Extensão da quarentena?

Vou dizer uma coisa: se a curva paulista continuar nessa mixórdia, vai ser difícil justificar politicamente uma extensão da quarentena após o o dia 22 em São Paulo.

PS: note que eu disse “politicamente”. Tecnicamente pode até ter justificativa, mas, como tudo que envolve interação entre as pessoas, é a política que decide no final.

PS2: não se trata de torcida nem contra nem a favor. Essa observação pretende ser apenas uma constatação da realidade.

Cadê o número de hospitalizações?

Diz o secretário municipal de saúde da cidade de São Paulo que já foram criados 1.662 leitos exclusivamente para pacientes com coronavírus. A reportagem não diz, mas estes não devem ser todos leitos novos, como os criados nos hospitais de campanha. Muitos hospitais foram reorganizados com alas exclusivas para o corona, e esses leitos devem estar sendo contabilizados nesse total.

O secretário afirma que 60% desses leitos já foram ocupados. Isso significa aproximadamente 1.000 pacientes. Como, até ontem, tínhamos 5.000 casos notificados na cidade, isso representa 20% do total.

As estatísticas de Wuhan (não sei se foram confirmadas em outras localidades) indicaram que 15% dos contaminados precisaram de alguma internação hospitalar. Este número pode estar superdimensionado, pois nem todos os contaminados foram testados.

Para que o índice de hospitalização da cidade de São Paulo igualasse o de Wuhan, seria necessário que houvesse 6.666 casos na cidade, ou 33% a mais. Em outras palavras, se a subnotificação em São Paulo fosse a mesma de Wuhan, teríamos 33% casos a mais neste momento.

O interessante é que o Ministério da Saúde, em seu boletim de ontem, afirmou que 4.436 pessoas estão hospitalizadas no país inteiro, o que representa 21% do total de casos. Vale aqui, portanto, o mesmo raciocínio.

O número de hospitalizações seria uma boa medida do avanço da epidemia. Pena que este número não seja divulgado de maneira recorrente.

Estatísticas da Covid-19

Trago hoje seis gráficos.

Três gráficos mostram a evolução do número de casos/capita (média móvel de 3 dias), considerando o início de cada série quando ocorre 1 caso/milhão de habitantes.

Três gráficos mostram a evolução do número de mortes/capita (média móvel de 3 dias), considerando o início de cada série quanto ocorre o caso #150.

Nos gráficos que mostram o Brasil contra Europa e EUA, tanto em número de casos quanto de mortes, a curva brasileira mostra-se bem mais suave, quase estável. Os números divulgados assustam (ultrapassamos mil mortes!), mas o fato é que o ritmo de crescimento tem sido bem contido.

Para aqueles que acham que as medidas de distanciamento social não têm nada a ver com esse resultado, trago também a comparação dos números da Suécia com os seus pares nórdicos. Os governantes suecos resolveram, voluntariamente, brindar a humanidade com um experimento que, de outra forma, teria sido impossível: manter uma população exposta à epidemia com medidas brandas de distanciamento social, confiando nos hábitos de higiene do povo. Com esse experimento, podemos constatar que o número de mortes/capita é bem mais elevado na Suécia do que nos seus pares nórdicos. A única diferença relevante entre esses países foram as medidas de contenção social. Obrigado, governantes suecos, por usarem a população do seu país como cobaia. A humanidade agradece!

A natureza do perigo

Alguns dias atrás, Osmar Terra afirmou que haveria menos mortes no Brasil de Coronavírus do que de pessoas que morreriam no Rio Grande do Sul de gripe sazonal (950, segundo ele). Bem, não tenho a fonte que ele usou para esse número, se foi no ano passado ou é uma média de vários anos. O fato é que estamos ainda longe do pico, e o número de mortes já ultrapassou 1.000 no país.

Mas isso tudo (a previsão do deputado e o fato dessa previsão já estar velha) é irrelevante. O problema é conceitual.

Como o próprio deputado diz, os casos e mortes de gripe são sazonais. Ou seja, acontece todo ano, com um pouco mais ou um pouco menos de virulência. Por isso, o sistema de saúde já está preparado e dimensionado para isso. E, não menos importante, há vacina para gripe sazonal. Ou seja, o número de casos e mortes é bem menor do que seria sem a vacina.

O coronavírus, por outro lado, é algo novo. Portanto, não é sazonal, e o sistema de saúde não está devidamente preparado. Às doenças normais, se ADICIONAM os casos de coronavírus. E o pior, não há vacina, a coisa pega a população sem nenhuma proteção.

Pode ser até que o deputado esteja certo, e haja menos casos e mortes de coronavírus do que as provocadas pela gripe sazonal. Mas não é este o ponto. A questão é que, em um balde cheio de água, um copo a mais o fará transbordar. E, com o sistema de saúde transbordando, haverá não somente mais mortes por coronavírus, mas também por outras doenças ou acidentes que não poderão ser tratados adequadamente. Mais uma vez: os casos de coronavírus serão ADICIONADOS às outras doenças que já abarrotam o nosso sistema hospitalar. O problema não é o número em si de casos e mortes, o problema é adiciona-los ao sistema.

Causa-me espécie que um suposto especialista em saúde pública cometa um erro tão básico. A não ser que não seja um erro.

A fé na ciência

Fé e ciência trabalham com verdades. A primeira, com a verdade revelada. A segunda, com a verdade provada cientificamente.

Essa divisão, que parece, em princípio, clara e cristalina, só funciona até a página 2.

Ao que parece, Leonardo da Vinci foi um gênio universal, que dominava todos os campos do conhecimento humano. Foi o último, pois o campo do conhecimento humano se multiplicou de tal forma desde então, que é impossível a um ser humano dominar todo o conhecimento adquirido e acumulado durante séculos.

Esse enorme acúmulo de conhecimentos fez entrar no campo da ciência algo característico do campo da fé: a fé em uma verdade revelada. Os cientistas passam a ser os “sacerdotes” dessa nova crença, que nós, leigos, acolhemos com fervor religioso. Desconhecendo o método científico, acolhemos a palavra dos cientistas como “a revelação”.

E quando os cientistas não concordam entre si?

Aí se formam as igrejas dentro da ciência, cada uma com seu rebanho. Cada pessoa escolhe a “sua” igreja de acordo com suas convicções pessoais e ideológicas, mandando às favas o método científico, que poucos sabem do que se trata.

Esse debate sobre o uso da cloroquina é exatamente isso. Há profissionais de saúde que advogam seu uso porque teriam tido efeitos bastante positivos no tratamento de doentes da Covid-19. E há outros que afirmam que nada pode ser afirmado. Em quem acreditar?

A ciência, assim como a fé, tem seus cânones. E o artigo de fé máximo da ciência é o método científico. O que não segue o método científico é charlatanismo. Ou, para usar o léxico da fé, heresia.

Voltemos ao caso da cloroquina. Qualquer remédio, desses que se vendem em farmácia ou são administrados em hospitais, passou por 3 fases de testes: a primeira, preliminar, mede a segurança de sua administração em seres humanos. A segunda faz testes em pequenos grupos para verificar se vale a pena o investimento em testes mais amplos e, por isso, mais caros. E a terceira fase são testes controlados estatisticamente, feitos com grupos maiores, e que levam meses para chegar a conclusões que permitem aos órgãos de saúde aprová-los para uso da população. Os testes com a cloroquina, assim como com outras substâncias, estão no início na fase 3 em várias partes do mundo. Não há testes estatisticamente controlados que comprovem a sua eficácia.

Tenho lido e ouvido muito por aí que os médicos da Prevent Senior vêm aplicando a cloroquina com sucesso. No entanto, não vi os números em lugar algum. Quantos pacientes foram tratados? Quantos não foram? Qual o percentual de recuperação em cada grupo? Qual foi o contra factual usado? Qual o papel da interação de outras drogas?

A Bíblia dos cientistas é o artigo científico. Nele, o cientista coloca no papel o método que usou para chegar aos resultados a que diz ter chegado. Este artigo, então, fica sob o escrutínio de outros “sacerdotes”, de modo a garantir a robustez dos resultados. Onde está o artigo dos médicos da Prevent? Como podemos verificar a robustez dos resultados? Por enquanto, só ouvi coisas do tipo “diminuiu o número de mortes”. Isso não é lá muito científico. Claro que mesmo remédios experimentais podem ser administrados em pacientes que já não têm outra esperança. Isso acontece no mundo inteiro e nos melhores hospitais. Isso é uma coisa. Outra coisa é o órgão estatal que regula esses assuntos dar o seu carimbo em um remédio que ainda não passou por todas as fases de testes, para uso generalizado da população.

Os médicos podem prescrever (e estão prescrevendo) a cloroquina para os seus pacientes. Mas é por sua conta e risco. Tanto é assim que os pacientes precisam assinar um termo de ciência e responsabilidade antes de receber o remédio. Os pacientes são avisados de que são cobaias. O que querem os médicos que estão pressionando o governo é se livrar dessa responsabilidade, pedindo que o ministério da saúde diga que a coisa é segura e funciona, mesmo sem ter passado pelos testes científicos de praxe.

Fé e ciência se baseiam em verdades. E a verdade, no caso da cloroquina, é que o debate já há muito deixou de ser científico.

Fora, Mandetta!

Descobri que está rolando nas redes sociais bolsonaristas a hashtag #foramandetta.

Quer dizer, Bolsonaro não tem coragem de mandar seu ministro da saúde passear, então fica criticando-o a céu aberto, enquanto as redes sociais amigas fazem o serviço de assá-lo em fogo alto.

Não seria mais fácil demiti-lo?

Não, não seria mais fácil. E vou explicar porque.

Mandetta, seguindo o exemplo de praticamente todos os países relevantes do mundo, vem patrocinando o isolamento social como medida de contenção da pandemia. Só faz sentido trocar o ministro se, em seu lugar, entrar alguém que faça o oposto. Mas isso significaria assumir a responsabilidade por essa política arriscada, que pode até dar certo, mas pode dar muito, mas muito errado.

Portanto, muito mais conveniente dizer que não concorda, mas esconder-se atrás de um ministro que não o “obedece”. Assim, Bolsonaro pretende ficar com os dois bônus: o do achatamento da curva de transmissão e o de ter “avisado” sobre os efeitos deletérios da política de contenção.

Muito esperto. Mas, como dizia Tancredo Neves, esperteza, quando é muita, come o dono.

O experimento sueco

Muito se tem falado do “experimento sueco” na contenção da epidemia. Parece que a Suécia adotou medidas bem mais suaves, não fechando escolas nem comércio. Segundo matéria do The Guardian de hoje, dica de Flavio Soares de Barros), parece que o governo está revendo seus conceitos. Os gráficos abaixo explicam porque.

O número de mortes na Suécia (por habitante), é bem menor que Espanha e Itália, e compatível com Reino Unido e França. Mas, recentemente tem se mostrado bem superior a países com que a Suécia se compara, como Alemanha e os outros países nórdicos (Noruega, Dinamarca e Suécia). São ainda poucos pontos, mas para uma doença que cresce exponencialmente, cada dia é um ano. E os suecos sabem disso.

Estatísticas da Covid-19

Trago 4 gráficos, dois que estão sendo atualizados diariamente e dois novos.

Os gráficos velhos mostram a curva brasileira bem atrás no número de casos em relação a Europa e EUA, mas pode haver problema de subnotificação. No caso do número de mortes, nossa curva também está atrás, mas segue de perto a tendência da Europa como um todo.

Os gráficos novos se referem a duas tragédias: Lombardia e Nova York (o Estado). Ambas as regiões têm sido consideradas os piores desastres de saúde pública nesta pandemia. Comparei os dados dessas duas regiões com o Estado de SP, a nossa pior região. Ficamos bem atrás, tanto em número de casos quanto em número de mortes, tudo ajustado pelo tamanho das respectivas populações. Ou seja, aparentemente estamos bem distantes (por enquanto, pelo menos) daquelas cenas dantescas que observamos nessas regiões.

De maneira geral, parece que caminhamos bem. Mas é preciso cuidado para não baixar a guarda sem um bom planejamento. Seguimos.

Testes vs Casos

O site Worldmeter (minha fonte de dados) disponibilizou o número de testes por país. Com esses dados, fiz um gráfico mostrando a relação entre o número de testes e o número de casos confirmados (tudo em relação à população de cada país). Plotei todos os países com mais de 1.000 casos.

A reta é a média, que dá mais ou menos 10%. Ou seja, de cada 10 testes, 1 dá positivo. Isso, na média desses países.

Mas há diferenças grandes! Na Espanha, por exemplo, a razão é de 35%, ou seja, de cada 10 testes, 3,5 deram positivo até o momento. Por outro lado, na Noruega, a razão é de apenas 5%. Na Austrália e na Coréia é de 2%, enquanto na Itália é de 19% e nos EUA de 20%.Uma explicação possível é que os números são mais altos nos países que demoraram mais a tomar medidas de contenção. Isso deve acontecer simplesmente porque tem mais pessoas contaminadas na população. Outra explicação seria que os países com maiores percentuais são aqueles que estão testando somente os doentes, enquanto aqueles com percentuais baixos estão testando todo mundo. Talvez, inclusive, uma coisa esteja relacionada com a outra.

O Brasil é aquele pontinho vermelho no canto inferior esquerdo. Temos poucos testes e poucos casos ainda. A relação é de 17%, quase igual à Itália. Ou seja, ou demoramos para fazer medidas de contenção, ou estamos testando somente os doentes. De qualquer forma, ainda é um número muito pequeno para tirar conclusões.

Estatísticas da Covid-19

Gráficos atualizados até ontem.

Mudei um pouco o critério para o gráfico do número de novos casos: ao invés de iniciar com o caso #50, iniciei quando o número de casos ultrapassou 1 para cada milhão de habitantes em cada país/região. Neste gráfico, o Brasil continua bem atrás de Europa e EUA, mas aqui pode haver problemas de medida, uma vez que estamos testando bem menos.

No gráfico de mortes, adotei dois critérios para iniciar as séries: o critério da primeira morte, que já vinha usando, e o critério do caso #150, sugerido pelo amigo Victor H M Loyola. O racional desse critério é que já teríamos, no caso #150, contaminação comunitária, o que já indicaria epidemia. A primeira morte seria um marco mais aleatório. Faz sentido.

No primeiro gráfico, usando o critério da primeira morte, o Brasil aparece seguindo a Europa em seu início. Já no segundo critério (caso #150), o Brasil aparece bem atrás, com uma curva mais suave. Tomara que este critério seja o melhor mesmo, Victor!