Fé e ciência trabalham com verdades. A primeira, com a verdade revelada. A segunda, com a verdade provada cientificamente.
Essa divisão, que parece, em princípio, clara e cristalina, só funciona até a página 2.
Ao que parece, Leonardo da Vinci foi um gênio universal, que dominava todos os campos do conhecimento humano. Foi o último, pois o campo do conhecimento humano se multiplicou de tal forma desde então, que é impossível a um ser humano dominar todo o conhecimento adquirido e acumulado durante séculos.
Esse enorme acúmulo de conhecimentos fez entrar no campo da ciência algo característico do campo da fé: a fé em uma verdade revelada. Os cientistas passam a ser os “sacerdotes” dessa nova crença, que nós, leigos, acolhemos com fervor religioso. Desconhecendo o método científico, acolhemos a palavra dos cientistas como “a revelação”.
E quando os cientistas não concordam entre si?
Aí se formam as igrejas dentro da ciência, cada uma com seu rebanho. Cada pessoa escolhe a “sua” igreja de acordo com suas convicções pessoais e ideológicas, mandando às favas o método científico, que poucos sabem do que se trata.
Esse debate sobre o uso da cloroquina é exatamente isso. Há profissionais de saúde que advogam seu uso porque teriam tido efeitos bastante positivos no tratamento de doentes da Covid-19. E há outros que afirmam que nada pode ser afirmado. Em quem acreditar?
A ciência, assim como a fé, tem seus cânones. E o artigo de fé máximo da ciência é o método científico. O que não segue o método científico é charlatanismo. Ou, para usar o léxico da fé, heresia.
Voltemos ao caso da cloroquina. Qualquer remédio, desses que se vendem em farmácia ou são administrados em hospitais, passou por 3 fases de testes: a primeira, preliminar, mede a segurança de sua administração em seres humanos. A segunda faz testes em pequenos grupos para verificar se vale a pena o investimento em testes mais amplos e, por isso, mais caros. E a terceira fase são testes controlados estatisticamente, feitos com grupos maiores, e que levam meses para chegar a conclusões que permitem aos órgãos de saúde aprová-los para uso da população. Os testes com a cloroquina, assim como com outras substâncias, estão no início na fase 3 em várias partes do mundo. Não há testes estatisticamente controlados que comprovem a sua eficácia.
Tenho lido e ouvido muito por aí que os médicos da Prevent Senior vêm aplicando a cloroquina com sucesso. No entanto, não vi os números em lugar algum. Quantos pacientes foram tratados? Quantos não foram? Qual o percentual de recuperação em cada grupo? Qual foi o contra factual usado? Qual o papel da interação de outras drogas?
A Bíblia dos cientistas é o artigo científico. Nele, o cientista coloca no papel o método que usou para chegar aos resultados a que diz ter chegado. Este artigo, então, fica sob o escrutínio de outros “sacerdotes”, de modo a garantir a robustez dos resultados. Onde está o artigo dos médicos da Prevent? Como podemos verificar a robustez dos resultados? Por enquanto, só ouvi coisas do tipo “diminuiu o número de mortes”. Isso não é lá muito científico. Claro que mesmo remédios experimentais podem ser administrados em pacientes que já não têm outra esperança. Isso acontece no mundo inteiro e nos melhores hospitais. Isso é uma coisa. Outra coisa é o órgão estatal que regula esses assuntos dar o seu carimbo em um remédio que ainda não passou por todas as fases de testes, para uso generalizado da população.
Os médicos podem prescrever (e estão prescrevendo) a cloroquina para os seus pacientes. Mas é por sua conta e risco. Tanto é assim que os pacientes precisam assinar um termo de ciência e responsabilidade antes de receber o remédio. Os pacientes são avisados de que são cobaias. O que querem os médicos que estão pressionando o governo é se livrar dessa responsabilidade, pedindo que o ministério da saúde diga que a coisa é segura e funciona, mesmo sem ter passado pelos testes científicos de praxe.
Fé e ciência se baseiam em verdades. E a verdade, no caso da cloroquina, é que o debate já há muito deixou de ser científico.