O que têm em comum os primeiros ministros Viktor Orbán, Boris Johnson e Benjamin Netanyahu com o ex-presidente Jair Bolsonaro? Os quatro representam a direita em seus países. O que os distingue? Os líderes de Hungria, Inglaterra e Israel fizeram questão de liderar pelo exemplo as campanhas de vacinação em seus países. Bolsonaro, não.
De nada adiantou dizer que “quem quis se vacinar teve vacina”, o que é verdade. Disponibilizar vacinas é muito, mas longe de ser o suficiente. Um líder lidera pelo exemplo, e uma campanha de vacinação começa com o exemplo que vem de cima.
Ao jogar a vacinação para o campo ideológico (a direita que defende a liberdade contra a esquerda totalitária que quer impor o que você deve fazer), Bolsonaro se desligou do que queria a maioria da população, que era simplesmente se livrar o quanto antes do vírus. Líderes de direita do mundo inteiro entenderam isso. Bolsonaro, não.
Lula, obviamente, se deixou fotografar sendo vacinado durante a campanha nacional e, ontem, novamente. Não precisa ser muito esperto politicamente para sacar que esse é o contraponto por excelência em relação a Bolsonaro. O ex-presidente perdeu a eleição para um ex-presidiário por meros 1,8% dos votos. Não tenho dúvida de que, se Bolsonaro tivesse seguido o exemplo de seus pares Orbán, Johnson e Netanyahu, a história teria sido diferente. A Covid foi o grande eleitor dessas eleições.
Lembro de uma reportagem, bem no início da pandemia, que descrevia a visita de um oficial de saúde chinês à Itália. O oficial escarnecia das medidas tomadas pelo governo italiano, afirmando que aquele nível de restrição ao movimento das pessoas estava muito longe de ser o suficiente. Era um momento em que assistíamos, estupefatos, um vídeo mostrando cidades inteiras fechadas e a construção de um gigantesco hospital de campanha em poucos dias, e nos perguntávamos, no Ocidente, se seria possível alcançar a eficiência chinesa para combater a doença vivendo sob regras democráticas.
Olhando friamente os números, o sucesso da China é incontestável. Com meros 3,6 óbitos por 100 mil habitantes, e mesmo considerando alguma manipulação dos números, a China fica a anos-luz dos principais países da Europa Ocidental e Américas (entre 2.500 e 3.000 óbitos por 100 mil) e da Europa Oriental (acima de 5.000 óbitos por 100 mil). O seu sucesso contrasta, inclusive, com o de países asiáticos, como Japão (400 óbitos por 100 mil) e Coreia do Sul (600 óbitos por 100 mil).
O problema é que o governo chinês está em uma sinuca de bico. Sem imunidade de rebanho e recusando-se a usar as vacinas desenvolvidas no Ocidente, que têm eficácia e tempo de proteção maiores, os chineses se tornaram presa fácil das variantes mais transmissíveis do vírus. Assim, não há outra estratégia possível, no momento, do que a continuidade das restrições draconianas ao movimento. Na hipótese de algum abrandamento, é perfeitamente possível que a China alcance, em alguns meses, os números, por exemplo, do Japão, o que significaria 5,5 milhões de óbitos.
O massacre da praça da Paz Celestial, em 1989, demonstrou como o governo chinês lida com protestos. Desse modo, não parece provável que protestos esparsos sejam capazes de fazer o governo chinês mudar de rumo. Aliás, pelo contrário, esses protestos fazem diminuir a probabilidade de que Xi volte atrás. Se antes, um abrandamento das medidas significaria reconhecer um erro de condução da estratégia anti Covid, agora soma-se a impressão de que o presidente chinês cede a protestos populares. Seria abrir uma caixa de Pandora no país. Isso sem contar os prováveis 5,5 milhões de óbitos.
Xi Jinping tornou-se refém de sua própria política anti Covid.
O professor Rodrigo Zeidan publicou um curto artigo na Folha, citando uma série de artigos acadêmicos que embasariam o desastre do governo Bolsonaro na administração da pandemia no país.
À parte o tom virulento do artigo, que o torna mais um panfleto partidário do que uma análise fria da situação, as citações do professor Zeidan são de difícil localização. Quer dizer, deve ser minha falta de jeito para procurar artigos acadêmicos. Dos artigos citados, só consegui achar um até o momento, More than Words: Leaders’ Speech and Risky Behavior During a Pandemic, de Ajzenman, Cavalcanti, Da Mata, analisando o efeito do discurso do presidente Bolsonaro em 15/03/2020 sobre o distanciamento social, achando um menor distanciamento após o discurso nos municípios onde Bolsonaro havia recebido mais votos.
Eu já conhecia este paper, e o seu problema, como todos os outros citados pelo autor do artigo, é ligar este fato (falta de distanciamento ou discursos do presidente) com o real aumento dos óbitos. Há, mais entre os bolsonaristas do que em outros grupos da população, dúvidas sobre a real eficácia do distanciamento social, do uso de máscaras e de vacinas como medidas para o combate à transmissão do vírus da Covid-19. Ligar o Bolsonarismo à não adoção de distanciamento social, ou da máscara ou de vacinas, portanto, é chover no molhado. O que realmente importa, no final do dia, é se morreram mais pessoas por conta deste fato. Ainda não vi nenhum artigo que fizesse essa ligação direta. Estamos em julho de 2022, já nos estertores da pandemia, e temos dados mais do que suficientes para fazer este tipo de estudo. Resolvi então, eu mesmo, armado de uma poderosa planilha Excel, tentar concluir algo com os dados até o momento.
A pergunta que este despretensioso artigo tem o objetivo de responder é a seguinte: teriam os bolsonaristas chegado a óbito em maior número do que a média da população durante a pandemia? Notem que não vamos entrar no mérito sobre medidas de prevenção, vacinas, discursos do presidente. Nada disso. A coisa é a mais simples possível: analisando o perfil dos óbitos, é possível tirar alguma conclusão?
Metodologia
Para identificar os bolsonaristas, usarei a mesma metodologia do paper citado acima: verificarei, município por município, a votação de Bolsonaro. Temos dados de óbitos por município, temos as suas populações e temos a votação. Basta procurar identificar se há alguma correlação positiva entre essas votações e o número de óbitos por Covid-19 nesses municípios.
Vamos a um exemplo numérico teórico para entender o conceito. Digamos que tenhamos 3 municípios com os seguintes números de óbitos acumulados até o momento (por milhão de habitantes):
Município A: 2.000
Município B: 2.375
Município C: 3.625
Agora, vamos verificar a votação dos 4 principais candidatos nestes 3 municípios:
Para compatibilizar esta tabela de votação com os óbitos dos municípios, precisamos estimar coeficientes que expliquem os óbitos (nossa variável dependente) com as votações recebidas pelos candidatos (nossas variáveis independentes). Podemos representar essa estimação pela equação a seguir:
As nossas incógnitas são os coeficientes a, b, c e d, que serão estimadas por uma regressão linear (mínimos quadrados) no Excel. Em nosso exemplo, para que a conta feche, os valores dos coeficientes devem ser os seguintes: a=30, b=15, c=5 e d=50. Veja:
Município A: 30 x 20 + 15 x 10 + 5 x 50 + 50 x 20 = 2.000 óbitos
Município B: 30 x 15 + 15 x 15 + 5 x 40 + 50 x 30 = 2.375 óbitos
Município C: 30 x 15 + 15 x 5 + 5 x 20 + 50 x 60 = 3.625 óbitos
Note que cada ponto percentual de voto em Bolsonaro representou 50 óbitos/milhão, enquanto cada ponto percentual de voto em Haddad representou apenas 5 óbitos/milhão. Este é apenas um exemplo teórico, montado para a conta dar exata. Mas veremos que seus resultados não são somente teóricos.
A primeira regressão, usando o total de óbitos de cada município e a votação dos 4 principais candidatos no 1º turno, resultou nos seguintes coeficientes (aproximados):
Ciro: 30
Alckmin: 16
Haddad: 7
Bolsonaro: 48
Rodei a regressão forçando o intercepto a zero, para repetir, da maneira mais fidedigna possível, o exemplo dado acima.
Para os econometristas de plantão, estes resultados têm p-value próximo de zero. Ou seja, são robustos, dentro dos limites do método utilizado. No final, vou sugerir alguns ajustes que não faço aqui por falta de instrumentos.
O resultado é muito próximo quando se controla pelo PIB/capita dos municípios. Tomei esse cuidado porque houve claramente uma clivagem de renda nas eleições de 2018, e talvez a regressão pudesse estar contaminada por esta clivagem.
Podemos observar que cada ponto percentual de voto em Bolsonaro resultou em 48 óbitos durante a pandemia, contra apenas 7 no caso de votos em Haddad. Ou, cada ponto percentual de votos em Bolsonaro significou 7 vezes mais óbitos, em cada município, do que cada ponto percentual de voto em Haddad.
Vamos à interpretação correta desse resultado: na média, considerando todos os municípios do Brasil, aqueles que tiveram mais óbitos foram aqueles com maior votação em Bolsonaro. O número em si NÃO SIGNIFICA que as pessoas morreram PORQUE votaram em Bolsonaro. Não há aqui nenhuma relação de causalidade, há apenas uma correlação. Vamos, mais à frente, gastar um tempo investigando possíveis interpretações para este resultado. Antes disso, vamos explorar algumas variações desse resultado.
Uma outra forma de vermos o mesmo resultado é rodarmos duas regressões separadas, uma com a votação de Bolsonaro e outra com a de Haddad, obteremos os seguintes resultados:
Agora não forçamos o intercepto a zero. Os números acima representam o seguinte: no caso da votação de Bolsonaro, o número-base de óbitos, na média, começa em 1.038/milhão, e cada ponto de voto em Bolsonaro significa 38 óbitos/milhão adicionais. Já no caso de Haddad, o número de óbitos começa em 3.907/milhão, e diminui em 34 óbitos/milhão a cada ponto percentual de voto em Haddad.
É interessante fazer recortes temporais e geográficos neste número.
Para um recorte temporal, segmentei esse coeficiente de Bolsonaro em semestres, conforme a tabela a seguir:
Podemos observar que a influência do voto em Bolsonaro no número de óbitos começa a ganhar força a partir de 2021. Para entender melhor, vamos comparar com a segmentação temporal do número de óbitos na pandemia.
Na última coluna da tabela, podemos observar que, em 2020, ocorreu 29% do total de óbitos até o momento na pandemia. No entanto, apenas 13% dos óbitos relacionados com o voto em Bolsonaro ocorreu em 2020. Algo começa a ocorrer a partir de 2021 para acelerar esse processo. E esse algo, na minha opinião, é a vacina. Mas vamos deixar as conclusões para a sessão de conclusões.
Do ponto de vista geográfico, também é interessante observar que os números de Bolsonaro diferem de estado para estado. É o que podemos ver na tabela abaixo, em que apresentamos o coeficiente de Bolsonaro DENTRO de cada estado:
Observe que em estados como Santa Catarina, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, o coeficiente do Bolsonaro é muito menor que o da média nacional, indicando que, nesses estados, não houve tanta influência do voto em Bolsonaro no número de óbitos. Por outro lado, em estados como Goiás, Minas Gerais, Ceará e Bahia, o coeficiente é bem maior, indicando uma influência maior do voto no número de óbitos. Difícil explicar por que isso acontece. Tentei fazer alguma correlação com a votação de Bolsonaro em cada estado (terceira coluna) ou o desvio-padrão da votação entre os municípios do estado (quarta coluna), mas não há como se concluir nada.
Conclusões
Todos os estudos citados pelo professor Rodrigo Zeidan no início deste post procuram, de alguma maneira, ligar o presidente Bolsonaro a comportamentos supostamente deletérios para o controle da pandemia. Na minha opinião, trata-se de uma abordagem fraca, por dois motivos:
Apesar de praticamente haver unanimidade científica em relação à efetividade de certos comportamentos (distanciamento social e uso de máscaras, por exemplo) para evitar a piora das condições epidemiológicas, esta não é uma unanimidade social. Há, principalmente entre os bolsonaristas, mas não somente entre eles, sérias dúvidas sobre este tipo de conduta. Relacionar a falta dessas condutas ao aumento de óbitos é um passo não aceito por todos.
Ligar as falas e atitudes do presidente ao comportamento de seus eleitores é algo que necessita de um aparato econométrico de difícil obtenção. O paper citado no início tem o seu mérito nesse sentido, mas ainda se trata de um pre-print sem revisão de pares, mesmo dois anos depois de sua primeira publicação, o que demonstra a dificuldade.
Por tudo isso, acho muito mais simples simplesmente ligar o número de óbitos diretamente à votação de Bolsonaro (e dos outros candidatos) nas eleições. Essa metodologia ultrapassa as duas dificuldades colocadas acima:
Estamos analisando diretamente o número de óbitos por Covid-19, independentemente do que levou à sua ocorrência, se foi falta de distanciamento, máscara, vacina, ou nenhuma dessas hipóteses. A morte é o resultado menos desejado por todos, bolsonaristas ou não, de modo que se trata de algo inconteste. E, com relação ao sempre citado problema da sub ou supernotificação (a depender de que lado se está), isto é irrelevante para este estudo, dado que estamos comparando Brasil com Brasil. A não ser que suponhamos que cidades mais bolsonaristas superestimaram o número de óbitos, o que não orna com a narrativa geral do próprio presidente e seus seguidores.
Não precisamos estabelecer relação causal entre as falas e atitudes do presidente com certos comportamentos de seus seguidores. Não importa o comportamento, o fato objetivo é que morreram mais pessoas em municípios que votaram mais em Bolsonaro.
É neste ponto que vem a parte mais importante deste post. Preste atenção.
Até o momento, o que fizemos foi um exercício de econometria básica. Não há, de maneira alguma, com base nesse exercício, como estabelecer relação de causalidade entre as falas e atitudes do presidente com o comportamento de seus eleitores. A única relação que se estabeleceu foi entre o voto em si e os óbitos posteriores. Pode ser que os eleitores de Bolsonaro sigam cegamente o que ele fala, mas há outra hipótese.
Em econometria, chamamos de variável oculta uma que não conseguimos medir, mas que influencia os resultados das variáveis que estamos medindo. Assim, encontramos uma relação entre as variáveis que estamos medindo, mas uma não causa necessariamente a outra. Há uma variável oculta que influencia o comportamento das duas. A hipótese aqui é que o eleitor de Bolsonaro escolheu Bolsonaro pelo mesmo motivo que escolheu adotar outros comportamentos que, no final, levaram ao óbito mais pessoas durante a pandemia. Existe um mindset por trás dessas escolhas, uma mistura, talvez (e aqui, assumo, já estou extrapolando as linhas desse pequeno estudo) de teorias da conspiração, desconfiança da mídia tradicional e da ordem institucional que tão bem caracterizam Bolsonaro e seu entorno. O ponto é que não precisava Bolsonaro ter falado em máscaras, distanciamento social ou vacinas. Estes foram temas recorrentes para este tipo de mindset, e Bolsonaro, digamos, foi apenas um catalisador dessa corrente. Serviu como um reforço pelo cargo que ocupa, mas longe de ser a origem do problema.
Enquanto se tratava de máscaras e distanciamento, a coisa estava mais para folclore do que algo realmente decisivo para os rumos da pandemia. O jogo começou a virar com a vacina. Aqui temos o erro fundamental de Bolsonaro e do bolsonarismo.
Como vimos na tabela 3 acima, os coeficientes que relacionam a votação de Bolsonaro aos óbitos são negligíveis em 2020. Ou seja, aparentemente não houve, neste primeiro ano, realmente nenhuma influência de seu discurso sobre o que interessa, o número de óbitos. A partir de 2021, no entanto, a coisa muda de figura. E a grande virada chama-se VACINA.
Aqui não se trata somente do discurso do presidente, aquela história de “liberdade” e “não vamos obrigar ninguém a tomar uma vacina experimental”. É que esse discurso encontrou uma forma peculiar de ver o mundo por parte dos seus eleitores mais fieis. É possível que, entre os eleitores de Bolsonaro, esteja a maioria dos que se recusaram, no início, a tomar a vacina. Pelo menos, é o que se deduz dos números acima. Assim, o discurso do presidente não prejudicou o país como um todo, mas somente aqueles que já pensavam como o presidente.
Bolsonaro fez exatamente o que seus eleitores mais fiéis esperavam que ele fizesse. De uma coisa não se pode acusar o presidente, de não ser fiel ao seu modo de pensar o mundo, compartilhado com seus eleitores. O triste é que, no caso das vacinas, isso aparentemente custou vidas.
Um esclarecimento final: quando comecei o exercício acima, não sabia o que ia encontrar. Estabeleci um compromisso comigo mesmo de publicar o que encontrasse, fosse o que fosse. Aí está.
Post Scriptum
Reconheço que este é um estudo limitado, produzido com as ferramentas disponíveis no Excel. Seria interessante que alguém que entenda de econometria pudesse pegar esses dados e fazer algo mais refinado em um software dedicado, tomando cuidados técnicos como efeitos fixos de municípios e estados, além de usar outras metodologias que não o de mínimos quadrados, que não é das mais robustas.
O título da coluna poderia ser “O Brasil como ele é, não como a narrativa do ‘bem contra o mal’ gostaria que ele fosse”. Mas a colunista foi mais modesta, e preferiu um título que mostra apenas parcialmente, quase por pudor, toda a riqueza de sua coluna.
Primeiro, a pandemia. Eduardo Braga (PMDB) é candidato ao governo do estado, enquanto Omar Aziz (PSD) é candidato ao senado. Ambos, como sabemos, foram expoentes da CPI da Covid. Pois bem. Braga está em terceiro lugar nas intenções de voto, atrás do atual governador, o bolsonarista Wilson Dias (União Brasil) e do ex-governador Amazonino Mendes (Cidadania). Aziz, por sua vez, está atrás de Arthur Virgílio (PSDB) na corrida pela única vaga ao Senado.
Há duas hipóteses, levantadas por um analista político local, para esses desempenhos sofríveis até o momento: 1) o tema da pandemia seria muito dolorido para a população local e, portanto, não seria de bom tom explorar o assunto e 2) os governadores foram poupados pela CPI, que centrou fogo no governo federal. Dessa forma, o atual governador teria saído ileso. Eu acrescentaria uma terceira hipótese, de alguma forma ligada à primeira: o uso político da pandemia não pegou bem junto a uma população que sofreu na pele seus efeitos. São apenas hipóteses, claro.
Mas existem algumas pérolas escondidas na coluna, oferecidas pelo analista entrevistado, e que merecem o devido destaque.
– Bolsonaro não perde votos por conta da pandemia, mas porque reduziu geral o IPI, o que prejudicou a Zona Franca de Manaus;
– Os ribeirinhos acham (“equivocadamente”, segundo o analista) que os indígenas atrapalham o desenvolvimento econômico da região. Quem acompanha a saga do linhão Manaus-Boa Vista sabe o quão “equivocada” é essa visão;
– A defesa da Amazônia ganha votos no eixo Rio-São Paulo-Brasilia, mas não no Amazonas;
– O assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira tem influência zero nas eleições locais.
Pelo visto, a população do Amazonas está mais preocupada, vejam só, com o seu dia-a-dia, do que com pautas importadas. O analista local acha mais provável a reeleição do atual governador. Será interessante conferir.
Gosto de ler o Fernando Reinach. Suas colunas sempre trazem descobertas interessantes em vários campos da ciência e, durante a pandemia, era uma referência serena e objetiva para entender a dinâmica da doença.
No entanto, a coluna de hoje está inexplicavelmente enviesada. Comecei a ler com interesse, pois chamou-me a atenção a chamada, que afirmava que um estudo indicava que mais de 50 mil mortes poderiam ser colocadas nas costas do governo Bolsonaro. “Como será que chegaram nesse numero?”, pensei.
Reinach começa anunciando que um estudo estimou de maneira mais fidedigna o número de óbitos por Covid. Até aí, tudo bem, sabemos que os números publicados pelos diversos órgãos de saúde ao redor do mundo são inexatos, e é sempre bom tentar chegar a uma estimativa mais próxima da realidade.
O problema é que você vai lendo, e a única informação é que, no Brasil, houve 332 óbitos/100 mil, contra a média mundial de 194 e, na Nova Zelândia, apenas 0,8. Só isso. Daí, o colunista conclui que, pelo menos, 50 mil óbitos se devem ao governo Bolsonaro, sem esclarecer de onde vem esse número.
Para tentar uma explicação, a primeira coisa que fiz foi estimar o número de óbitos no Brasil se o nosso número de óbitos per capita fosse igual à média global. Se tivéssemos 194 óbitos/100 mil ao invés de 332, teríamos tido 300 mil óbitos a menos. Ou seja, essa conta não explica os 50 mil óbitos de Reinach. Continuava o mistério da origem desse número.
Fui atrás do estudo, para ver se lá encontrava alguma explicação. Saí frustrado. O estudo é meramente descritivo, não entrando no mérito das causas das diferenças entre óbitos dos diferentes países e regiões. Portanto, concluí que Reinach tirou este número cientificamente da sua própria cabeça.
O estudo trás alguns fatos interessantes, e que podem, eventualmente, colocar em dúvida a correlação que o colunista faz entre as mortes por Covid e o governo brasileiro.
1) Em primeiro lugar, não existe somente a Nova Zelândia no mundo. Com a menção ao país da Oceania, com apenas 0,8 óbitos/100 mil, o colunista quer mostrar o incrível sucesso que outros países tiveram no combate à pandemia, em contraste com o traste que temos aqui no palácio do Planalto. No entanto, poderia mencionar também países como a Itália (376 óbitos/100 mil), Portugal (336), Espanha (314), Colômbia (327), México (543), Venezuela (478), África do Sul (462), Rep. Tcheca (361), Polônia (397), Romênia (493), entre outros. Será que todos esses países são comandados por homicidas?
2) A média global de 194 óbitos/100 mil está bem puxada para baixo pelos números da China, que apresenta apenas 1,0 óbitos/100 mil. Se desconsiderarmos a China, a média global sobe para 240 óbitos/100 mil, um número um pouco mais próximo do nosso.
3) Trata-se de um estudo estatístico e, como todo estudo dessa natureza, os autores estabelecem intervalos de confiança para as estimativas. No caso do Brasil, temos um intervalo de 293 a 419, com valor esperado de 332 óbitos/100 mil. Considerando que a média global ex-China estaria no intervalo de 190 a 306, podemos dizer, estatisticamente, que é possível que o Brasil esteja na média global ex-China, dentro do intervalo de confiança de 95% do estudo. É pouco provável, mas é possível.
4) São Paulo, estado liderado por um político que costumava encher a boca para dizer que estava “seguindo a ciência”, teve, segundo o estudo, 362 óbitos/100 mil, acima, portanto, da média nacional. Seria Doria também um homicida?
Enfim, como disse acima, pode até ser que o governo Bolsonaro tenha influenciado no número de óbitos no Brasil por Covid. Mas não é esse estudo que prova a hipótese, como afirmou o colunista.
Trata-se, portanto, de um artigo político com roupagem científica. O próprio uso da palavra “genocídio” denuncia a sua politização. Podemos até discutir se houve ou não homicídio por omissão. Mas genocídio é algo diferente, é o assassinato em massa de um minoria étnica. Usar essa palavra para fechar o artigo serve somente de panfletagem. Uma pena que Fernando Reinach tenha abandonado a ciência para se dedicar à política rasteira.
PS.: prepare-se para ouvir esse número sendo repetido por aí como se fosse uma verdade científica. Afinal, foi um cientista que afirmou, “com base” em um estudo publicado na Lancet.
A Economist publicou uma pequena matéria sobre os efeitos do fechamento de escolas na América Latina.
Fui pesquisar algum dado público sobre fechamento de escolas no mundo. A Unesco mantém uma base de dados a respeito. O gráfico abaixo indica o número de semanas durante as quais as escolas de uma amostra de países ficaram parcial ou totalmente fechadas.
“Totalmente fechadas” significa todas as escolas do país fechadas 100%, enquanto “parcialmente fechadas” pode significar uma parte das escolas do país fechadas, ou 100% das escolas parcialmente fechadas, ou uma combinação dos dois. Como o período analisado vai de março de 2020 a outubro de 2021, temos cerca de 84 semanas. Portanto, este seria o número máximo de semanas em que as escolas poderiam permanecer fechadas.
Podemos observar que o Brasil está entre os países que mais tempo fechou suas escolas, total ou parcialmente. Está acompanhado basicamente de países da América Latina, daí a preocupação demonstrada pela reportagem da Economist com a região.
Mesmo países mais desenvolvidos, que aparecem próximos do Brasil, como Coreia do Sul e EUA, apresentam um número muito menor de semanas com as escolas 100% fechadas no país inteiro, indicando que fizeram um trabalho mais inteligente de seleção das escolas que fechariam. Os países da Europa, por outro lado, mantiveram suas escolas fechadas, em média, 28,6 semanas, sendo 12,2 semanas fechadas totalmente e 16,4 semanas fechadas parcialmente. Estes números para o Brasil são 78, 38 e 40 semanas, respectivamente. Ou seja, mantivemos as escolas totalmente fechadas o triplo da média europeia, e parcialmente fechadas 2,5 vezes mais que os países da Europa.
O artigo da Economist termina de maneira melancólica. Vou aqui traduzir o último parágrafo:
“As desigualdades aumentarão. Crianças pobres, com conexões de internet fracas ou inexistentes, sofreram desproporcionalmente. Antes da pandemia, os jovens de 15 anos na América Latina estavam, em média, três anos atrás de seus colegas da OCDE em leitura, matemática e ciências, de acordo com os testes internacionais do Pisa. Eles agora vão ficar mais para trás. Eles podem perguntar por que políticos, professores e pais não pressionaram para que as escolas reabrissem mais cedo”.
E, antes que coloquem 100% da culpa na turma do “fique em casa”, vale observar que este foi um fenômeno muito latino-americano, e o “fique em casa” foi global, com algumas poucas exceções, como a Suécia. Australia e Nova Zelândia, para não falar de China e Japão, tiveram políticas draconianas de isolamento. Nem por isso suas escolas ficaram fechadas durante tanto tempo, pelo contrário.
O problema, no meu entender, foi o velho descaso com a educação, que faz parte do DNA latino-americano. A pergunta sugerida pela Economist tem a mesma resposta à pergunta de porque a educação na América Latina é, em geral, uma lástima: políticos, professores e pais não estão realmente preocupados com isso.
Há muito venho falando que os jornalistas precisariam de uma formação melhor em matemática, até para que possam defender seus pontos com mais propriedade e credibilidade. A falha dessa formação acaba por desmoralizar a própria agenda defendida, às vezes até injustamente.
O caso de hoje é a campanha na imprensa pela volta da obrigatoriedade do uso de máscaras, principalmente nas escolas.
Não vou aqui entrar no mérito da questão, mesmo porque não sou infectologista. Meu ponto é somente relativo ao exemplo usado pelo jornalista para ilustrar a preocupação da presidente da APEOESP, a deputada estadual petista professora Bebel.
Segundo o site do sindicato dos professores da rede estadual de ensino de SP, 182 casos de Covid foram registrados em 16 dias.
Considerando que a rede estadual de SP conta com 3,5 milhões de alunos, fora professores e funcionários, temos uma média de 3 casos/milhão/dia. Perto dos 125 casos/milhão/dia registrados no estado de SP nos últimos 7 dias, segundo dados do ministério da Saúde, essa incidência nas escolas estaduais paulistas é um zero estatístico.
Claro, sempre se poderá dizer que o site da APEOESP não registra todos os dados da doença. Ok, digamos que seja verdade. Então por que raios esses dados foram citados na reportagem??? Eu digo porque: as pessoas, em grande parte, incluindo o jornalista, não fazem essa conta. Elas olham o número absoluto, 187 casos em 11 dias somente nas escolas, e realmente acreditam que se trata de algo assustador. Um jornalista minimamente formado em matemática descartaria usar esse número na reportagem, por depor contra a tese da matéria.
Com reportagens dessa qualidade, o uso obrigatório de máscaras continuará sendo um desejo distante.
Entrevista com especialista que condena o fim da obrigatoriedade do uso de máscaras. Muito cedo ainda, diz a especialista, sem dar uma pista de quando exatamente seria o momento para isso.
O que me chamou a atenção foi a citação da Coreia do Sul como contra-exemplo. Apesar de distribuírem máscaras de boa qualidade para a população, a baixa taxa de vacinação teria posto tudo a perder.
Bem, está tudo errado. Em primeiro lugar, achei estranha a afirmação de que a Coreia estaria atrasada na vacinação a essa altura do campeonato. Fui checar. Na verdade, o país é um dos mais adiantados, conforme podemos ver no gráfico abaixo. Além disso, é matematicamente impossível, em um país com uma grande população de idosos como a Coreia, vacinar 87% da população sem vacinar os idosos.
Se houve vacinação, decorre que a distribuição de máscaras em si aparentemente não foi suficiente para evitar um grande surto na Coreia. Então temos três falhas no raciocínio da especialista, uma factual e duas de lógica:
1) a factual é a informação sobre a vacinação;
2) a primeira falha lógica se refere à baixa vacinação na Coreia como causa do surto. Ora, se a vacinação lá estivesse baixa, o problema não estaria na falta de máscaras, mas na falta de vacinação. Um país como o Brasil, com alta taxa de vacinação, poderia, em determinado momento, abrir mão das máscaras. A referência à baixa vacinação da Coreia, na verdade, reforça o case pelo abandono das máscaras em países com alta taxa de vacinação;
3) a segunda falha lógica é afirmar que a Coreia distribui máscaras de excelente qualidade para toda a população. Se isso for verdade e, mesmo assim, o país enfrenta um surto, isso depõe contra as máscaras, não a favor.
Mas essas falhas de argumentação não são nem o ponto mais contraditório da matéria. A grande questão é que uma decisão tomada com base no parecer de um comitê científico está sendo contestada por especialistas. Fica parecendo que a ciência tem a última palavra, desde que eu concorde com ela.
Ontem fui a um bar, desses com mesinhas na rua, para o happy hour semanal com minha esposa. Foi a primeira vez, desde março de 2020, que saímos na rua e entramos no bar sem precisar usar máscaras.
O bar e a rua estavam fervilhando de gente. Grupos de amigos e casais em sua vida normal, curtindo o início do fim de semana. Mas havia uma energia diferente. Lembrei da foto que ilustra este post.
Trata-se, talvez, da foto mais icônica da história da fotografia. O regozijo transborda da foto e o beijo apaixonado do marinheiro na enfermeira marca a alegria de ter deixado uma guerra terrível para trás.
Tive a mesma sensação ontem. Deixar de usar máscaras marca o fim de uma guerra, em que ficamos enfurnados em casa, longe da família e dos amigos, com as ruas vazias e o comércio e escolas fechados. Uma guerra triste, em que muitos entes queridos foram levados pela doença. Mas uma guerra que ficou para trás, graças ao engenho humano, que conseguiu desenvolver vacinas em tempo recorde. As pessoas na rua, sem máscaras, estavam como que extravasando essa alegria.
Os realistas de plantão dirão que a guerra ainda está longe de acabar. Casos aumentam na Europa e na Ásia, e é questão de tempo para que aumentem aqui também. Sim, isso é verdade. Agora, imagine que um realista desse tipo batesse no ombro do marinheiro e interrompesse o beijo apaixonado, para falar que a guerra, na verdade, ainda não tinha terminado. Veríamos ainda um muro sendo erguido em Berlim, a crise dos mísseis de Cuba, as guerras da Coreia, do Vietnam, do Afeganistão, do Iraque, da Ucrânia, as torres gêmeas…
O realista está correto. A guerra nunca acaba de verdade. Mas há momentos em que é preciso comemorar. As máscaras são um símbolo da guerra contra a Covid, e a sua dispensa é um sinal de vitória. A mensagem é que deixamos o pior para trás, e vamos conviver com a doença como convivemos com muitas outras, na base da vacina e do tratamento. Definitivamente, não voltaremos ao quadro que vivemos em 2020 e parte de 2021. Poderemos lutar em outras guerras. Mas essa está vencida.
PS.: aqui não vai absolutamente nenhuma crítica a quem deseja e acha importante continuar usando máscara. Cada um faz a sua avaliação particular de risco e benefício, e toma a decisão que melhor se adequa a essa avaliação. O que inclui também respeitar quem toma a decisão de não usar máscara, porque fez a mesma avaliação e chegou a uma conclusão diferente.
“O número de crianças mortas por Covid é insignificante”. Com essa frase, o presidente Jair Bolsonaro procurou diminuir a importância da vacinação de crianças contra a Covid.
Há basicamente três motivos levantados por aqueles que minimizam a importância da vacinação de crianças:
Trata-se de uma doença de velhos, não de jovens, e muito menos de crianças. É neste contexto que se encaixa a frase do presidente.
A vacina não serviria como inibidor de transmissão, e a avalanche da ômicron provaria a tese. Portanto, o argumento da imunidade de rebanho, que poderia ser usado para justificar a vacinação de crianças, não se aplicaria.
Trata-se de uma vacina “experimental”, em que pouco se conhece seus efeitos de longo prazo.
Neste post, vou me ater ao primeiro ponto. O terceiro ponto foi competentemente abordado pelo meu amigo Paulo Buchsbaum no post Histórias movem as pessoas. Já em relação ao segundo, até onde eu saiba, não há evidências nem para um lado, nem para o outro. E, como diz meu amigo e companheiro de blog Marcelo Porto, não parece ser muito ético usar as crianças como escudo protetor para uma doença que é mais letal em outras faixas etárias. Claro, se os pontos 1 e 3 não puderem ser contestados adequadamente. Se o forem, a vacinação de crianças se justifica por si mesma.
Particularmente prefiro os dados do SIM, e o gráfico abaixo mostra por quê.
O SIM disponibiliza dados desde 2009 até 2019, enquanto o Portal da Transparência começa a sua série em 2015, terminando agora em 2022. As barras representam o crescimento de ano para ano nas duas séries. Observe como o crescimento de óbitos pelo SIM é muito mais constante e próximo do crescimento populacional, que é o que se poderia esperar. Já o crescimento do número de óbitos registrados em cartório é muito mais errático e, principalmente, não guarda relação com o crescimento populacional. Em 2016, por exemplo, o número de óbitos, segundo o Portal da Transparência, aumentou cerca de 13% em relação a 2015 e, em 2018, quase 11%, números pouco confiáveis. Em 2020 e 2021 o crescimento do número de óbitos é maior por conta da Covid, mas é difícil tirar uma regra, considerando o comportamento errático anterior.
Infelizmente, os dados do SIM terminam em 2019. Portanto, não temos ainda os dados dos óbitos em 2020 e 2021 de acordo com este sistema. No entanto, há um outro sistema, específico para SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), que tem dados mais atualizados. Trata-se da Vigilância de SRAG dentro do DataSus. São bases de dados gigantes, pois agregam informações das mais diversas sobre SRAG. Com isso, podemos conferir os dados do post abaixo, publicado pelo site Poder 360:
Explorando os dados da Vigilância de SRAG, cheguei em 279 e 270 óbitos por Covid em 2020 e 2021 respectivamente, para crianças entre 5 e 11 anos de idade. Portanto, compatível com o número apresentado no post.
Já para a média de mortes de crianças entre 5 e 11 anos de idade, precisamos lançar mão do SIM. O post diz que este cálculo foi feito entre 2016 e 2020, mas o ano de 2020 não está disponível neste site. Fiz a conta com os anos de 2016 a 2019. Além disso, a estratificação do SIM é de 5 a 9 anos e 10 a 14 anos. Não há, portanto, a estratificação de 5 a 11 anos. Assumi, então, uma regra de linearidade, e considerei que os óbitos entre 10 e 11 anos representam 2/5 dos óbitos entre 10 a 14 anos. Fazendo estes cálculos, cheguei a uma média de óbitos nessa faixa etária de 5.005 por ano. Com essa base, os óbitos por Covid em 2020 representam 5,4% da média de óbitos nessa faixa etária. Um número, portanto, menor do que os 7% do post.
Mas este não é o ponto principal do post. 7% ou 5,4% são números igualmente pequenos, não chamam muito a atenção. O que realmente chama a atenção no post é a Covid estar em 2º lugar como a principal causa mortis nessa faixa etária.
Usando a base de dados do SIM entre 2016 e 2019, e fazendo o cálculo descrito acima para inferir os óbitos na faixa de 5-11 anos, eu chego no seguinte ranking:
Para fazer esse ranking, usei como critério as CIDs (código internacional de doenças). Ou seja, o óbito precisa ter uma CID concreta. No post do Poder360, por exemplo, é incluído “doença circulatória”, que engloba vários CIDs. Por isso, não entra no meu ranking.
Agora, a interpretação.
Podemos ler este gráfico de duas maneiras: maximizando ou minimizando o problema da Covid. A leitura que maximiza o problema da Covid vai dizer que a doença já se encontra entre as principais causas de morte de crianças. Podemos dizer que é a segunda causa, estatisticamente empatada com agressões, afogamento e leucemia. A leitura que minimiza a importância da doença vai nos dizer que a Covid se perde no meio de uma série de outras causas, representando apenas 5,4% dos óbitos nessa faixa etária.
Antes de passar para a parte opinativa do post, apenas um adendo metodológico, envolvendo os dados dos cartórios. Infelizmente, o Portal da Transparência estratifica os óbitos somente em menores de 9 anos. Essa estratificação inclui a mortalidade infantil dos bebês até 1 ano de idade, que representaram, em 2019, segundo o SIM, 79,7% das mortes de crianças menores de 9 anos. Por outro lado, segundo os dados da Vigilância SRAG, os óbitos por Covid de bebês de menores de 1 ano totalizaram cerca de 11% dos óbitos nessa faixa etária nos anos de 2020 e 2021. Portanto, a estratificação do Portal da Transparência é inútil para inferir qualquer informação sobre a incidência da Covid nessa faixa etária, pois os óbitos de bebês menores de 1 ano distorcem os dados.
A ilusão da objetividade
A figura abaixo é clássica na ilusão de ótica: o que você vê, uma moça ou uma velha? O desenho é único, mas está sujeito à interpretação de quem vê.
A matemática tem uma aura de objetividade. Números são números, não há como argumentar que 2 + 2 = 5. No entanto, como vimos acima, os mesmíssimos números podem ser usados para se construir a narrativa que se queira. Afinal, a Covid é uma doença importante ou insignificante na faixa etária de 5 a 11 anos de idade? Estamos vendo uma moça ou uma velha?
Esta discussão, na verdade, somente seria relevante se a vacinação fosse obrigatória. Neste caso, haveria uma interpretação única, imposta, a de que a letalidade da Covid em crianças merece uma resposta dura das autoridades sanitárias. Mas não é o caso, pelo menos por enquanto. O que se tem, como sempre se teve, são campanhas de vacinação.
A interpretação fica a cargo dos pais. Se os pais entendem que este número é “insignificante”, podem optar por não vacinar, assumindo o mesmo risco de óbito por leucemia, por exemplo, conforme vimos no gráfico acima. Imagine que houvesse uma vacina que diminuísse a probabilidade de se desenvolver leucemia: será que esses mesmos pais jogariam com a sorte?
Por outro lado, pais que interpretam esses números de maneira alarmante, gostariam de poder contar com a vacina para os seus filhos. E é neste ponto que o governo Bolsonaro pisou na bola. Ao propositalmente postergar o início da vacinação nessa faixa etária, o governo atrasou a opção que muitos pais queriam para os seus filhos. Para um político que gosta de dizer que respeita a liberdade das pessoas, neste caso Bolsonaro não respeitou a liberdade dos pais de vacinarem seus filhos, ao adotar chicanas que atrasaram o processo.
Infelizmente não tenho mais filhos nessa faixa etária (que saudades!). Se eu tivesse, entendo que a probabilidade joga pela vacinação. Portanto, eu iria vaciná-los. Afinal, cresci em um mundo em que as vacinas, assim como os remédios de maneira geral, eram consideradas um grande avanço da humanidade, e que permitiram uma vida mais longa e saudável. Não mudei de ideia.