Entre mentiras sinceras e mentiras escancaradas

Em março, quando Fernando Haddad anunciou o “novo arcabouço fiscal”, todo mundo olhou para aquelas metas de resultado primário e disse: sério? Era claro que a meta de déficit zero em 2024 era inalcançável, a menos que houvesse um aumento brutal da carga tributária, algo próximo de 1,5% do PIB. Desde então, o que vimos foi o ministro da Fazenda correndo atrás de receitas, com resultados pífios.

No entanto, desde março, enquanto o mercado financeiro externo permitiu, o nosso mercado melhorou muito: as taxas de juros longas caíram, o real se valorizou e a bolsa subiu. Além disso, o presidente do BC, Roberto Campos, tem mencionado a questão fiscal nos comunicados do Copom de maneira muito mais suave. No primeiro Copom do ano, Campos coloca a questão fiscal entre os fatores de risco para a inflação: “a ainda elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país”. Já no último Copom, a questão fiscal não aparece mais entre os fatores de risco, e a menção se dá em relação às metas fiscais: “Tendo em conta a importância da execução das metas fiscais já estabelecidas para a ancoragem das expectativas de inflação e, consequentemente, para a condução da política monetária, o Comitê reforça a importância da firme persecução dessas metas”. Voltaremos à importância dessa “persecução” adiante.

Por que um arcabouço frouxo e metas fiscais não críveis (para não dizer incríveis) tiveram o condão de fazer o mercado melhorar e o Copom tirar o risco fiscal de seu balanço de riscos? A resposta é simples: ancoragem de expectativas.

Em primeiro lugar, o “novo” arcabouço é um teto de gastos aguado. É um teto, mas chama diferente. A regra do antigo teto permitia crescimento real zero de despesas. No “novo” arcabouço, as despesas podem crescer acima da inflação, a depender do crescimento de receitas. Mas, ainda assim, há um teto, ainda que mais frouxo.

Com esse teto, digamos, retrátil, estava garantido que a dívida pública não entraria em uma trajetória explosiva. No entanto, temos uma dívida muita alta para o nosso nível de taxa de juros, e era preciso sinalizar que a dívida não só não era explosiva, mas que entraria em uma trajetória firme de redução. É nesse ponto que entra a meta de superávit primário. Com essa meta, Haddad estava sinalizando para o mercado o desejo do governo de reduzir a dívida pública. Para tanto, haveria uma combinação de controle frouxo de despesas com aumento da arrecadação, e a “persecução” da meta de superávit (no dizer do Copom) seria uma forma de medir o real desejo do governo de reduzir a dívida pública ao longo do tempo.

Mas note uma coisa: ao passo que a regra de crescimento de despesas está agora inscrita na Constituição, a regra de resultado primário não é, a rigor, sequer uma regra. O resultado primário está implícito na LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias), que é o orçamento do governo aprovado pelo Congresso. Qualquer dificuldade para cumprir a meta de resultado primário pode ser facilmente acomodada através de emendas à LDO.

Bem, se a regra de gastos é frouxa, se o aumento da arrecadação é incerto e se a meta de resultado primário pode ser facilmente mudada, então porque raios o mercado comprou a ideia do déficit zero para 2024??? Na verdade, não comprou. O relatório Focus indica um déficit primário de 0,8% do PIB para o ano que vem.

Sim, eu sei que agora você deve estar bem confuso. Afinal, se o mercado não acredita no Haddad e prevê um déficit de 0,8% do PIB para o ano que vem, então porque esse bafafá todo em torno da fala do Lula? O presidente não estaria somente externando algo que o mercado já espera? É aqui que entra o papel das expectativas.

Por mais que a meta seja difícil de alcançar, ela funciona como uma âncora para as expectativas. O mesmo acontece com a meta de inflação: o BC não cumpriu a meta nos últimos dois anos, mas nem por isso o mercado achou que a autoridade monetária havia desistido da meta. Sua comunicação e seus atos sempre foram na direção de garantir que os agentes de mercado permanecessem na crença de que a meta estava sendo perseguida.

Mentiras sinceras (no dizer do poeta) interessam ao mercado, e é isso que Roberto Campos deve ter dito a Fernando Haddad. É preciso manter a promessa, mesmo que todos saibam que será muito difícil cumpri-la. Claro que promessas não seguidas de atos acabam por perder a credibilidade. E era exatamente isso o que o mercado estava esperando para o ano que vem. Na medida em que fosse ficando claro que a meta não seria cumprida, Haddad até poderia mudá-la ao longo do ano que vem, mas sempre mantendo o discurso de “persecução” da meta ao longo do tempo, acompanhado, por exemplo, com um contingenciamento de despesas, para manter a credibilidade da promessa.

O pecado de Lula está em que ele já avisou que não vai cortar nada, e que a promessa é da boca para fora. Desnudou-se a mentira, que de sincera passou a ser escancarada. O resultado disso serão taxas de juros mais altas ao longo do tempo. E se a nova composição do BC for leniente, mais inflação.

Quem viver, verá

Conforme o esperado, e apesar do esperneio do presidente, a meta de inflação foi mantida em 3%, com bandas de 1,5% para cima e para baixo. A única coisa que mudou é que, a partir de 2025, a meta não precisará mais obedecer o ano calendário, será contínua. Antes de explicar o que isso significa, há que reconhecer que o presidente Lula, apesar de ser boquirroto, não é tolo. Manteve a meta em 3%, apesar de querer aumentá-la. O copo meio cheio, aqui, é reconhecer que as ponderações de Campos Neto surtiram efeito junto ao Planalto.

O que significa essa mudança de metodologia. Para falar a verdade, de prático, não significa nada. Explico.

Hoje, apesar da meta se referir ao ano calendário, o Copom já toma a sua decisão com base em um horizonte móvel de 12 a 18 meses à frente, que é o tempo necessário para que uma decisão hoje afete a inflação no futuro. A economia é um grande transatlântico, e se o comandante quiser desviar de um iceberg, precisa começar a virar o leme muito antes. Então, na prática, o horizonte de decisão já é contínuo. O que vai mudar é que o BC não precisará mais prestar contas anualmente como é hoje, e não ficou claro como será essa prestação de contas no novo sistema, se é que haverá alguma. Mas a prestação de contas está longe de obrigar o BC, não há penalização por não ter cumprido a meta em determinado ano. Então, o que realmente continuará valendo é o horizonte contínuo.

O inefável ministro da Fazenda, no entanto, apresentou a mudança como algo revolucionário, na melhor tradição do circo de pulgas que é este governo, em que cada micro iniciativa é anunciada como o “maior espetáculo da Terra”. Nas palavras do ministro, “a mudança do regime de meta é fundamental para o futuro do país”. Nada menos.

Há que se perguntar porque desse ânimo todo. É fácil de entender. Haddad e sua patota acreditam piamente que, com esse “horizonte contínuo” o BC poderá suavizar a sua atuação ao longo do tempo, não precisando apertar tanto a política monetária quando houver choques. Ora, o Banco Central JÁ FAZ isso hoje. Não por outro motivo, Campos Neto vai perder a meta de inflação esse ano pelo terceiro ano seguido. O BC não é escravo do ano calendário. Se o fosse, a taxa de juros seria muito, mas muito maior do que é hoje.

O que Haddad espera, de verdade, é poder empurrar com a barriga indefinidamente a convergência da inflação para a meta. Aparentemente, ele está confundindo não ter uma meta para o ano calendário com não ter meta alguma. Tombini fez isso: a inflação ficou consistentemente acima da meta ao longo de todo o seu mandato, a ponto de desancorar as expectativas mais longas da inflação, o que exigiu uma política monetária muito mais dura (Selic a 14,25%) quando precisou trazer a inflação de volta para a meta.

A meta contínua só vale a partir de 2025. Perguntado porquê, Haddad saiu-se com essa: “É quando começa o mandato de um novo presidente, decidimos alterar o regime para horizonte contínuo a partir dessa data”. Além da personalização de uma instituição que não deveria depender das pessoas, Haddad, com essa decisão, revela o seu lado Roberto Carlos: “daqui pra frente, tudo vai ser diferente…”. Ou seja, a partir de 2025, com o novo presidente e a nova regra, o BC estará à medida do que Haddad pensa da política monetária: linha auxiliar da política fiscal, ambas remando com força rumo ao abismo.

A má notícia para o ministro da Fazenda é que se o mercado começar a desconfiar que um novo Tombini assumiu o comando, a coisa pode realmente ficar feia. O resultado será um maior custo para trazer a inflação para a meta. Aliás, Lula, hoje mesmo, disse que “o Brasil não precisa ter meta de inflação tão rígida”. É a senha. Quem viver, verá.

Como colocar um foguete na Lua

Existem basicamente três teses sobre como levar um foguete até a Lua:

1) Existem aqueles que defendem que o foguete deve ser propulsionado com combustíveis e ter a sua trajetória controlada ao longo do trajeto.

2) Existem aqueles que defendem que os combustíveis são irrelevantes, e que o foguete vai seguir a trajetória que tiver que seguir, de acordo com forças que vão além do controle da NASA.

3) Existem aqueles que defendem que os combustíveis são contraproducentes, ou seja, quanto menos combustível melhor, inclusive porque deixa o foguete mais estável e com melhor dirigibilidade.

A NASA, que sempre ficou presa às teses do primeiro grupo, agora decidiu que vai diversificar as visões, ouvindo cientistas que defendam as teses 2 e 3. Com isso, espera chegar a decisões melhores.

Qualquer semelhança com o BC não é mera coincidência.

A resposta política do BC

Quando Lula assumiu, em 2003, o IPCA estava rodando a 12% (chegaria a 17% em meados do ano) e a Selic estava em 25%. Henrique Meirelles, então presidente do BC nomeado por Lula, não teve dúvida: elevou a Selic para 25,5% em 22/01, e novamente, na reunião de 19/02, para 26,5%, mantendo a taxa básica neste patamar até a reunião de 18/06, quando decidiu pela redução em tímidos 0,5%. Isso em um mundo em que a taxa básica nos EUA estava em suas mínimas históricas até então, 1,25%.

Faço um convite: procure alguma palavra de Lula a respeito de taxa Selic neste período. Faço outro convite: procure alguma palavra da claque petista nesse período. Os únicos que reclamavam eram os empresários da FIESP, liderados pelo então vice-presidente José de Alencar. Estes, pelo menos, guardam coerência no tempo, estão sempre reclamando da taxa de juros e do câmbio.

O contraste entre 2003 e 2023 é absolutamente acachapante. Lula deu a senha, e a claque petista vem atacando o BC tal qual matilha de cães em cima de invasor de terreno. Dado que o comportamento do BC hoje é em tudo semelhante ao comportamento do BC em 2003, há que se procurar razões para essa mudança de postura de Lula. Há duas hipóteses não excludentes: 1) Lula tem “novas ideias” a respeito de economia e 2) o presidente do BC não foi escolhido por ele, mas por sua nêmesis, Jair Bolsonaro.

A primeira hipótese contraria a imagem do “Lula pragmático” que povoou a imaginação de boa parte dos economistas e empresários preocupados com o futuro de nossa democracia. O ponto é que Lula nunca teve ideias diferentes. Na verdade, nunca teve ideia alguma sobre economia, a não ser o tosco “o consumo girando a roda do crescimento”. Para sua sorte, deu ouvidos a Antônio Palocci, o único petista do mundo com ideias razoáveis sobre economia. Hoje, o presidente conta com Fernando Haddad, que, ao contrário do que seu apelido de “o mais tucano dos petistas” faz supor, está a anos-luz de Palocci, e não tem a mínima condição ou convicção de mudar o rumo da prosa. Prova disso (mais uma) é a matéria de ontem com Guilherme Mello, secretário de política econômica de Haddad.

Mello reverbera a tese de que o BC está atuando politicamente, deixando a técnica de lado. E ele tem razão, ainda que não da forma como ele pensa. Na cabeça de Lula, e mimetizado por sua claque, está a ideia de que um presidente do BC nomeado por um inimigo político só pode estar atuando politicamente contra o seu governo (hipótese 2 acima). O ponto é que quem trouxe o BC para a arena política foi Lula e sua claque. Explico.

Muitos pensam que o principal (ou único) instrumento de que o BC dispõe para controlar a inflação é a taxa Selic. Ledo engano. Sim, a taxa de juros é o instrumento, mas o principal ingrediente dessa receita é a credibilidade do BC junto aos agentes econômicos. O conjunto da sociedade precisa acreditar que o BC irá fazer a sua lição de casa, que é manter a inflação sob controle.

Pois bem, o que acontece quando Lula e sua claque politizam o BC? O efeito dessa politização é incluir um ingrediente estranho na matriz de decisão do BC. Tecnicamente, o BC até poderia ter elementos para baixar as taxas de juros. Mas como isso não é preto no branco, e ocorreu a politização, os agentes econômicos poderiam questionar se dado movimento foi realizado por motivos técnicos ou políticos. Em outras palavras, se o BC baixou os juros por vontade ou por pressão.

O BC, para manter a sua credibilidade, precisa incluir essa politização em sua matriz de decisão. Isso significa taxas de juros mais altas por mais tempo, porque não pode restar dúvidas de que a decisão de baixar os juros foi realmente técnica. Então, Guilherme Mello tem razão, a decisão foi, também, política. Mas não no sentido que Mello, Haddad e Lula dão ao termo. Quem começou a politização foi Lula. O BC apenas reagiu para preservar a sua credibilidade, como manda o livro-texto. A manutenção da frase em que afirma que pode retomar a alta dos juros vai nessa linha. Este é o típico caso em que a pressão política provoca o efeito inverso ao pretendido.

Existem duas formas de Lula atingir seu objetivo: acabando agora com a independência formal do BC ou ir trocando os diretores até formar maioria de acordo com suas “ideias”. Em ambos os casos, a credibilidade do BC terá desaparecido e, com ela, qualquer capacidade de controlar a inflação.

O gambito do Copom

Em sua primeira reunião do ano, em 01/02, o Copom fez aquilo que todo BC sério faria se estivesse na mesma situação: manteve a polítia monetária apertada porque as expectativas de inflação estão muito longe da meta. Seguiu-se um barulho ensurdecedor do presidente e de toda a claque que o segue. Haddad fez biquinho, afirmando que o BC havia ignorado o “grande pacote fiscal” anunciado duas semanas antes com pompa e circunstância.

Roberto Campos Neto, apesar de ser um voto em nove no Comitê, assumiu a tarefa institucional de aparar arestas. Em primeiro lugar, fez introduzir uma frase na ata do Comitê, publicada uma semana depois, em que faz menção ao “grande pacote fiscal” de Haddad. Em seguida, fez uma jogada de risco, e decidiu se expor em um programa como o Roda Viva. Na minha visão, saiu-se bem na transmissão de uma mensagem de paz institucional. Alguns, inclusive, apostaram que o Copom, dali em diante, seria um pouco mais “amigável” às demandas do governo.

De nada adiantaram esses movimentos. O Copom e seu presidente não mereceram o benefício da dúvida por parte de Lula e de seu governo. A pressão acalmou durante alguns dias, para voltar com força em seguida, e tornar-se insuportável às vésperas da reunião, com direito a seminário do BNDES com a presença de prêmio Nobel e tudo o mais.

O Copom encontrava-se em uma encruzilhada: ou bem cumpria o seu papel institucional de ponderar o melhor nível para a taxa de juros consideranto a meta que lhe foi dada pelo CMN, ou cedia às pressões. O comunicado de hoje não deixa margem a qualquer dúvida: o Comitê decidiu seguir pelo primeiro caminho, fazendo valer a sua independência. A manutenção da frase “[o Comitê] não hesitará em retomar o ciclo de ajuste caso o processo de desinflação não transcorra como esperado” tem a força de um grito de guerra. Imagine o que aconteceria se o BC, não satisfeito em manter a taxa no atual patamar, a tivesse elevado…

Com o BC pintado para a guerra, resta ao governo quatro alternativas:

1) Procurar, de alguma forma, destituir cinco diretores do BC agora (em um colegiado de nove). Note que não basta remover Campos Neto. Ele é apenas um voto no Copom, e as decisões têm sido unânimes. A única vez em que não houve unanimidade com essa diretoria foi em setembro, quando o Comitê decidiu manter a taxa em 13,75%, encerrando o ciclo de alta. Na ocasião, houve dois votos por um aumento adicional de 0,25%… Ou seja, RCN é o menor dos problemas do governo.

2) Mudar a meta para a inflação de 2024 em diante. Com isso, teoricamente, o Copom teria espaço para reduzir a taxa de juros. O problema com esse movimento é que a formação das expectativas já considera a meta. Quando o Focus indica uma inflação de 4,1% para 2024, não significa que os economistas que respondem à pesquisa disponham de uma bola de cristal e calculem, com tanta antecedência, qual será a inflação do ano que vem. Lembre-se, estamos somente em março, 2024 está muito distante. O que os economistas fazem? Partindo da meta (que é 3%), avaliam que, com uma certa taxa Selic, a inflação ficará acima da meta em 1,1%. Se a meta for elevada para, por exemplo, 4%, e tudo o mais ficar constante, é só questão de tempo para que as expectativas migrem para 5,1% em 2024 (1,1% acima da nova meta). O problema não é o nível da meta, mas a capacidade/credibilidade do Banco Central de trazer a inflação para a meta, qualquer que ela seja. Esse é o princípio fundamental do sistema de metas de inflação, que trabalha, basicamente, com expectativas. Mudar a meta só bagunça o coreto, sem realmente dar maior espaço para cortes de juros. Aliás, pelo contrário, aumenta a incerteza, que é inimiga do juros baixos.

3) Continuar esperneando, com o objetivo de ter um bode expiatório para o crescimento pífio da economia.

4) Fazer um ajuste fiscal de verdade, que faça com que os agentes econômicos retomem a confiança no governo, permita a reancoragem das expectativas de inflação e, por fim, abra espaço para o início de um ciclo de cortes bastante expressivo da taxa Selic, como tivemos a partir de 2017.

O Copom fez o seu gambito. Vejamos o próximo movimento do governo.

A inflação é só um detalhe

Há exato um ano, escrevi um post intitulado A Argentina, o FMI e o sonho do financiador perpétuo. Naquele post, comento um artigo de autoria de Joseph Stiglitz no Valor Econômico, em que o Prêmio Nobel saúda o recém-assinado acordo entre a Argentina e o FMI como sendo um “divisor de águas”. Segundo Stiglitz, ao não estabelecer metas muito exigentes para los hermanos, o FMI estaria, finalmente, deixando espaço para o crescimento de países em dificuldades, o que, no final, permitiria cumprir o acordo com muito menos sofrimento.

Naquele artigo, Stiglitz faz uma única menção ao risco inflacionário, afirmando que “pode ser um problema” para economias de mercado. E só. Bem, há um ano, quando Stiglitz escreveu o artigo, a inflação da Argentina estava em 50% ao ano. Hoje está em 100%.

Mas quem está preocupado com a inflação, se o que realmente importa é fomentar o crescimento? E como a Argentina está se saindo nesse quesito? Segundo o último report da OCDE, de novembro do ano passado, a Argentina deve crescer 0,5% em 2023 e 1,8% em 2024. Não parece algo lá muito brilhante.

O Prêmio Nobel também afirmou que as altas taxas de juros estão “exacerbando” a inflação. O presidente da Turquia achava a mesma coisa, e reduziu as taxas de juros na marra em meados de 2019. Na época, a inflação rodava a 10% ao ano. Hoje está em 55%. Not a good experience.

Joseph Stiglitz foi o convidado de honra de um seminário patrocinado pelo BNDES de Aloísio Mercadante e pela FIESP. Não parece terem sido convidados economistas do mainstream. O objetivo era, claro, produzir manchetes como a que abre este post, de modo a aumentar a pressão sobre o BC.

Sinceramente, acho mais que o BC tinha que baixar a Selic para uns 6 ou 7%. Quem sabe Lula esteja certo, e devamos deixar de lado esses ultrapassados livros de economia? Se a inflação subir, paciência. Afinal, tenho como me proteger. E sempre haverá um inimigo externo em quem colocar a culpa.

Em busca de um bode expiatório

A última do PT é ameaçar destituir o presidente do BC por incompetência. Afinal, Roberto Campos Neto perdeu a meta de inflação em 2021, 2022 e, provavelmente, vai perder também em 2023. Se acontecer, Campos Neto poderá pedir música no Fantástico.

O irônico dessa proposta está no absoluto contraste entre o alegado motivo para a destituição e o seu verdadeiro objetivo. O alegado motivo é a incapacidade de controlar a inflação. O verdadeiro motivo é reduzir os juros na marra, perdendo, assim, o controle da inflação.

Para que Campos Neto não corresse esse risco de destituição (de acordo com o motivo alegado pelo PT), deveria ter aumentado muito mais a taxa de juros. Ou seja, para manter o seu emprego, o presidente do BC precisaria irritar ainda mais Lula e seu séquito, aumentando ainda mais a taxa de juros para conter a inflação. Um completo contrassenso.

Existe uma ação concertada do PT para desgastar e tentar forçar uma renúncia do presidente do BC, já que destituí-lo, a qualquer título, parece ser difícil. E, se não conseguir, pelo menos já tem um bode expiatório para o seu fracasso.

O problema é que Lula e o PT podem procurar o bode expiatório que quiserem. Quem recebeu votos para resolver os problemas do país foi Lula, não Roberto Campos Neto, como bem lembrou o fiel escudeiro Guilherme Boulos. O povo sabe disso, e vai colocar a culpa do fracasso naquele que recebeu os votos, por mais que o gabinete do ódio petista tente passar a culpa para frente.

Um poço até aqui de máguas

A se levar a sério as colunas de fofocas políticas, Haddad está um poço de mágoas com o presidente do BC, Campos Neto. Tudo isso porque o último Copom (o primeiro do governo Lula) mencionou uma “elevada incerteza” no campo fiscal. Quer dizer, não teria levado em conta o grandioso pacote de ajuste fiscal anunciado pelo ministro.

Haddad não deveria ficar chateado. Vejamos a seguir os comunicados de algumas reuniões do Copom nos últimos anos.

Copom 06/05/20: “políticas fiscais de resposta à pandemia que piorem a trajetória fiscal do país de forma prolongada”

Copom 20/01/21: “O risco fiscal elevado segue criando uma assimetria altista no balanço de riscos”

Copom 27/10/21: “recentes questionamentos em relação ao arcabouço fiscal elevaram o risco de desancoragem das expectativas de inflação”

Copom 02/02/22: “a incerteza em relação ao arcabouço fiscal segue mantendo elevado o risco de desancoragem das expectativas de inflação”

Copom 07/12/22: “a elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país e estímulos fiscais adicionais”

Copom 01/02/23: “a ainda elevada incerteza sobre o futuro do arcabouço fiscal do país e estímulos fiscais”

A primeira menção ao risco fiscal por parte da gestão de Campos Neto ocorreu no segundo Copom após o início da pandemia, em maio/20, em resposta ao grande pacote de estímulo fiscal patrocinado pelo governo. Essa menção ao risco de estímulos adicionais iria perdurar até outubro/21. Neste mês o tom muda, e entra a preocupação com o “arcabouço fiscal”. Foi o mês do “waiver day”, em que Paulo Guedes aceita a primeira de uma série de mudanças na regra do teto de gastos.

Essa menção à incerteza em relação ao arcabouço fiscal continuaria ao longo de todo o ano de 2022. No último Copom do governo Bolsonaro, foi agregada a palavra “elevada” para qualificar a incerteza, em razão da aprovação da PEC da gastança.

Chegamos então a 2023. No mundo da fantasia de Haddad, Campos Neto deveria reconhecer que um pacote mal ajambrado, que pretende repor R$ 100 bilhões dos R$ 200 bilhões da PEC da gastança, deveria fazer sumir o risco fiscal do país. Isso, em um governo em que o chefe do Executivo afirma que vai gastar mesmo, e daí?

Que permanece a elevada incerteza sobre o substituto do teto de gastos, não há dúvida. O Copom só fez reconhecer essa realidade. Se a autoridade monetária entrasse no mundo dos sonhos de Haddad, o efeito seria uma desancoragem ainda maior das expectativas de inflação. O mercado olharia para Campos como um novo Tombini, aquele que está pronto a fazer as vontades do Planalto. Já vimos esse filme antes.

A se tomar a valor da face essas fofocas, o caso demonstra o que já sabíamos, aqueles que nunca nos iludimos: o entendimento de Haddad sobre economia é tão tosco quanto o de seu chefe, tendo apenas um verniz da Vila Madalena.

Com um pé no acelerador e o outro no freio

“Não podemos tirar 10 no fiscal e zero no social”. Com essas palavras, o ministro da economia enterrou a disciplina fiscal.

Imagine por um momento que o comunicado do Copom de ontem trouxesse uma frase desse tipo: “Não podemos tirar 10 na inflação e zero no social”. Já imaginou?

Estamos em um carro em que o governo está com um pé no acelerador e o BC está com o outro pé no freio. Quanto mais o governo acelera de um lado, mais o BC precisa apertar o freio do outro, caso contrário, o carro vai entrar acelerado na curva da inflação e capotar. O resultado é um carro instável na pista.

Se o BC tivesse a “consciência social” do nosso ministro da economia, não estaria acelerando a alta dos juros agora. No entanto, Campos Neto e seus companheiros de Copom sabem que o principal programa social é evitar a inflação, que é o imposto mais perverso, pois acaba com a renda dos mais pobres.

Ao abrir mão de “tirar 10” no fiscal, o governo forçou o BC a aumentar mais as taxas de juros, para “tirar 10” na inflação. No final, alguns milhares de empregos deixarão de ser criados por causa da desaceleração adicional da atividade econômica, causada pela subida adicional dos juros. Mas, tudo bem, o auxílio eleit… quer dizer, o auxílio emergencial será pago, dando uma ajuda para os pobres que nem sabem o quanto foram prejudicados para obter essa mesma ajuda. E, de quebra, vai sobrar um dinheirinho para reforçar as emendas parlamentares e o fundo eleitoral, que ninguém é de ferro.