já ser no mandato de Paes, o reajuste havia sido autorizado por César Maia.
01/01/2010Eduardo PaesReajuste de R$ 3,85 para R$ 4,00 (3,90% contra IPCA de 4,31% no período)
Abril/2010Eduardo PaesEm troca de algumas obras de melhoria viária, a concessionária ganha uma extensão de 15 anos da concessão, levando o término para 02/01/2038 e reajustes do pedágio de 10% além do IPCA nos 5 anos seguintes.
01/01/2011Eduardo PaesReajuste de R$ 4,00 para R$ 4,30 (7,50% contra IPCA de 5,91%). Temos aqui o início da política de aumentos acima do IPCA.
01/01/2012Eduardo PaesReajuste de R$ 4,30 para R$ 4,70 (9,30% contra IPCA de 6,50%).
05/01/2013Eduardo PaesReajuste de R$ 4,70 para R$ 5,00 (6,38% contra IPCA de 5,84%).
02/01/2014Eduardo PaesReajuste de R$ 5,00 para R$ 5,50 (10,00% contra IPCA de 5,91%).
03/01/2015Eduardo PaesReajuste de R$ 5,50 para R$ 5,90 (7,27% contra IPCA de 6,41%).
25/06/2015Eduardo PaesA Câmara aprova lei que permite a não cobrança do pedágio para o usuário que passasse pela cobrança dentro de duas horas. Paes vetou, mas a Câmara derrubou o veto.
01/01/2017Marcelo CrivellaPrimeiro decreto do novo prefeito derruba a cobrança de pedágio para motos.
13/04/2017Marcelo CrivellaReajuste de R$5,90 para R$7,00 (18,64% contra IPCA de 18,77% desde o último reajuste). Este reajuste foi obtido através de liminar na justiça.
10/01/2018Marcelo CrivellaReajuste de R$7,00 para R$7,20 (2,86% contra IPCA de 1,97%). Último reajuste de acordo com o previsto no contrato concedido até o momento.
25/07/2018Marcelo CrivellaO prefeito anuncia que vai rever os termos da concessão.
21/12/2018 e 01/02/2019Marcelo CrivellaCrivella suspende a cobrança de pedágio em um dos dois sentidos da via por 19 meses, para ressarcir “irregularidades” encontradas em auditorias feitas pelos técnicos da própria prefeitura. Nos dois casos, a concessionária consegue liminares que revertem os decretos do prefeito.
15/02/2019Marcelo CrivellaReajuste de R$7,20 para R$7,50 (4,17% contra IPCA de 4,08% no período). Reajuste obtido na justiça.
25/10/2019Marcelo CrivellaO prefeito envia projeto de lei para a Câmara para o cancelamento da concessão.
27/10/2019Marcelo CrivellaO prefeito ordena a destruição das cancelas de pedágio.
05/11/2019Marcelo CrivellaO prefeito sanciona a lei de encampação da concessão, aprovada por unanimidade na Câmara dos Vereadores.
13/11/2019Marcelo CrivellaO TJ do RJ devolve a concessão para a Lamsa, que retoma a cobrança do pedágio.
16/09/2020Marcelo CrivellaO presidente do STJ, ministro Humberto Martins, volta a autorizar a prefeitura a assumir a administração da Linha Amarela. As cancelas voltam a ficar abertas.
04/03/2021Eduardo PaesO presidente do STF, Luís Fux, concede liminar para que a Lamsa retome o controle da concessão.

A saúde tem preço?

Essa é uma discussão ética muito complicada: a saúde tem preço? Quanto vale uma vida humana? Seria ético deixar uma pessoa morrer pelo simples fato de não poder pagar por um leito de UTI? Questões, no mínimo, embaraçosas.

A saúde não tem preço. Mas custa muito caro.

No limite, a lógica da fila única não deveria valer apenas para o Covid-19. Afinal, doença é doença, independentemente do nome. A discussão se dá agora porque há possibilidade real de faltarem leitos no SUS. Mas, conceitualmente, deveria valer para tudo.

Não vou entrar na discussão ética, vou abordar o problema do ponto de vista estritamente econômico.

O que aconteceria se houvesse fila única nos hospitais? Ou seja, se todos os leitos estivessem à disposição de um sistema estatal de saúde? O resultado seria óbvio: não valeria mais a pena pagar por um serviço privado e seria o fim dos hospitais privados e dos convênios e seguros-saúde. Toda a saúde seria fornecida pelo Estado.

Há quem goste dessa solução. Afinal, a saúde não tem preço, e não é justo que o dinheiro determine quem vai ter mais ou menos saúde. Deveria ser tudo igual.

Sim, verdade. Mas não se iluda. Em sociedades onde o dinheiro não manda, manda quem está mais próximo do poder político. A nomenklatura se trata bem, e não tenha dúvida de que, na “fila única” da saúde, alguns teriam um fast pass, como naquelas filas da Disney. O dinheiro pode não ser o critério mais justo para se escolher quem vive ou quem morre. Mas pelo menos é mais transparente.

A judicialização do setor aéreo

Não consigo ver nada mais Brasil do que esse assunto aqui. Coisa igual pode existir, mais é impossível.

Trata-se do seguinte: multiplicaram-se sites que oferecem a compra de demandas judiciais de passageiros contra companhias aéreas, ou ajuda para processar as companhias, em caso de atrasos e cancelamentos, em troca de uma participação na indenização. Segundo a matéria do Valor, o nível de judicialização ultrapassou o dos EUA, terra dos advogados e dos processos, como sabemos. Os culpados? Esses sites do demônio.

As companhias aéreas obviamente criticam esses sites, acusando-os de estarem causando milhões de prejuízo às empresas do setor. E aqui entra o primeiro “componente Brasil” dessa história. Esses sites apenas descobriram um nicho de mercado: a tendência de os juízes brasileiros darem ganho de causa para o passageiro, independentemente da causa do atraso/cancelamento. Segundo a reportagem, a justiça brasileira não segue a Convenção de Montreal, que regula essa relação, e que não dá ganho de causa ao passageiro quando o atraso/cancelamento se deu por “força maior”. Mas aqui no Brasil, o sentimento anti-capitalista é mais forte, praticamente invencível, de modo que as empresas são sempre culpadas. Esses sites nada mais fazem do que explorar essa “distorção de mercado”.

Mas a OAB chegou para dar um jeito nessa história. Como não é possível mudar cabeça de juiz, vamos acabar com esses sites do demônio e dificultar o acesso do brasileiro à justiça. E aqui entra a segunda característica bem brasileira dessa história. Não, a OAB não está preocupada com a hiperjudicialização. Segundo a matéria, a OAB está processando os sites por fazerem o papel de advogados sem sê-los e por estarem “mercantilizando” os serviços de advocacia. A OAB está preocupada, portanto, em manter o monopólio da advocacia e a “pureza” da atividade contra a influência do vil metal.

Da primeira acusação, os sites defendem-se dizendo que contratam advogados para representar junto à justiça. Ou seja, respeitam o monopólio da OAB. Mas é a segunda acusação que marca bem o que é a justiça no Brasil. Advogados não podem fazer propaganda de sua atividade. Advogados não podem abrir o seu escritório em uma loja no nível da rua ou em um shopping. Advogados devem esperar sentados em suas torres de marfim os seus clientes. Não mercantilizar a sua atividade é isso. Fazer publicidade seria sujar as mãos no capitalismo mais rasteiro e isso os advogados não podem fazer.

Essa então é a justiça no Brasil: juízes que julgam com cabeça anti-capitalista e advogados que pensam com cabeça anti-capitalista. Resultado: uma justiça inacessível e intimidatória, feita para quem conhece o sistema por dentro e consegue, a peso de ouro, explorar os vieses dos juízes. Esses sites de processos contra companhias aéreas vieram para inverter essa lógica: deixar a justiça facilmente à mão e forçar uma mudança de jurisprudência por parte da justiça. Essa é, aliás, a forma mais eficiente de diminuir a atuação desses sites: passar a adotar a Convenção de Montreal, tornando o ganho na justiça menos certo. Mas aqui preferimos quebrar o termômetro ao invés de combater a febre.

O fim do cheque especial

Há alguns dias, escrevi um post defendendo a proibição do cheque especial como modalidade de crédito. Comparei o cheque especial a uma espécie de dose de uma bebida alcoólica para um alcoólatra: o melhor seria a total abstinência, uma espécie de “lei seca”.

Obviamente, não acredito nessa solução. O “mercado paralelo” de crédito substituiria o cheque especial com taxas ainda mais altas. O alcoólatra não se deixa segurar pela falta do produto nas prateleiras oficiais.

E não é que o CMN resolveu acabar com o cheque especial? Não com essas palavras, mas na prática é o que provavelmente vai acontecer. Vejamos.

Há basicamente duas hipóteses: ou o preço da linha estava errado e o BC, em sua onisciência, determinou agora o preço “certo”, ou o preço estava correto. Na primeira hipótese, os bancos vão continuar oferecendo a linha e obtendo lucros “corretos” com o cheque especial. Na segunda hipótese, o produto vai faltar nas prateleiras, como acontece com qualquer tabelamento de preços. Façam suas apostas.

A tarifa que os bancos vão poder cobrar está longe de compensar o teto de juros. Primeiro, porque será descontada dos juros sobre a linha utilizada. Segundo, porque quem não utiliza a linha não vai querer pagar a tarifa. É o meu caso, por exemplo. A primeira coisa que vou fazer é pedir para reduzir minha linha do cheque especial para R$500, limite no qual não há cobrança de tarifa.

Campos Neto, presidente do BC, nega que tenha sido um tabelamento, dado que os bancos vão poder cobrar tarifa sobre os limites não utilizados. Tarifa esta também tabelada, diga-se de passagem. Campos Neto subestima a inteligência do seu público.

Falta concorrência no mercado bancário brasileiro. O tabelamento não vai ajudar. Pelo contrário, vai atrapalhar. Eventuais concorrentes com capacidade de cobrar juros mais baixos já poderiam ter entrado quando os juros do cheque especial estavam a 12%. A 8% esta possibilidade diminui.

Dilma Rousseff, a presidente mais intervencionista da história recente, tentou usar os bancos públicos para baixar as taxas de juros, mas não teve a ousadia de tabelar as taxas de juros de linhas de crédito. O cheque especial é só o primeiro da fila. Depois vem o cartão de crédito e as linhas sem garantia, todas muito caras. O BC, pressionado pelos congressistas, estabelecerá o “preço correto” para todas essas linhas. Meu conselho para você, que vive no cheque especial ou no rotativo do cartão de crédito: comece a procurar um agiota para substituir essas linhas de crédito.

Desoneração seletiva

O efeito final dessa medida será a redução da renda média do trabalhador. Empregos de 1,6 a 2.0 salários mínimos sumirão da prateleira. E não, não haverá fomento ao emprego, apenas à formalização do emprego já existente.

A grande verdade é que os encargos sobre a folha derivam das distorções do Estado de Bem-Estar Social. A reforma da Previdência foi apenas um primeiro tímido passo, em um país que gasta em previdência o mesmo que o Japão, que tem o dobro da população de idosos. Enquanto continuarmos tentando emular a Suécia, qualquer solução será sempre uma gambiarra que introduz mais e mais distorções na economia.

E antes que me lembrem que o Brasil padece de falta e não de excesso de bem-estar social, pergunto: a quem o Estado de Bem-Estar Social brasileiro atende?